quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Agostinho da Silva, uma outra faceta...

 



Um Agostinho da Silva muito diverso daquilo que os intelectuais de esquerda e os idiotas úteis arvorados em gente da cultura pretendem fabricar. Um homem notável e fiel a si mesmo. 

Um verdadeiro português e um verdadeiro embaixador da cultura portuguesa, aquém e além mar.


«(...) o Governo português interessou-se pelo Centro [Brasileiro de Estudos Portugueses] e um dia fui convidado a ir ao Rio para falar com o embaixador. Já não era o mesmo com quem eu tivera um conflito aquando do começo da guerra colonial e que pretendera que eu fosse demitido da Universidade da Bahia. Era outro, um homem completamente diferente, que me transmitia um convite do Governo português para eu ir a Lisboa falar com as autoridades, com o próprio presidente da República.

Vim, como já lhe disse, e fui preso no aeroporto, porque se tinham esquecido de avisar a polícia, pois tudo fora tratado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas, soltaram-me logo e falei com Franco Nogueira, o ministro dos Estrangeiros, que se pôs imediatamente à disposição para fazer o necessário em Brasília, sem qualquer objecção política e só no final da cerimónia oficial é que me fez uma pergunta de carácter político. Nós já nos conhecíamos e tínhamos amigos comuns do tempo em que Franco Nogueira era da esquerda – nos seus tempos de juventude. Perguntou-me se eu achava que o Brasil aceitaria um plano dele a propor uma comunidade luso-brasileira.

– Não se meta nisso porque o Brasil vai negar – disse-lhe eu . – O Brasil perante Portugal mantém uma atitude de desconfiança e, quando pode, de ataque, porque é muito mais fácil para eles explicarem coisas que ainda não puderam resolver – entende-se muito bem que ainda não tivessem podido resolver, pois, o Brasil é uma tarefa difícil desde 1822 – e que esses males são provocados por eles não terem sido colonizados pelos holandeses ou pelos franceses.

Ora, por exemplo, no caso dos holandeses, foram regimentos de portugueses, pretos e índios que os vieram combater; era já gente brasileira que não estava nada contente com a maneira como o holandês se comportava. Curiosamente, há um livro de Mário Neme – meu amigo já falecido – sobre o domínio do holandês no Brasil. Olhe, sob o ponto de vista social e político de um brasileiro extremamente patriota – falava mesmo à moda de Piracicaba donde era natural, com um sotaque muito cerrado – chega à conclusão de que o regime português, sob todos os pontos de vista humanos, era para os brasileiros, e não se fala dos escravos, um regime muito mais tolerante e aberto do que o dos holandeses. E até talvez para os escravos, pois havia aquela convivência e domesticidade de portugueses e escravos no Brasil que Gilberto Freyre refere e insiste, embora não conte que os negros dos quilombos se tenham revoltado contra o domínio português. Mas os holandeses foram muito mais importantes para o conhecimento científico do Brasil do que os portugueses, pois trouxeram artistas e sábios que fizeram um levantamento do Brasil e das coisas brasileiras como os portugueses não sabiam ainda fazer. Entre esses artistas realce-se um excelente paisagista, Franz Post, cuja documentação pintada sobre o Brasil é muito instrutiva e que está hoje na Holanda, creio que em Haia, onde há um museu com muitas das suas telas sobre motivos brasileiros.

Eu aconselhei Franco Nogueira que, devido à guerra colonial já ter começado naquela altura, não era conveniente que ele fizesse uma proposta daquelas, mas já que estávamos ali como dois amigos e se ele achasse bem dar-lhe-ia uma ideia que os brasileiros deveriam aceitar e que seria muito útil para Portugal, exactamente por causa do conflito de África. Ou seja, uma comunidade luso-afro-brasileira, com o centro de coordenação em África, de maneira que não fosse uma renovação do imperialismo português, nem um começo do imperialismo brasileiro. O foco central poderia ser em Angola, no planalto, deixando Luanda à borda do mar e subir, tal como se fizera no Brasil em que se deixou a terra baixa e se foi estabelecer a nova capital num planalto com mil metros de altitude. Fizessem a mesma coisa em Angola, e essa nova cidade entraria em correspondência com o Brasil e com Lisboa para se começar a formar uma comunidade luso-afro-brasileira. Franco Nogueira declarou não poder fazer isso, que seria dividir Portugal, pois Angola era uma parte do país. Em face disto não havia mais nada a dizer, agradeci o que se tinha feito e saí.

Com quem conversei ainda um pouco mais foi com Adriano Moreira, dei-me muito bem com ele, tratámos de tudo o que se referia a Brasília e ele fez sempre o possível por ajudar.

Voltei para o trabalho do Centro e devido ao papel especial das cartas, aquela gente da Universidade começou logo a levantar o boato de que eu fora mandado para lá pelo Salazar para tentar uma recolonização do Brasil. Isto era coisa daquela esquerda – eu e muita gente no Brasil chamava-lhe a “esquerda festiva” – que era uma esquerda meio burlesca e sobretudo mal-intencionada, o que não quer dizer que a direita não fosse tão ruim ou até talvez pior em muitas coisas. Apesar desta acusação, isto não teve problema nenhum, pois eu dei-me sempre muito bem com os alunos, com o pessoal administrativo e com o pessoal menor da Universidade, de maneira que estava ali perfeitamente seguro, aquilo não entrava em cabeça nenhuma, a não ser na deles para os seus fins políticos.

Um dia, Adriano Moreira foi ao Brasil chefiando uma delegação portuguesa que ia visitar Brasília. Nessa altura já eu morava mesmo em Brasília, tendo até feito um barracão no mato do cerrado, para ter comigo os rapazes que trouxera da Bahia para fazerem o curso universitário, pois eles não tinham recursos. Eu ganhava o suficiente para eles e para mim e quando era preciso fazer uma despesa extra para comida, os professores meus amigos da Universidade faziam uma subscrição, ajudavam a comprar arroz e feijão, e aquilo lá foi andando e todos se formaram... Eram, hoje já não sei bem, um pouco mais de meia dúzia. Agora, já todos formados, em medicina, biblioteconomia, antropologia, filologia clássica, estão empregados e trabalham nas coisas boas do Brasil. Dei-me sempre muito bem com aquilo, levava uma vida muito simples que Adriano Moreira admirou quando ele levou lá, para uma festa à noite, no mato, os amigos que tinham ido com ele de Lisboa.

– Nenhum estudante português aceitaria morar numa coisa destas – disse-me ele.

– Estes aceitam, mora também aqui um professor, de maneira que eles não têm problema nenhum. Talvez os estudantes portugueses aceitassem se na barraca morassem também os professores. É uma experiência a fazer um dia, quem sabe?

Nessa altura é que Adriano Moreira me levou, sem dizer nada, o colar da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, por ele fundada. Foi uma das suas grandes ideias, posta de parte depois da Revolução de 25 de Abril, absurdamente, pois poderia ter um papel muito interessante no mundo, porque era uma associação de gente de todos os países, interessada em cultura portuguesa. De repente, tornei-me sócio de uma Academia; foi uma coisa pitoresca porque nem da Academia de Platão eu gosto. Acho que ele traiu Sócrates. Pois é. A filosofia é uma provocação. A filosofia deve ser um rosário de dúvidas e não deve ser transformada em certeza e em ensino. Ora, quem começou com a moda foi, realmente, o nosso amigo Platão na Academia, que foi bem castigado no mundo com todas as outras criadas à imagem da dele e que talvez tivesse sido muito melhor que a maior parte das Academias de agora. Em todo o caso, levou a filosofia para o terreno das certezas e do ensino, começando ele assim, com as ideias de aprendiz de tirano, a fazer a República e as Leis. Quando Platão foi a Siracusa, pensava talvez que convenceria Dionísio de Siracusa a executar os seus pensamentos, mas, provavelmente, Dionísio achou que ele no fundo era um ingénuo que lhe atrapalharia a ditadura e tratou-o de tal maneira que Platão teve de voltar depressa para as árvores da Academia e de se deixar de convencer políticos a fazer isto ou aquilo.


Bem, houve uma sessão no Centro. Adriano Moreira levava tudo: o colar, as vestes académicas e eu tive de fazer um agradecimento e pôr o colar em frente de toda a delegação portuguesa que tinha ido com ele. Contei-lhes qual a minha posição da altura, e que no Brasil já tinha estado noutras, porque o Governo português me tinha tornado impossível a vida em Portugal. Mas nesse caso eu tinha tido mais um sinal de que, como acreditava já, de um mal pode vir sempre algum bem. Talvez isso possa ser aplicável, de uma maneira geral, à História, sendo porém muito difícil ficarmos agradecidos ao mal pelo bem que recebemos. A nossa atitude costuma ser a contrária: é reconhecer pouco o bem e ficar sempre a falar do mal que por acaso nos sucedeu. Por isso, agradecia agora a Portugal estar doutra maneira, com outras atitudes, que esperava continuasse e que um dia pudesse realmente haver um reconhecimento de tudo o que era bom na cultura portuguesa em todos os países, quer nos que falavam português, quer nos outros. Ao mesmo tempo, que se eliminasse completamente na cultura portuguesa tudo aquilo que ajudara a fazer tantas vítimas em Portugal desde os séculos XIV ou XV até àquele momento em que falávamos ali.

A vida no Centro continuou durante alguns meses com relativa tranquilidade. Mas houve um incidente que complicou muito as coisas. Os funcionários da Universidade de Brasília ganhavam mais ou menos o mesmo que os das outras Universidades. Mas, no entanto, havia uma diferença enorme entre o que eles recebiam e os professores. Então, eles acharam que deviam reclamar um equilíbrio nos vencimentos, que deviam ter um melhoramento, porque no fim de contas o seu vencimento não era próprio para Brasília. Fizeram várias diligências junto da Universidade, mas esta continuou sempre como havia feito no caso dos assistentes: protestando, dando desculpas, baralhando tudo. Até que um dia, os funcionários perderam a paciência e resolveram declarar greve. No Centro, os meus funcionários não aderiram. Eu não tinha nada que fazer greve, era professor; os assistentes que lá estavam também não. Mantive as portas abertas e os funcionários, que se davam muito bem comigo, acharam que não tinham nada que se solidarizar com os outros, porque para eles, que tratavam directamente comigo, não havia atrapalhação nenhuma de vencimentos, quando viessem, vinham. E a situação manteve-se tranquila, com a Universidade toda em greve, excepto o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, que continuava a funcionar normalmente. Mas as coisas pioraram e um dia, do gabinete do reitor, surgiu algo de muito complicado e complicante. Apareceu uma circular, para que os funcionários a favor da reitoria se declarassem não em greve e os outros que a continuassem. Isto é, a reitoria exigia uma lista daqueles que aderiam, colocando os outros numa situação de diferença perante os colegas. Bem, como quase toda a Universidade estava fechada, para os outros funcionários não havia complicação, o que não acontecia com os meus que vieram ter comigo aflitos:

– Se nós não vamos para a greve, como é?

É muito simples – disse eu – considero que a greve é uma maneira de  apreciar os actos do superior, o que, dentro do estatuto é um acto de indisciplina. As pessoas ou ganham ou perdem, isso é lá com elas, mas a apreciação de um superior só pode ser: ou contra ou a favor. Se eu digo que sou contra o meu superior é um acto de indisciplina; se digo que sou a favor, também, porque não tenho nada que apreciar os actos dele. Assim, apreciar funciona para os dois lados. De maneira que eu proíbo que alguém dê a menor importância a essa coisa que veio da reitoria. Devolvam já esse papel.

E para que não houvesse dúvidas fiz um edital em que proibia e pu-lo na parede. Os outros professores, cujos funcionários não estavam em greve, não se tinham lembrado daquela situação. Aliás, eles quase todos contra mim, raríssimas vezes estavam a meu favor. Mas quando era preciso dizer alguma coisa que pudesse desagradar, sobretudo depois da Ditadura, da Revolução de 64, os professores vinham sempre pedir-me que fosse eu o orador, para me colocarem em situação difícil.

Por exemplo, lembro-me quando a esquadra russa avançava em direcção a Cuba com armas e a esquadra americana foi ao seu encontro, que me pediram para falar num comício na Universidade contra tal acto. Eu fui e disse que aquilo era um conflito resultante de um outro muito mais vasto entre duas ideias sobre a economia e a política. Mas nós também poderíamos dizer que resultava de uma mania existente em muitas pessoas de, quando estão em qualquer trabalho, se considerarem superiores e os outros inferiores. Ter uma consideração económica, pessoal, de espécie nenhuma, isso era algo existente em tudo e até naquela Universidade.

Com efeito, nos dias anteriores, os professores que comiam no restaurante da Universidade, como todos os alunos e empregados, tinham planeado que todos negassem a ir com uma travessa de metal buscar comida para levarem para a mesa e comerem. Eu, que não gosto daquele sistema, nem de comer em travessas, fazia exactamente como os outros. Então, os professores reclamaram que para eles não queriam travessas, mas sim pratos e talheres como devia ser. Para os empregados e estudantes podia continuar tudo na mesma. Nesse mesmo dia, eu deixei de ir ao restaurante da Universidade. Passei a alimentar-me de sanduíches. Comia qualquer coisa, não tinha problema nenhum.

Assim, eu disse que isso era uma situação geral que se dava também na Universidade. Já que os professores tinham resolvido uns dias antes comer só em pratos, sem se importarem nada com os outros. Sobre esse assunto das esquadras eu não tinha nada a dizer, pois acho que quando algo está errado no mundo, a gente começa por duas coisas muito importantes: não cometermos nós mesmos o erro e verificar se não estamos num serviço que o cometa.

E foi só isso que eu tive a dizer de fundamental quanto ao encontro entre as esquadras americana e russa.

Bem, com a greve dos funcionários... a certa altura vi publicada no jornal uma nota da Universidade em que o reitor em virtude da continuação da greve fechava a Universidade, até ver como é que o assunto se resolvia. Convoquei imediatamente os funcionários para uma reunião, porque eu já havia estado numa reunião deles para lhes dar o meu apoio. Disse-lhes que pela minha parte a Universidade não fechava e que o fecho ou não dependia inteiramente deles. Mantínhamos a Universidade aberta, os professores que quisessem dar aulas davam-nas e eles com esses professores quebravam a greve e seria eu a começar isso. E se o reitor mandasse fechar a porta eu daria aulas na rua, no jardim ou em qualquer parte. Fui então imediatamente dar aula, os alunos foram ouvir e os funcionários estiveram presentes. Nessa altura a reitoria percebeu que a coisa estava a ir de outra maneira e chamou Niemeyer. O arquitecto era do Partido Comunista ou simpatizante e, portanto, próximo deles, e toda a gente lhe tinha muito respeito dado ele ter sido o grande obreiro de Brasília e por ser também professor na Universidade. Chamaram-no exactamente para ver se ele convocava uma reunião com os empregados e solucionava o conflito. E conseguiram-no. Niemeyer estava encarregado de ceder o mais possível às exigências e a greve acabou. Foi assim o fim da greve na Universidade com, como calcula, muita hostilidade para comigo, é claro.»

Agostinho da Silva, in Vida conversável.

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