«Não critico nem acuso; não há mesmo novidade na afirmação que não desvenda qualquer segredo. Foram por essa altura [no Conselho de Segurança de 6 a 9 de Junho de 1961] feitas pelos representantes oficiais dos Estados Unidos declarações que pretenderam definir uma nova política da grande nação americana em relação à África, e nessas declarações se fizeram críticas expressas à nossa administração ultramarina, às ideias retrógradas que seriam as nossas em confronto com as dos novos tempos, e se falou precisamente de Angola, como exemplo de uma obra de colonização atrasada, degradante para as populações, mesquinha para os territórios (não transcrevo, reproduzo o sentido geral).
Simplesmente, simplesmente estas acusações e estas atitudes de 13 a 15 de Março parece que foram recebidas por certos países africanos como de concordância para apoiarem abertamente a acção terrorista que desabou sobre Angola. Bem se sabe que os Estados Unidos não aconselhariam nem preparariam directa ou indirectamente actos terroristas. Os elementos subversivos vinham sendo de longe instruídos, catequizados, enquadrados dentro e sobretudo fora da Província, com o confessado auxílio dos países afro-asiáticos e de outros Estados na linha de orientação traçada pelo comunismo internacional. Mas no estado actual de África e dada a situação geográfica e política de Angola, para passar à acção, impulsionando-a do exterior, tinha inegável vantagem que da parte de uma grande potência ocidental e anticomunista houvesse uma palavra e uma atitude. Houve-as e infelizes.
Os Estados Unidos têm quanto à Rússia comunista e aos perigos da sua expansão uma política bem assente: apoiar com toda a força do seu poderio as potências do Ocidente Europeu, com as quais colaboram sem regatear meios através do Tratado do Atlântico Norte. Este Tratado é considerado, aliás sem ultrapassar os limites de uma aliança defensiva, a base da política americana contra o expansionismo soviético. Em boa hora criada, a organização pôde impedir, apesar de deficiências conhecidas, o ataque frontal às nações europeias. Aliás talvez este não estivesse na linha de acção russa quanto ao desmoronamento do Ocidente e à expansão do regime comunista no mundo.
Tem a Rússia, desde os tempos dos seus grandes doutrinadores, uma política igualmente bem definida quanto à África: a sua subversão como meio de contornar a resistência da Europa. O trabalho de subversão e desintegração africana tem sido sistemática e firmemente conduzido pela Rússia e nesta primeira fase, que é apenas expulsar a Europa de África e subtrair quanto possível os povos africanos à influência da civilização ocidental, estão à vista os resultados obtidos.
Ora, talvez por força do seu idealismo, talvez também por influência do seu passado histórico que aliás não pode ser invocado por analogia, os Estados Unidos vêm fazendo em África, embora com intenções diversas, uma política paralela à da Rússia. Mas esta política que no fundo enfraquece as resistências da Europa e lhe retira os pontos de apoio humanos, estratégicos ou económicos para a sua defesa e defesa da própria África, revela-se inconciliável com a que se pretende fazer através do Tratado do Atlântico Norte. Esta contradição essencial da política americana já tem sido notada por alguns estudiosos, mesmo nos Estados Unidos, e é grave, porque as contradições no pensamento são possíveis mas são impossíveis na acção.
Quando se hostiliza e enfraquece a França, ou a Bélgica ou Portugal, por força da política africana, ao mesmo tempo que se atinge a confiança recíproca dos aliados na Europa, diminui-se-lhes também a sua capacidade. As tropas retiradas para a Argélia não combaterão no Oder ou no Reno; mesmo as modestas forças que nós fazemos seguir para o Ultramar deixarão um vazio, pequeno que seja, no sector ou nas acções que nos fossem destinados. E a América, presa de esquematismos ideológicos, penso virá também a ser vítima - a última - desta contradição, se nela persistir.
A surpresa ante o ressentimento do povo português e a reacção que por toda a parte se verificou contra as atitudes e resoluções da ONU, levam-me a crer que os Estados Unidos cuja política tem sido sempre connosco de inteira compreensão e amizade, se encontraram diante de uma realidade diversa da que tinham pressuposto. Houve manifestamente grave equívoco em considerar o Ultramar português como território de pura expressão colonial; equívoco em pensar que a nossa Constituição Política podia integrar territórios dispersos sem a existência de uma comunidade de sentimentos suficientemente expressiva da unidade da Nação; equívoco em convencer-se de que Angola, por exemplo, se manteria operosa e calma, sem polícia, sem tropa europeia e com a força de 5000 africanos, comandados e enquadrados por dois mil e poucos brancos, se a convivência pacífica na amizade e no trabalho não fosse a maior realidade do território. E, havendo boa fé, todo o equívoco havia de desfazer-se em face da atitude de homens brancos e de cor que, vítimas de um terrorismo indiscriminado, clamam que não abandonarão a sua terra e que a sua terra é Portugal.
Alguns dos oradores da ONU, sem bem cuidarem dos termos da Carta, deram a entender não desejar outra coisa senão que as populações exprimam claramente a sua opção por Portugal, embora esta esteja feita desde recuados tempos, e constitucionalmente admitida e consolidada. Isso se chama a autodeterminação, princípio genial de caos político nas sociedades humanas. Pois nem assim quero fugir ao exame do problema, e em vez de embrenhar-me em divagações teóricas, restringir-me-ei ao exame prático do caso português.
Em pleno Oceano e já para sul da linha que define os limites políticos do Atlântico Norte, situam-se as dez ilhas de Cabo Verde. Vão de Lisboa a S. Vicente ou à Praia 2 900 quilómetros e de Washington às ilhas Hawai 8 mil, de modo que na teoria que se dispõe a contestar pelas distâncias a validade de uma soberania nacional parece não estarmos mal colocados. A superfície do arquipélago é de 4 mil quilómetros quadrados e a população orça pelos 200 mil habitantes. O aspecto geral é de secura e aridez. As manchas de terra seriam fecundas se houvesse água, mas o arquipélago não tem água e a chuva é escassa e incerta, além de que a erosão é activa. A incerteza e limitações da vida impelem à emigração para as costas fronteiras de África, sobretudo para a Guiné. Deste facto de vizinhança e interpenetração de populações advém terem surgido, na pujante floração actual de movimentos de libertação, um movimento para a Guiné e outro para a Guiné e Cabo Verde em conjunto. Como aquelas terras foram achadas desertas e povoadas por nós e sob nossa direcção, o fundo cultural é diferente e superior ao africano, e a instrução desenvolvida afirma essa superioridade, pelo que explica a ambição de alguns e a desconfiança dos restantes instalados na terra firme. Deste modo a independência de Cabo Verde teria de restringir-se ao Arquipélago, e não é viável.
Mesmo não considerados os anos de seca e de crise, Cabo Verde está sendo alimentado pela Metrópole quanto a investimentos e subsidiado pelo Tesouro para cobertura das despesas ordinárias. Daqui vem que os cabo-verdianos que vemos nos mais altos cargos da diplomacia, do governo ou da administração pública por toda a parte onde é Portugal, nunca pensaram em avançar no sentido de uma utópica independência mas no da integração, ao advogarem a passagem para o regime administrativo dos Açores e da Madeira. Assim o movimento é puramente fantasioso.
Dos valores de Cabo Verde um porém se destaca e de importância para a defesa do Atlântico Sul - é a sua posição estratégica, e esse valor pode ser negociado, evidentemente dentro de um quadro político e ético que não é o nosso. A tal independência que por outros motivos qualifiquei de inviável teria logo à nascença de ser hipotecada ou vendida, negando-se a si mesma, para obter o pão de cada dia. Mas para a transacção, desde que o Brasil não esteja interessado no negócio, só existe um pretendente possível.
Deixo de lado as pequenas ilhas de S. Tomé e Príncipe de que conheço as dificuldades económicas e deficiências financeiras, mas em relação às quais me parece não se terem instalado ainda em território estrangeiro os empreiteiros da sua hipotética libertação. E passamos à Guiné - à volta de um terço em superfície do território continental, com 600 mil habitantes. O clima faz que seja o autóctone a cultivar a terra e o europeu ou o levantino, do Líbano sobretudo, que movimenta o comércio. A administração tem sido prudente e modesta como o impõem as condições, mas nalguns sectores, como no da saúde e assistência, tão rasgada e competente que a Organização Mundial da Saúde classificou a campanha contra a lepra como a melhor de toda a África. Seja quais forem as aspirações das populações nativas a melhor nível de vida, uma coisa é certa: o seu amor à terra em propriedade individual observa com o maior receio as inovações que sob inspiração chinesa se preparam para além das fronteiras; e o trabalho livre a que se habituaram parece-lhes ameaçado pelas formas introduzidas em países vizinhos. De modo que os perigos que ameaçam a Guiné portuguesa não são propriamente os despertados pelo movimento de libertação do território.
Os seus representantes mesmo que portadores de algum mandato ou ambição legítima trabalham por conta alheia, pois nada poderiam contra forças de que poderá ajuizar-se, observando no mapa os Estados vizinhos e lendo na imprensa e ouvindo na rádio o eco das suas ambições. Enganam-se os que pensam para um futuro próximo em quaisquer soluções federativas ou outras para remediar os desconcertos da África actual: alguns dos novos chefes daqueles Estados não surgiram para se entenderem; a sua tendência será para se alargarem mas à custa dos outros, e todos sob o enganoso signo da libertação dos povos africanos.
O Estado da Índia, pequenino que é com os seus 650 mil habitantes e 4 mil quilómetros quadrados para preencher os quais são precisos quatro ou cinco territórios dispersos, não há dúvida que constitui uma individualidade distinta na Península do Industão. Aí se operou uma fusão de raças e culturas e, sobretudo, se criou um género de vida tal que por toda a parte o goês, como o comprovam as notações estatísticas internacionais, se distingue e não pode ser confundido com o indiano. Este continuará a arrastar consigo a divisão e irredutibilidade das castas, a confusão das línguas, o lastro da sua cultura oriental; enquanto o goês recebeu do Ocidente uma luz nova que, em harmoniosa síntese com os valores de origem, iluminou toda a vida individual e colectiva e caldeou, através cinco séculos de permanência e vida comum, a sua ancestralidade de sangue, com novo sangue, costumes e tradições. Compreende-se Goa a fazer parte da Nação portuguesa, porque nas crises o Estado português a apoia, a guia e financeiramente a sustenta; mas não podia o Estado da Índia assegurar por si a sua própria independência, apesar da típica individualidade que depois de tantas tergiversações acabaram todos em reconhecer-lhe. Assim os representantes mais categorizados do "movimento da libertação de Goa" foram levados pela força de circunstâncias evidentes a confessar que só exigem a independência dos territórios para integração na União Indiana.
O que chamamos província de Macau é quase só a cidade do Santo Nome de Deus, lugar de repouso e refúgio do Extremo-Oriente, incrustada na China continental. A província tem atravessado períodos de prosperidade e decadência, esta agora devida ao bloqueio americano da China que tirou a Macau a parte mais importante do seu comércio. E, como não pode estender-se, sofre das suas limitações naturais. A existência de Macau como terra sujeita à soberania portuguesa funda-se em velhos tratados entre os Reis de Portugal e os Imperadores da China, de modo que, se estes textos jurídicos mantêm, como deve ser, o seu valor, através de mutações dos regimes políticos, está assegurada a individualidade daquele território e a sua integração em Portugal. Mas se saíssemos do terreno da legalidade para fazer apelo a outros factores, certo é que Macau, fosse qual fosse o valor da nossa resistência, acabaria por ser absorvida na China de que depende inteiramente na sua vida diária. E o mundo ocidental ficaria culturalmente mais pobre.
Nas Índias Orientais há uma pequena ilha que se chama Timor, metade da qual partilhámos com a Holanda e desde 1945 com a República da Indonésia. Perdido entre as mil ilhas deste Estado, Timor não tem condições de vida independente. À parte o que tem sido necessário gastar ali para desenvolver o território e elevar o nível social das populações por meio de dispêndios extraordinários em planos de fomento, a vida ordinária não se basta e o Tesouro vê-se obrigado a cobrir parte importante das despesas correntes. Apesar de tudo a população, quando liberta de pressões ou influências estranhas, leva tranquilamente a sua vida e nas crises mais graves a dedicação dos povos para com a Nação portuguesa toca as raias do heroísmo.
Quando as forças japonesas na última guerra devastaram sem justificação nem utilidade o Timor português e a autoridade que representava a soberania no território ficou privada de meios para exercício efectivo do poder, foram quase só os timorenses a marcar ali por muitos modos a presença de Portugal. É curioso notar que se deve precisamente aos Estados Unidos a reentrega de Timor: por força de compromissos tomados connosco, sem dúvida, mas contra interesses que então seriam porventura de considerar se se não tratasse de Portugal.
Não se pode saber o que daria neste caso sob pressões estranhas a autodeterminação. Aquele pequeno grupo de cuja autenticidade duvidamos e que finge em Jacarta trabalhar pela libertação de Timor não pode pretendê-la senão para a trespassar à República da Indonésia que não teria então os escrúpulos de agora em aceitá-la. Port Darwin fica porém a uma hora de avião de Díli e alguém haveria de perturbar-se, ao menos tanto como nós, com o acontecimento.
Quer dizer: em todos os casos considerados e dadas as actuais circunstâncias, sempre que as Nações Unidas advogam a autodeterminação como acesso possível a soluções diversas, só podem de facto chegar à independência dos territórios, e, quando conseguissem a independência destes, ser-lhes-ia vedado querer coisa diferente da sua integração noutros Estados, isto é, a transferência da soberania para algumas delas. Ora, sendo esta a questão, devo dizer, sem arriscar confrontos desagradáveis, que em qualquer das hipóteses não podemos ser considerados nem menos dignos, nem menos aptos para o Governo sobre os povos de raças diferentes que constituem as Províncias de além-mar. Tentar despojar-nos dessa soberania seria pois um acto injusto, e, além de injusto, desprovido de inteligência prática. E explico porquê.
Nós somos uma velha Nação que vive agarrada às suas tradições, e por isso se dispõe a custear com pesados sacrifícios a herança que do passado lhe ficou. Mas acha isso natural. Acha que lhe cabe o dever de civilizar outros povos e para civilizar pagar com o suor do rosto o trabalho da colonização. Se fosse possível meter alguma ordem na actual confusão da oratória internacional, talvez se pudesse, à luz destes exemplos, distinguir melhor a colonização do colonialismo - a missão humana e a empresa de desenvolvimento económico que, se dá, dá, e se não dá, se larga. Muitos terão dificuldade em compreender isto, porque, referidas as coisas a operações de deve e haver, motivos havia para delinear noutras bases a política nacional».
Oliveira Salazar («O Ultramar Português e a O.N.U.»).
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