domingo, 13 de julho de 2025

Toda a Verdade Sobre o Angoche.

 





Foi graças a O DIABO que o “caso Angoche” não caiu no esquecimento. Uma série de reportagens publicadas no jornal de Vera Lagoa levantou a ponta do véu sobre uma tragédia da guerra de África, ignorada ostensivamente pelos sucessivos governos posteriores ao golpe militar de Abril de 1974. Hoje, a memória dos tripulantes do navio mercante português continua a exigir uma reparação histórica. 

A 24 de Abril de 1971, o petroleiro ‘Esso Port Dickson’, com bandeira do Panamá, encontrou à deriva, a 30 milhas da costa de Moçambique, entre Quelimane e a Beira, o navio costeiro ‘Angoche’. Desgovernado, com fogo a bordo e sem sinais dos 23 tripulantes nem do único passageiro, parecia um barco fantasma.

O ‘Angoche’, da Marinha mercante portuguesa, pertencia à Companhia Moçambicana de Navegação, subsidiária da Companhia Nacional de Navegação, e fora construído nos estaleiros da CUF, em Lisboa, em 1958, para navegar no serviço de cabotagem de Moçambique.

Às 17:30 do dia 23 de Abril de 1971, o ‘Angoche’ levantou ferro de Nacala com destino a Porto Amélia (actual Pemba), no norte daquela então província portuguesa na costa oriental de África. No porão, além de mercadoria variada, seguia um importante carregamento de material de guerra destinado ao exército português no Norte de Moçambique. A viagem era curta e a chegada estava prevista para as cinco da manhã seguinte. Mas o ‘Angoche’ nunca chegaria ao destino. Quando foi encontrado estava muito para sul da sua rota.

O navio deserto foi passado a pente fino pelos agentes da PIDE/DGS que, em África, durante a guerra, funcionava como serviço de informações. Com base nessa investigação, o director da DGS em Lourenço Marques (actual Maputo) enviou para Lisboa, a 6 de Maio, uma mensagem rádio com a classificação de “urgentíssimo”. Informava os seus superiores da Rua António Maria Cardoso, sede daquela polícia na Metrópole, que tinham sido encontrados vestígios de duas explosões no ‘Angoche’.

Uma delas fora provocada por cargas reforçadas com granadas de fosfato colocadas junto à chaminé de estibordo, por cima da ponte de comando, que ficou completamente destruída, incluindo os sistemas de comunicações do navio.

A segunda carga explodiu dentro do ventilador das máquinas. Ao contrário das instalações destinadas aos tripulantes brancos, na ré do navio, que foram “completamente pulverizadas”, o compartimento destinado aos 13 tripulantes negros dava sinais de ter sido abandonado precipitadamente: roupa, calçado e coletes de salvação estavam espalhados por todo o lado.

Nos dias seguintes, outras mensagens rádio citando informadores na Tanzânia e fontes dos serviços secretos sul-africanos (BOSS) e rodesianos (CIO) davam conta da chegada de membros da tripulação a Dar-es-Salaam, a capital tanzaniana. No entanto, este país – que era o principal apoio, no continente africano, da Frelimo, a organização que combatia a presença portuguesa em Moçambique – negou repetidamente qualquer envolvimento no assalto ao ‘Angoche’ e desmentiu ter tripulantes em seu poder.

O relatório do inspector da PIDE/DGS Casimiro Monteiro, enviado para Lisboa em Maio de 1971 com a classificação de “secreto”, acrescenta mais pormenores sobre o assalto ao ‘Angoche’. Monteiro concluiu que os explosivos foram colocados em Nacala, antes da partida, e accionados por relógio. A explosão provocou feridos ou mortos, o que foi comprovado pela presença de vestígios de sangue a bordo.

As vítimas do Angoche

Para aquele agente e para outros responsáveis da DGS – cujo relatório desapareceu misteriosamente da sede daquela polícia já depois do “25 de Abril” -, o ataque ao navio fora obra de militares portugueses em serviço na base de Nacala, ligados à Acção Revolucionária Armada (ARA), o braço armado do Partido Comunista Português, responsável por uma onda de atentados bombistas em Portugal. A prova desta ligação estaria nos explosivos usados no ataque ao ‘Angoche’ – eram do mesmo tipo dos que tinham sido roubados numa pedreira em Loures e utilizados no princípio de Março desse ano na sabotagem da base de Tancos, reivindicada pela ARA. Mais tarde, já depois do golpe de 25 de Abril de 1974, chegaram a ser apontados nomes de oficiais da Marinha ligados ao MFA como estando envolvidos no “caso Angoche”.

No entanto, a sabotagem só por si não chega para explicar o enigma do desaparecimento da tripulação e do material de guerra que se encontrava no navio. O ‘Angoche’ terá sido abordado nessa noite, depois das explosões, por um submarino russo, que recolheu o armamento e capturou os tripulantes, entregando-os depois à Frelimo. Os portugueses foram mantidos em cativeiro durante anos, na principal base da guerrilha moçambicana na Tanzânia, Nachingwea, e por fim assassinados, de acordo com o antigo inspector da PIDE/DGS Óscar Cardoso, citado por Bruno Oliveira Santos em Histórias Secretas da PIDE/DGS (Nova Arrancada, 2000).

A intervenção soviética foi pedida pela Tanzânia como retaliação pelo ataque de um submarino sul-africano a uma traineira tanzaniana, no âmbito de uma operação conjunta luso-sul-africana contra a Frelimo. Outras fontes referem que a captura dos tripulantes portugueses foi uma resposta à condenação, por um tribunal militar português, do capitão cubano Pedro Peralta, capturado em combate na Guiné e libertado pelas novas autoridades que tomaram o poder em Lisboa depois do golpe de Abril de 1974.

Para adensar o enigma, há referências a um passageiro misterioso que teria embarcado para a viagem e ainda a estranha ausência do radiotelegrafista, que, à última hora, acabou por ficar em terra. Por fim, o suicídio de uma portuguesa que trabalhava num clube nocturno da cidade moçambicana da Beira, tida como amante de um oficial da Marinha de guerra que estaria envolvido no atentado, veio acrescentar mais ingredientes conspirativos ao caso.

A participação directa do submarino russo no assalto ao navio constituía a prova de que, como Portugal sempre defendeu perante a ONU e a comunidade internacional, os auto-proclamados “movimentos de libertação” não passavam de fantoches do imperialismo da então URSS na agressão ao Ultramar português. Daí que os novos senhores do poder depois do golpe militar de Abril se tenham empenhado a fundo na tentativa de abafar o caso, negando a justiça devida à memória dos tripulantes do ‘Angoche’, vítimas de uma guerra em que não eram combatentes.

As autoridades “abrilistas” bem tentaram que a tragédia do ‘Angoche’ caísse no esquecimento. Só não contaram com uma jornalista chamada Vera Lagoa e um jornal que, então como hoje, não se verga nem se cala: O DIABO.





Orlando Vitorino, a Revolução de Abril e Refutação do Socialismo.

 


Revelações da Revolução: as gavetas vazias dos escritores e as gavetas vazias dos políticos

Escrito por Orlando Vitorino


A entrevista que se segue foi conduzida e realizada por António Jorge de Andrade (in Jornal da Madeira, ano XLVII, série II, números 14408/9/10, Funchal, 15, 16 e 17 de Julho de 1977, pp. 1 e 6; 1, 6 e 7; 1, 8 e 10; transcrita no Diário do Minho, ano LVIII, números 18759 e 18770, Braga, 1 e 15 de Fevereiro de 1978, pp. 9-10 e 9-10, Suplemento “Parábola”).

Quando ao dobrar uma esquina dei de cara com Orlando Vitorino, a minha surpresa foi quase um susto: não sabia que estivesse anunciado o teatro no Funchal e deparava com este meu velho e querido amigo que sempre que vem ao Funchal traz consigo uma companhia de teatro, às vezes com peças suas como, duma das últimas vezes. «Tongatabu»? Lembram-se? Que ele não tivesse anunciado a sua vinda, não me surpreendeu porque lhe conhecia os hábitos. Tinha pois um homem que já várias vezes aqui entrevistei, que se ligou à história do jornalismo da Madeira com a colaboração que deu ao suplemento «A Ilha»; (modéstia à parte, uma publicação que marca data), que nos trouxe, de uma maneira talvez insólita, alguns belos espectáculos com alguns belos artistas.

O encontro foi efusivo, vagueámos logo pelas velhas ruas da cidade, eu dei-lhe notícias da Ilha, ele deu-me notícias do Continente, bebemos num «pub» um licor com o Duarte Canavial... O convívio de alguns dias acabou por reunir uma série de observações actuais e comentários mais ou menos sábios que, como nas outras visitas que Orlando Vitorino nos fez, compuseram mais esta entrevista.

O diálogo que vão ler foi travado ao longo de alguns dias, em ocasiões separadas. Será artificioso lê-lo como se ele tivesse decorrido sem intervalos. Falámos umas vezes de teatro, outras de literatura, outras de política. Eu tinha inúmeras perguntas a fazer: para saber o que é a revista «Escola Formal» que Orlando Vitorino acaba de lançar em Lisboa; como explicar o aparecimento do meu entrevistado num partido político, ele que sempre recomendou a independência perante organizações desse tipo; que projectos há de teatro ou, o que é o mesmo, qual o destino do teatro português... De algumas destas conversas tirei apontamentos, outras reproduzo-as de memórias; o relato que deixo aqui segue uma ordem arbitrária e começa, por preferência minha e creio que do entrevistado, pelas conversas sobre teatro e literatura.

Quando havia muitas censuras... 


- Há três temporadas que os palcos estão ocupados por agrupamentos, mais de amadores do que de profissionais, entregues à representação de espectáculos mais ideológicos do que teatrais. Porque não apareceu ainda alguém, você por exemplo, a fazer o teatro que todos nós desejávamos? 

- Creio que as circunstâncias ou, como diz a oratória política, «a conjuntura» não é propícia ao verdadeiro teatro e oferece as condições que tornam possível a realização de espectáculos que não passam de um discurso ou de uma didáctica mais ou menos demagógica. Se não se tratasse de um período de convulsão social e conquista do poder, teríamos de lamentar – eu, você e outros – que perdemos uma batalha. Você sabe bem como todas as minhas manifestações do teatro de viam obrigadas a travar, ao lado delas, uma campanha pela independência da arte perante a política e os políticos. A muitos episódios dessa campanha você assistiu aqui no Funchal, e até participou neles. Nesse tempo, antes de 1974, a luta pela independência do teatro tinha de se travar em duas frentes: a frente da censura salazarista e a frente da censura marxista.

- Censura marxista naquela época? 

 - Você e quase toda a gente sabe que os meios de informação e de opinião estão dominados pelos divulgadores das várias correntes marxistas; todos eles se apresentavam na unidade da oposição ao regime e assim tinham a seu lado todos aqueles que, não sendo marxistas, não viam contudo que estavam a ser instrumentos dos marxistas. Existia deste modo uma poderosa pressão sobre o público para que só valorizasse aqueles espectáculos que constituíssem formas de propaganda política. De acordo com os imperativos marxistas, todo o teatro devia ser político e de finalidades comunistas ou cripto-comunistas. Caso os espectáculos não obedecessem a esse imperativo e afirmassem a liberdade da arte, estavam sujeitos a uma campanha censória e feroz, que os condenava a uma existência apagada e difícil.


Não há arte ideológica, nem política, nem didáctica


Continuavamos, entretanto, a nossa actual conversa. A batalha que teríamos perdido seria pois a da liberdade da arte, com os palcos hoje transformados em tronos da ideologia dominante. 

- Felizmente – continua O. V. a dizer – isto é apenas o resultado de um momento de confusão que os ambiciosos, na sua vacuidade, aproveitam. As coisas vão começar a esclarecer-se. Para já estão desacreditados os velhos propagandistas da arte ideológica. Todos ficaram a saber que as bandeiras que eles arvoravam pouco ou nada valiam. Todos ficaram a saber o pouco que é o teatro de Brecht. Você lembra-se de como na «Ilha», nós mostrámos que o teatro político, representado na obra de Brecht, constituía uma negação da arte; transcrevemos até trechos de Ionesco. Olhavam-nos com desconfiança, dominados como estavam pela férrea disciplina da imprensa marxista e cripto-marxista. Agora, que todos o viram ou puderam ver representado, sabem como tínhamos razão.

- Essa demonstração da invalidade do teatro político poderá resultar, portanto, num benefício. Mas que outros motivos ou sinais existem para podermos esperar que o período caótico e confuso está no fim? 

- Tudo depende daquilo que a Secretaria de Estado fizer com o edifício, já restaurado, do Teatro Nacional. Creio que também nesse sector se fez sentir a pressão dos ideólogos, o que levou a um período de formação das habituais, inúteis e irresponsáveis comissões com os inevitáveis projectos de duração colectivista daquele Teatro Nacional. Estou certo de que as personalidades responsáveis que dirigem a Secretaria de Estado, designadamente David Mourão Ferreira, Lima de Freitas e Natália Correia, saberão repudiar o inoperante colectivismo e dar ao Teatro Nacional uma estrutura que ofereça seguras oportunidades. E uma vez entregue o nosso primeiro teatro à função que lhe pertence, criar-se-á o ambiente para o aparecimento das mais fecundas iniciativas.

- Será nesse ambiente que você retomará as suas iniciativas teatrais? 

 - Eu não gosto e não quero falar de mim. Aliás, até hoje não houve ambiente de opressão que me impedisse de fazer, de uma maneira ou de outra, aquilo que tenho a fazer.


O que é a «Escola Formal»? 


- Tanto agora como no passado, não é fácil discordar publicamente... 

- Sem dúvida. Quando os palcos estão proibidos, recorremos aos livros. Quando a imprensa está controlada, fazemos a imprensa.

- Refere-se por exemplo à publicação do seu livro «Refutação da Filosofia Triunfante» e, há duas semanas, à saída da revista «Escola Formal». Esta revista, que mal tive tempo de ler, é uma revista do grupo da Filosofia Portuguesa? 

- Do mesmo grupo que há mais de vinte anos, se tem batido pela prioridade da filosofia em toda a cultura e em toda a política que queira ser autêntica e viva. Durante muitos anos, homens como José Marinho, Delfim Santos, Agostinho da Silva, Santana Dionísio e Álvaro Ribeiro constituíram os mais lúcidos intelectuais portugueses que, sem arautos na imprensa, e com a hostilidade da direita e da esquerda, representaram em Portugal o pensamento da liberdade. Sem pensamento da liberdade, não há liberdade. Mortos os dois primeiros, desaparecido José Marinho que foi sem dúvida a maior figura da cultura portuguesa no nosso tempo, Álvaro Ribeiro é quem mais nos tem acompanhado em iniciativas como esta revista «Escola Formal».

Trata-se de uma revista de pensamento político?

- Trata-se sobretudo de advertir as inteligências dos perigos que correm ao deixarem passar, sem reflexão crítica, as palavras que continuam a ser lançadas para a confusão mental e para o obscurantismo social que oprimem os portugueses há decénios. Algumas dessas palavras e respectivos conceitos: sociedade, sociologia, socialismo. Trata-se também de uma defesa do ideal de aperfeiçoamento do homem. É portanto uma revista dirigida sobretudo à juventude.

- O aparecimento desta revista é também um sinal de que a vida intelectual portuguesa se mantém em perfeita actividade, tanto mais que está liberta do condicionalismo da censura? 


A censura é abominável, tanto mais que serve de alibi aos medíocres 


- Condicionalismo da censura merecia uma longa análise cujo lugar não é aqui. A censura é sempre abominável, mas não pode servir de alibi para gente que nada tem a dizer se não repetir o que outros disseram ou transmitiram. Os escritores que em Portugal mais sofreram com a censura os impedia de publicar: José Régio ou Álvaro Ribeiro por exemplo. E quando foi abolida a censura, Álvaro Ribeiro publicou um livro admirável, «Uma Coisa que Pensa». Outros escritores ligados à «Escola Formal», eu próprio por exemplo, publicaram também a partir dessa data os seus livros. Quem não publicou livros foram aqueles que sempre utilizaram a censura como um alibi. Se o alibi ficou agora denunciado, já no entanto havia pessoas que o conheciam. Entre os muitos inconvenientes da censura, o menor não é servir ela de capa a toda a espécie de mediocridades.

Recordei neste momento como há mais de seis anos, em entrevista que me concedeu para este jornal, Orlando Vitorino declarara precisamente: «A abolição da censura foi a a finalidade que propuz à extinta Sociedade Portuguesa de Escritores que sempre foi presidida por direcções que se consideravam democratas. Dessas direcções não obteve a minha proposta, acompanhada pelo aplauso de muitas dezenas de sócios, senão a hostilidade. Com efeito, no dia em que desaparecer a censura fica arruinado o prestígio ("prestígio" significa etimologicamente "falso brilho") de quase todos aqueles nossos escritores que o construíram à base da política oposicionista. Compreende-se, portanto, que sejam eles os primeiros a fazerem, pelo menos, orelhas moucas».


O. V. chama-nos porém a atenção: 

- É inegável que este género de escritores que utilizaram a censura como um alibi e tinham afinal vazias as gavetas das suas obras-primas, ficaram numa situação ridícula e grotesca que tem sido alvo da risota pública. Mas com a sua mediocridade, eles não fizeram mal a ninguém. E o alibi que durante tantos anos utilizaram, foi o mesmo que utilizaram os políticos que compõem a actual oligarquia governante. Também eles dizem que tinham na gaveta o processo de governar este povo dando-lhe só liberdade, prosperidade, harmonia e paz; também eles diziam que era a polícia do regime anterior, equivalente da censura para os escritores, que os impedia de mostrarem e exercerem os seus tão promissores métodos políticos. Afinal, entregou-se-lhes os governo e das suas gavetas os políticos só tiraram cópias estafadas de métodos de governo que, uma vez aplicados, levaram ao contrário do que prometiam. Tal como os medíocres e grotescos escritores, também os políticos tinham as gavetas vazias, mas ninguém se riu!

- Quer agora falar de política? 

- Vamos então falar de política!

Esta expressão – «vamos então falar de política» – é uma expressão que O. V. costuma utilizar frequentemente, com uma certa ironia. Trata-se de um modo de dizer muito prosaico e até muito comum. Todavia é com essa expressão que Aristóteles inicia a parte mais importante da sua famosa «Poética», aquela que começa precisamente assim: «vamos então falar da tragédia». O apontamento aqui fica para quem se interessa pela estilística e por isto de misturar a poesia com as expressões mais prosaicas: Disse eu então ao meu interlocutor:

- Você, numa das entrevistas que há alguns anos deu para o «Jornal da Madeira», afirmava que o homem independente e livre – e para si independência e liberdade consistem em cada um pensar por si próprio – não alinha em partidos ou organizações. Lembro-me de você ter dito textualmente: «em política nada de filiações». E também me lembro de o ouvir dizer, não sei se a sério se a brincar: «quando vires ao longe um organizador, mete a mão no bolso da pistola». Foi por isso uma surpresa para mim vê-lo agora figurar num partido político, o P. P. M. Como se explica?


O exemplo do P. P. M. ou a vantagem dos pequenos partidos 


- Em certo momento, depois de 1974, todos nós nos vimos perante a exigência patriótica e humana de fazer qualquer coisa, de fazer o que fosse possível. Ora a maior parte dos meios de actuação haviam sido monopolizados pelos partidos políticos; só através deles há acesso aos meios de comunicação, só através deles se pode ser eleito e, até votar, quer se trate de votações para orgãos do Estado, para as autarquias ou, até, para as organizações de trabalhadores, e empresas. É um absurdo, é a mais escandalosa anti-democracia, mas é assim mesmo.

No meio disto tudo, tínhamos de fazer o que fosse possível, era preciso colocarmo-nos em posições que o permitissem, e uma dessas posições era a de um partido político. É também certo que, nesse momento, qualquer partido – com excepção da variada gama de partidos comunistas – podia servir: a confusão em que todos eles se encontravam era tal que permitia tudo. Lembre-se que até o actual PSD, hoje activamente anticomunista, chegou a ser apresentado, pelo chefe que então teve, como perfeita e ortodoxamente marxista. O próprio PS, que abre o seu programa com uma profissão de fé marxista, criou corpo com um refúgio de todos os liberais que ignoram o que é o liberalismo e têm a triste ilusão de se poderem defender do comunismo com o socialismo que também não sabem o que é.

No meio disto tudo, o P. P. M. aparecia como o único grupo adequado a quem, como eu, como você, despreza os ambiciosos do poder embora os admire precisamente por serem tão contrários a naturezas como a minha ou a sua. Partido pequeno, essa pequenez permitirá ao P. P. M. desdenhar, como partido, as lutas vis da baixa política pela conquista do poder e dedicar-se, portanto, à desinteressada, objectiva e superior definição dos reais valores políticos. Grupo monárquico, isso o libertaria de, como os outros partidos, tomar a democracia como um fétiche ou feitiço.

- Todavia o P. P. M. tem tido uma certa conotação democrática e até socializante... 

- É essa a imagem que o P. P. M. lhe dá?

- De facto, tenho ficado muitas vezes perplexo com certas atitudes e o conteúdo de alguns comunicados desconcertantes num partido monárquico. Refiro-me a afirmações que se afiguram ter origem em concessões incompreensíveis aos lugares-comuns dominantes de cariz socialista. Devo reconhecer que gradualmente o P. P. M. parece ter abandonado essas lamentáveis concessões. E reparo que não falo só por mim, sinto-me como que um porta-voz dos meios madeirenses nos quais um partido monárquico poderia encontrar a mais fácil penetração. Desculpe-me esta observação, faço-a porque também sou monárquico.


O socialismo é totalitário 


- Creio que essa imagem é mais da responsabilidade do directório do que propriamente do partido. Houve uma certa cedência ao contágio dos diversos complexos esquerdistas e socialistas. Houve também uma lamentável ausência de afirmação da Monarquia. Nestes últimos quatro anos deu-se, em Portugal e no Mundo, uma rápida e talvez inesperada clarificação daquilo a que efectivamente correspondem palavras como democracia e socialismo. Você tem aí um artigo onde se pode ler... deixe ver... Ora oiça: «O sistema totalitário é enfim reconhecido como um componente orgânico de todo o regime socialista. Há apenas um ano esta tese, ou melhor esta verificação seria considerada um escândalo e ousar formulá-la era colocar-se à direita... o dever socialista era o dever de mentir». («Expresso», 27 de Junho/3 de Julho de 1977, p. 29).

O análogo está a acontecer com o «fétiche» da democracia.

Quem tiver a TV nos dois dias anteriores às eleições, ganha com maioria esmagadora 


 - Quanto a si a democracia é um fétiche.

- Não: a democracia a sério é uma coisa, a democracia «fétiche» é outra coisa. Nenhum português pode hoje tomar a sério a afirmação de que as eleições – melhor: as votações – exprimem a vontade ou o pensamento do povo. Todos aprenderam, em quatro breves anos, o que são votações. Basta que dêem a qualquer de nós, nos dois dias anteriores à data das eleições, a utilização da TV, para ganharmos as eleições com uma maioria substancial de votos. E até admitindo a livre votação, como se pode considerar democracia o exercício do poder (de votar) durante um domingo para entregar o poder (de governar) durante quatro anos? O sistema monopolista dos partidos ainda mais afasta a democracia. Porque, com esse sistema, os chamados eleitores não elegem coisa nenhuma, votam apenas nos candidatos que foram eleitos, ou escolhidos, pelos mandarins dos partidos.

- A democracia é então irrealizável? 

- A democracia é apenas uma das três formas ou constituições possíveis para o governo do Estado. O Governo do Estado é exercido ou por um – e temos a monarquia –, ou por alguns – e temos a oligarquia – ou por todos –, e temos a democracia. A mínima reflexão basta para mostrar que, dessas três formas possíveis, a democracia é a mais irrealizável. Com efeito, os regimes políticos existentes no mundo e que se designam por democráticos são de facto regimes oligárquicos, regimes nos quais um grupo de duas ou três centenas de pessoas (os deputados, os membros do governo, o Presidente da República) detêm todo o poder político.

- A uma tal situação – democracia aparente e oligarquia de facto – opõe você a terceira forma possível, a monarquia? 

- Não se trata bem de oposição. Trata-se de complementaridade. Nos regimes democráticos actuais há sem dúvida a combinação da democracia, seja ela embora aparente e de oligarquia. O que eu defendo é que a essa combinação se deve juntar o elemento monárquico. Bem sei que é fácil, ao raciocínio corrente, aceitar a ideia de democracia, o governo de todos exercido por todos. Bem sei que também lhe é possível aceitar a oligarquia, sobretudo porque ela se apresenta como uma aristocracia, ou seja, como constituída pelos melhores, pelos mais competentes, pelos mais sábios. E bem sei finalmente que, como dizia Hegel, «a monarquia é o conceito mais difícil para o raciocínio». Hegel acrescentava no entanto que a «monarquia constitucional é o mais perfeito de todos os sistemas».

- Nesse sentido, o Presidente da República não representa o princípio monárquico, não é ele o monarca?


As democracias aspiram à Monarquia: a dinastia de Gandhi, a dinastia de Sun-Yat-Sen, a dinastia dos Kennedy 


- De modo nenhum. Para que o monarca seja o monarca é imprescindível que se reconheça a si próprio, que se saiba como monarca. E isso implica muitas coisas: a eleição e a votação substituídas pela aclamação, o princípio natural representado pela Dinastia ou hereditariedade, o princípio espiritual representado pela sabedoria do Monarca. Esta sabedoria é o que mais importa. Mas não só para a monarquia. A democracia que se ignora, que ignora o que é a democracia, nunca passará da tal votação num domingo em cada quatro anos. A oligarquia que se ignora nunca poderá ser uma aristocracia, um governo dos melhores, mais competentes e mais sábios.

- O princípio hereditário, ou dinástico, da Monarquia, não lhe parece que no nosso tempo é inadmissível para a maioria das pessoas? 

- É inadmitido mas não é inadmissível. Não por defeito do princípio, mas por defeito do «nosso tempo». A realidade, depois, vinga-se e ri-se dos homens. Leva-os a aceitarem a dinastia de facto sob a aparência das mais populares democracias. Veja o que aconteceu na Índia: nos últimos quarenta anos, a chefia política do país, é chefia praticamente absoluta, transitou, por via hereditária, de Gandhi para o seu genro Nehru e deste para a filha Indira que já preparou um filho para lhe suceder. Na China, a família Sun-Yat-Sen, fundador da «República», detém a chefia política por outros tantos decénios; depois de Sun-Yat-Sen uma das suas duas filhas foi a vice-presidente da China comunista enquanto a outra era casada com Chang-Kai-Chek; e agora vemos a viúva de Mao a disputar a sucessão do marido. Repare que estes exemplos são os dos países mais populosos do mundo, onde portanto se diria mais difícil estabelecer uma dinastia. E os próprios Estados Unidos assistem à formação da dinastia dos Kennedy, um dos quais continua a preparar-se para, depois dos irmãos, ser ele o presidente ou o rei.

- Todavia, num país pequeno como o nosso, isso nunca aconteceu. 

- Entre nós, a oportunidade dinástica realiza-se nas oligarquias que nos governam. Através das sucessivas Repúblicas, as mesmas famílias constituem o núcleo dos grupos de poder político. Veja hoje mesmo: o vice-chefe do Governo é cunhado do último chefe do Governo salazarista; o chefe do segundo maior partido é sobrinho do ministro da maior confiança de Salazar; o chefe do terceiro maior partido é filho de um poderoso representante da anterior plutocracia. Percorra os apelidos que estão nas cúpulas do actual e do anterior regime, e encontrará os mesmos nomes. Até em posições extremas, o chefe dos comunistas é parente de um dos dirigentes monárquicos!

- Do que falávamos, no entanto, era dos presidentes da República... 

- Aí, o princípio natural da Dinastia foi entre nós substituído pelo princípio social da profissão ou do sindicato. Em 67 anos de República, o Presidente tem sido, durante 60 anos, um militar. Os portugueses recusam-se a receber, de uma família, o Chefe do Estado para aceitarem recebê-lo de um grupo profissional ou sindicato. Recusam-se a recebê-lo segundo as leis da natureza, para o receberem segundo as leis da força. Seria conveniente reflectir um pouco sobre esta diferença. O Chefe do Estado é o garante da unidade da Pátria, da Nação ou do Povo. Aceitar um Monarca – palavra que significa precisamente o princípio da unidade indivisa – equivale a reconhecer a unidade natural da Pátria. Quando essa unidade não está reconhecida, tem de se recorrer à força, tem ela de ser imposta pela força: o Chefe do Estado escolhe-se então entre aqueles que detêm a força, entre militares das Forças Armadas. Não vamos ofender a inteligência dos nossos leitores dizendo-lhes o que isto significa.

- Estas suas observações constituem doutrina do P. P. M.? 

- Receio bem que não, ou que ainda não. O P. P. M., depois de um primeiro programa que apresentou muito inserido nas circunstâncias do momento não exprimiu ainda a sua doutrina da Monarquia. Tem-se limitado a acompanhar a actualidade política, atento a certos pontos mais cruciais (sobretudo económicos, visto que a actualidade política é infelizmente quase só económica), apenas salvaguardando, sem a demonstrar, a superioridade da forma monárquica sobre a oligárquica e a democrática. Não designou sequer a personalidade que, com possibilidades dinásticas, propõe à aclamação dos portugueses, limitando-se a reconhecer a qualificação hereditária de D. Duarte, o que é manifestamente insuficiente para a actuação de um partido monárquico e leva a maior parte dos monarquistas – eles também, a exemplo do partido, mais absorvidos pela economia do que pela política – a dispersarem-se pelos outros partidos: o socialista, social-democrata e o democrata social. De quinhentos mil monárquicos que existem entre nós, apenas trinta mil votaram no Partido Monárquico.

De novo suspendemos a nossa conversa. O que mais nos surpreendeu foi a maneira insólita, para não dizer original, com que foram tratados assuntos quotidianos da vida política. Pessoalmente, foi para mim uma espécie de libertação ouvir falar da Monarquia em termos que nada têm a ver com os chavões pretensiosos e habituais. Eu próprio monárquico, confirmei assim convicções que o ambiente me obrigava a silenciar na minha intimidade. Uma noite, ao regressar sozinho a casa depois de uma destas conversas, dizia para comigo: afinal, a Monarquia é um caminho.

Continuamos e terminamos hoje a entrevista que Orlando Vitorino concedeu ao «Jornal da Madeira».

O Orlando Vitorino não vem à Madeira há cinco anos. Durante estes anos houve uma Revolução em Portugal que parece ainda não ter terminado...

- A Revolução continua, como diziam os salazaristas durante quarenta e oito anos.

- Quer você dizer que também esta Revolução vai continuar durante 48 anos ou que... 

- É possível.

- ... ou que esta revolução é uma continuação da salazarista? 


 O inevitável individualismo 


- As pessoas preferem viver o que é diferente a viver o que é o mesmo. Cada um gosta de se afirmar na sua singularidade e no seu individualismo. Ninguém quer ser igual a ninguém. E gostam de projectar o seu individualismo por aquilo que os rodeia, para as mulheres que amam, e também são singulares e únicas, para os filhos que têm, para o País ou para a Ilha que habitam, e também para o tempo que vivem. Dizer que se vive uma revolução e que a revolução faz que tudo seja para nós diferente do que foi para os outros, satisfaz o nosso individualismo, é lisonjeiro para toda a gente, para os que estão com a Revolução e para os que estão contra a revolução e até são, ou julgam ser, suas vítimas.

- Será portanto antipático dizer que esta revolução dura à quatro anos, durará mais quarenta e oito e continua a revolução que aqueles, contra os quais esta revolução foi feita, disseram durante quarenta e oito anos que continuava. É isso? 

- É isso.

- Todavia, a partir de há um ano, quando foi eleito o Presidente da República, todos os políticos proclamaram que a democracia estava institucionalizada e que passávamos a viver num «Estado de Direito». Ora o Estado de Direito é o contrário da Revolução.

- Seria demasiado fácil responder-lhe lembrando que o regime anterior também era um Estado de Direito e teve por lema isso de a «Revolução Continua». Deixe-me lembrar-lhe antes que «Estado de Direito» é uma expressão de origem alemã, aliás como quase todo o moderno socialismo. Trata-se duma expressão que se destina a minorar a superior tradição jurídica dos povos meridionais. Porque dizer «Estado de Direito» e dizer Direito é a mesma coisa. Você, que é jornalista, sabe melhor do que eu como os políticos gostam de empregar palavras que nada significam e distinções que nada distinguem. Por exemplo: «Justiça social». Devem eles achar que dizer só justiça é dizer pouco.

- Afirmou V. que o socialismo moderno é de origem e formação alemã... 

- Não me diga que o não sabe! Você não é político.

- Bem sabe que não. 

- Não me refiro evidentemente a não ser você socialista por não estar inscrito nalgum dos numerosos partidos socialistas. Refiro-me a você aceitar ou não a doutrina socialista.

- Claro que não aceito. 

Uma Constituição socialista é um absurdo: nenhuma constituição poderá ser doutrinária 


- Mas a Constituição afirma-se socialista. Nós podemos aceitar ou repudiar a doutrina de um partido. Mas já não somos livres de aceitar ou não a Constituição... quere-me parecer. Como é que sendo socialista a Constituição do povo português, pode algum português dizer que não é socialista? 

- Só no caso de a doutrina socialista ser a única e pura verdade e, além disso, a sua simples existência bastasse para libertar todos os homens de todos os erros, só nesse caso é que a Constituição de um povo se poderia afirmar socialista. Ora a doutrina socialista não é a pura e única verdade: nem pode pretender que, uma vez que ela exista, todos os homens ficaram libertos do erro. Isso a que chamam socialismo é a doutrina mais antiga do mundo e nunca aconteceu ter ficado o homem dispensado de errar. Só podemos portanto concluir que, ao apresentar-se como socialista, não há documento, funcione ele embora como o documento do qual se deduz todo o exercício do poder político, que possa na verdade ser ou exprimir a Constituição de um povo. E se ele obriga a que de si se deduza o exercício do poder político, então o poder político fica a ser apenas um instrumento de coerção ou, como dizem os revolucionários, de repressão.

- Quer dizer: uma Constituição doutrinária não é, de facto, uma Constituição. Como entende Você que seja possível nas circunstâncias actuais elaborar uma autêntica Constituição? 

- Em quaisquer circunstâncias uma Constituição só pode ser uma formulação de princípios expressos de modo a poderem ser aplicados.

- Por princípio – se bem me lembra o seu último livro «Refutação da Filosofia Triunfante» – entende Você aquilo que de nada depende.

- Exactamente. E se bem se lembra, os princípios são apenas três: a verdade, a liberdade e a justiça. Uma Constituição tem de os considerar em vista da sua aplicação. Claro que se trata de um trabalho intelectual que carece de profunda informação filosófica e política que se não pode encontrar no confuso e tumultuoso ambiente da nossa democracia. Quer um exemplo desta confusão? Os monárquicos integralistas introduziram a distinção entre liberdade e liberdades, distinção que os actuais comunistas repetem com intuitos apenas de propaganda e sem possibilidade de compreenderem o que seja a liberdade e o que sejam as liberdades. Os ingleses têm a mesma distinção nas palavras liberty e freedom. Outro exemplo: a justiça designa um princípio que é uno e universal e não se pode estilhaçar em adjectivações que o diminuem e até contradizem: justiça social, justiça distributiva, justiça igual para todos, etc. Com políticos que deste modo ignoram o que é a justiça e a liberdade, como se pode fazer uma Constituição?


Inconvenientes da lei escrita 


- A Constituição deverá ser, portanto, uma formulação de princípios? 

- Uma breve e rigorosa formulação de princípios. Caso não tenhamos de reconhecer que, como há já mais de dois mil anos, Platão demonstrou que o direito escrito, a lei escrita, a Constituição escrita, são escritos porque estão em vias de deixarem de se inserir na realidade vivida ou porque, como hoje muitas vezes acontece, nada têm com a realidade.

- Vejamos se entendo bem. Diz você que os povos, todos os povos, têm uma singularidade própria e por ela existem; que essa singularidade é a sua Constituição, é o que os constitui e se identifica com a realidade deles; que fazer dessa Constituição uma lei escrita significa que ela já se não identifica com a realidade que o povo é ou que aquilo que faz existir um povo se está evanescendo... É isto? 

- Exactamente.

- Mas como, então, saber que existe a Constituição que, não estando escrita, é a mesma realidade do povo? Como fazê-la funcionar ou presidir ao Governo do Estado? 

- Os ingleses, que durante longos séculos – até haverem adoptado, há alguns decénios o socialismo, que comanda agora a decadência da Inglaterra – dispensaram o direito escrito, a lei escrita, dão uma resposta à sua pergunta. Deverei lembrar-lhe, todavia, que um dos argumentos em favor da Monarquia consiste nisso mesmo. O Monarca é aquele que tem o saber da Constituição do povo e exerce esse saber. Este argumento foi muito bem exposto por José de Maistre, mas está implícito na filosofia de Platão, de Dante, de D. Duarte e de Hegel.

Afigurava-se-me que, para o carácter habitual das entrevistas de jornais, este aspecto das minhas conversas com Orlando Vitorino poderia parecer aos leitores demasiado insólito, talvez pela dificuldade e profundidade com que o assunto foi conversado. Hesitei ainda em registar as últimas declarações. Mas logo me envergonhei de assim hesitar. O assunto é de principal importância para todos os portugueses e importa, portanto, discuti-lo sem concessões às facilidades habituais que são o plano inclinado para a demagogia e a ignorância. Prosseguimos pois a nossa conversa. Para abandonar o problema da Constituição e regressar ao tema que lhe tinha dado origem, eu observei:

- Você não é pois socialista...


As promessas do socialismo 


- Para bem nos entendermos, convém começar por desfazer certos e fatais equívocos, mal-entendidos, chavões e complexos. É evidente que se é ou não é socialista por sérias razões. Os que são socialistas vêem no socialismo o caminho para certas finalidades ou para a realização de certos ideais. Esses ideais são, essencialmente, a instauração da justiça entre os homens ou o fim das desigualdades que colocam uma parte da humanidade na dependência e na pobreza e outra parte na abundância e na liberdade. Ora essas ideias não são o monopólio dos socialistas e, em todos os tempos e em toda a parte, foram os ideais de todos os sistemas políticos sérios e autênticos. Os que não são socialistas não é porque repudiem esses ideais, mas porque vêem ou sabem que o socialismo, não só é incapaz de os realizar, como ainda impede a sua realização. Ou seja: com o socialismo, a injustiça alarga-se a toda a sociedade abrangendo os mais elementares direitos naturais do homem, e a pobreza e a dependência, que oprimem uma parte maior ou menor da humanidade, generalizar-se-ão a todos. É certo que o socialismo a si mesmo se atribui um carácter científico e lisonjeia ou justifica todos aqueles que se encontram numa situação de dependência e naturalmente não querem ou receiam ter de reconhecer que tal situação é o resultado de uma inferioridade pessoal. Por outro lado, com as formas de combate e destruição que o caracterizam, o socialismo cria nas pessoas com pouca capacidade de reflexão e reduzida informação científica – que são a maioria - a convicção de que ele constitui a única oportunidade para obterem aquilo que não têm ou alcançarem a igualdade com os que têm aquilo que eles não possuem. Finalmente, há os idealistas sinceros que vêem no socialismo o sistema de organização que dará a todos os homens, não só a prosperidade como até a abundância.

Por estes três motivos, o socialismo é a doutrina cujas promessas seduzem a maior parte dos homens: primeiro, porque todos os homens de algum modo se encontram em situação de dependência; depois, porque a maioria é sobretudo constituída por pessoas de reduzida informação científica e pouca capacidade de reflexão. E quando a democracia se identifica com um processo eleitoral os partidos socialistas obterão facilmente a maioria dos votos e o socialismo acabará por ser imposto a toda a gente.


Demonstração de como o socialismo não pode cumprir com as promessas que faz 


Quem não é socialista tem a clara consciência de que não há sistema que menos possa cumprir as promessas socialistas do que o socialismo. Com efeito:

a) A abundância universal que o socialismo promete não passa de uma fantasia inventada pelos socialistas do início do século XIX e nunca a ciência económica a pôde tomar a sério e a evolução do mundo só a tem desmentido. Um congresso mundial realizado no México em 1974 mostrou como são cada vez mais temerosas as perspectivas da humanidade quanto às possibilidades de alimentação. Caminha-se, pois, no sentido inverso da fantasiosa promessa da abundância universal que, no entanto, continua a ser anunciada pelos socialistas mais ambiciosos de poder como recentemente o fez o chefe do Partido Comunista Espanhol. E se não falarmos já da abundância mas apenas da prosperidade, qualquer pessoa medianamente informada sabe que os economistas socialistas já se dão hoje por felizes quando conseguem declarar que, em sistema socialista, a produção alcançará os mesmos níveis que alcança o sistema a que eles chamam capitalista. Um dos capitães socialistas da nossa revolução, o general Charais, esse ao menos, numa entrevista que deu ao semanário «Expresso», confiou na prosperidade que o socialismo nos irá trazer por razões astrológicas: disse ele que a terra entra agora no signo de Aquário que é um signo de prosperidade! O certo é que, sem interpretações astrológicas e com fortes razões científicas, o socialismo constitui uma economia, não de prosperidade, mas de pobreza.

b) A segunda promessa do socialismo consiste, essencialmente, na destruição dos ricos com a consequente distribuição da riqueza. O mais famoso economista dos nossos dias mostrou, há já alguns anos, que no socialismo «os ricos deixam de ser poderosos para só os poderosos serem ricos». E restabelece-se uma desigualdade entre os homens maior que em qualquer outro sistema, desigualdade que incidirá não apenas na economia, mas em todas as formas de actividade e afirmação. Trata-se de uma consequência do socialismo que é cientificamente inevitável e que a experiência demonstra à saciedade: enquanto na Rússia socialista dez por cento da população dispõe (ou é dona) de cinquenta por cento da produção, nos Estados Unidos os mesmos 10% da população dispõe de 35% da produção.

- Havia ainda uma terceira promessa do socialismo... 

- Sim: a de libertar os homens da dependência de outros homens. Mais ainda do que as anteriores promessas, é esta inteiramente ilusória. Ora veja: o sistema socialista, por mais moderado que se pretenda apresentar, tem como condição indispensável a abolição da propriedade. Em Portugal, por exemplo, a abolição da propriedade está já consagrada na lei da Reforma Agrária. Abolida a propriedade, todas as coisas passam a pertencer ao Estado e o Estado com a responsabilidade da totalidade da produção. Para isso, será necessário o planeamento. E o planeamento implica o controle de toda a actividade económica, isto é, de toda a acção de cada indivíduo. Todos nós faremos, todos nós teremos o emprego que os planificadores nos determinarem. A dependência em que cada homem estará dos planificadores será, necessariamente, total.

Terei eu sido bastante claro para fazer compreender porque que é não sou socialista?

- Deixe-me pensar... 

- É o que eu mais quero: que todos pensem.


Elogio do liberalismo, da concorrência e do mercado livre 


- Você não distingue socialismo e comunismo? 

- São apenas géneros, diferentes de uma mesma espécie.

- Mas você não entende que o socialismo seja o contrário do capitalismo? 

- Não. O capitalismo só existe onde os capitalistas conseguem dominar o Estado e o Governo, para organizarem, em monopólios, a actividade económica. Os monopólios tendem, depois, a concentrarem-se e, no momento em que o conseguem, estabelecem o mesmo sistema de planeamento que é próprio do socialismo. A diferença reside apenas no seguinte: os socialistas conquistam o poder totalitário do planeamento através da política; os capitalistas conquistam o mesmo poder através das empresas. Para nós, para os que ficam sujeitos à servidão, a diferença é nenhuma.

- Qual é nesse caso o sistema que se opõe ao socialismo? 

- É aquele sistema que os homens e os povos vieram elaborando ao longo do progresso da história, aquele sistema que, já segundo o poeta romano Vergílio, deu origem à civilização, aquele que os economistas modernos designam por sistema de concorrência ou economia de mercado e que, na sua última expressão, se designou por liberalismo. Funda-se ele, não numa abstracção irreal que se quer dar por racional, como faz o socialismo, mas sim na realidade vivida e na razão que há em tudo o que é real.

- É necessariamente muito complexo.

- Vou tentar, embora resumindo, explicar melhor. O que há a considerar em primeiro lugar são as condições em que o homem existe no mundo, e em que o mundo existe para o homem. Essas condições implicam formas de relação entre o homem e o mundo que possuem uma realidade independente das veleidades pseudo-nacionais de qualquer socialista. Essa realidade contém uma razão própria. Direi que tal razão é análoga da razão que há na natureza e que as ciências da natureza procuram conhecer, sem terem a estultícia de pretenderem impor aos fenómenos naturais aquilo que o homem, na sua subjectividade, entende ser racional. Um exemplo desse conhecimento são as leis naturais ou científicas, seja a gravitação universal. Ela aí está a garantir o eterno equilíbrio dos corpos e dos astros e contra ela nada podem quaisquer veleidades raciocinantes, socialistas ou não.

- Quer isso dizer que a relação entre o homem e o mundo constitui uma realidade que, como a natureza, possui as suas leis invioláveis, a sua razão? O estudo dessa realidade tem o mesmo carácter científico que possui a física ou a biologia, não é isso? 

- Exactamente. E essa relação tem, entre os vários aspectos que apresenta, um aspecto económico. O conhecimento deste aspecto da realidade reside no sistema da concorrência ou economia de mercado. Procurar destruir este sistema é como procurar destruir a física ou a biologia. E ao proceder assim, o socialismo não é mais do que uma veleidade pretensiosa e vazia, mas cujas consequências podem ser, e têm sido catastróficas.

- Afirmou há pouco que a economia de mercado é o liberalismo... 

- Mais rigorosamente: o sistema mais aperfeiçoado da economia de mercado foi o liberalismo tal como começou a ser instituído na primeira metade do século XIX. Teve uma breve existência, viu-se alvo da feroz hostilidade do socialismo (sempre a fazer regressar a economia para formas de servidão humana mais opressoras do que as feudais, embora do mesmo género) e sofreu a adulteração a que o capitalismo o sujeitou através dos governos ditatoriais que – a partir da Alemanha da segunda metade do século XIX – organizaram a produção em monopólios e deram início ao planeamento económico.

Tinha certa dificuldade em seguir os argumentos expostos com uma minúcia que me parecia demasiado especializada e erudita. Tratava-se, porém, de argumentos que refutam tudo aquilo que diariamente ouvimos. Orlando Vitorino sentia as minhas dificuldades e por vezes interrompia a argumentação para dizer coisas como estas:

- Faço-me compreender?... Não sei se... Claro que em tudo isto existe uma certa minúcia e longas descrições Você quer extrair destas conversas uma entrevista. Não sei se será possível... você verá o que pode fazer com as notas que está a tirar... eu não teria talento para isso... E teria medo dos leitores...

Fiz mais perguntas, pedi mais explicações. Numa tarde, juntaram-se-nos alguns amigos. Depois eu fui reunindo os apontamentos, tentei elaborá-los jornalisticamente conforme pude, embora também eu não me reconheça com «talento para isso». Aí ficam em forma de entrevista as lembranças de algumas longas e demoradas conversas que gostávamos de ver traduzidas num breve curso. Oxalá Orlando Vitorino o possa vir fazer ao Funchal. As questões tratadas – socialismo, liberalismo, democracia, etc., são de uma actualidade premente. Delas, todos nós sabemos pouco mas é disso que soubermos que depende a vida que vamos viver ou que já estamos a viver.


sábado, 12 de julho de 2025

O Segredo do 25 de Novembro.

 


«O Partido Comunista mostra, desde a primeira hora, enormes aptidões para comover oficiais menos seguros de si. A sua arte consiste em pôr-se, na aparência, atrelado ao carro do MFA. As fortalezas melhor se tomam do interior. Com a vantagem de o MFA ser uma casa de vento.

Prestáveis, envolvendo os oficiais em celofane e cantos de sereia, os comunistas fazem uma colagem ao MFA. O sentido último é o da osmose com a estrutura partidária e sindical.

Na sua vasta finura, Álvaro Cunhal socorre-se de um trato pessoal bem cultivado. Põe todo o seu talento nessa operação de charme, e os cuidados de um jardineiro da Babilónia.

"Nunca lhes prodigalizei", afirma Mário Soares, referindo-se aos militares, "os sorrisos aliciantes de um Cunhal, jamais avaro de superlativos para qualquer oficial no activo".

O Partido Comunista delegava as suas obrigações revolucionárias nos oficiais devotos. Os militares eram os procuradores da sua revolução.

O gonçalvismo, para além de uma excessiva mácula pessoal, não tem assim qualquer marca de pecado original. É um subsistema político, derivado da estratégia do Partido Comunista.

E o general Vasco Gonçalves é simultaneamente um rosto e uma máscara.

O rosto de um médio burguês idealista, um engenheiro cambista no socialismo da velha escola soviética.

A máscara do partido que o empurrou e o manteve politicamente à tona.

Assim pagou também Vasco Gonçalves o odioso atribuível a outras personagens menos expostas.

Não tardaram as turras entre os militares. O contencioso entre os oficiais na orla do Partido Comunista e os moderados data, com gravame, de Novembro de 1974. O diálogo de Vítor Crespo com Vasco Gonçalves começou a ser espinhoso. O major Melo Antunes esboçara já um temível perfil de social-democrata.

Tudo por falinhas mansas.

Mas a ofensiva a oeste foi lançada na noite de 11 de Março. O MFA é institucionalizado no Centro de Sociologia Militar, no meio de grande exaltação.

Oficiais exigem a pena de morte para Spínola e os seus amigos. Listas de militares a eliminar, tivessem ou não a ver com o 11 de Março, foram brandidas por gonçalvistas em cólera.

A caça às bruxas começava. Chegara a hora, aproveitando a limpeza geral, de varrer os moderados. Nessa noite ia tudo na corrente. Em triunfo, agradecendo a Spínola a dádiva celeste que lhes permitia purificar as fileiras do MFA, os gonçalvistas pretendem excluir, do Conselho da Revolução, Vítor Crespo, Melo Antunes e Vítor Alves.


A perversão tinha início. Mas Crespo, ao tempo alto-comissário em Moçambique, não se deixou enrolar. Meteu-se no primeiro avião e apareceu no Conselho da Revolução, à hora marcada. Sentou-se no seu lugar com cara de poucos amigos.

Rosa Coutinho, porta-voz dos gonçalvistas, assegurou-lhe que teria assento no CR logo que acabasse a sua missão em Lourenço Marques. Crespo, porém, não foi no engodo. Ele e Sousa e Castro só deixaram de batalhar quando ficou claro que os três expurgados teriam no CR cadeira própria e sem favor.

Os moderados rejeitavam a primeira camisa de forças. Os gonçalvistas encolhiam ligeiramente as garras. Crespo, Antunes e Alves reagiram como quem está a perder o pé. Mas também já com a noção de que o 25 de Abril se afunilava sem eles.

Começou aqui, para nove conselheiros, um demoníaco jogo de poder. Meses depois, no pino do Verão, os cartoons no matutino gonçalvista O Século retratá-los-ão a conspirar na praia com o embaixador Frank Carlucci. Eram os fiéis servidores da reacção mais negra.

A Assembleia do MFA, num tempo em que a fogosidade do verbo substituía a competência militar e a qualidade humana, transformou-se num inamovível parlamento.

Duzentos e quarenta activistas das Forças Armadas, saídos em golpe do vazio de poder numa noite de Março, erigiam-se em orgãos de soberania. O País não lhes passou procuração.

(...) Mas que faz correr Vasco Gonçalves?

A fé no socialismo de modelo soviético, a que outros chamam capitalismo do Estado monopolista.

A tese central é a do atraso da consciência das massas. A maioria do povo não possui a elucidação e a maturidade políticas para construir o socialismo por suas mãos.

Sendo assim, a construção do socialismo carece de um aparelho de vanguarda, teoricamente dotado e clarividente, que agregue a capacidade doutrinária e o poder militar.

A construção do socialismo passa ainda por uma revolução cultural, que dilate a base social e dê às massas incultas a noção do seu próprio dever histórico.

A vanguarda auto proclamada defenderá, a todo o transe, os interesses mais profundos das massas adormecidas.

Os meios de produção são entretanto apropriados pelo Estado, máquina que dilata as suas malhas burocráticas, age com as suas polícias e tem sempre razão.

A apropriação dos meios de produção deixa de ser individual, como nos países capitalistas, e passa a ser feita pelo Estado, ou seja, por uma nova burguesia burocrática que controla os orgãos do Estado e representa o povo.

Esta vasta felicidade colectiva parece ter sido criada, segundo os devotos, na União Soviética, na Checoslováquia ou na Polónia. Tratava-se agora de aplicar o esquema a Portugal.

Construir o aparelho de vanguarda, eis a prioridade que o gonçalvismo põe em marcha após o 11 de Março.

O estado-maior dos pró-comunistas nas Forças Armadas é o próprio staff do general Vasco Gonçalves, que Álvaro Cunhal articula com mãos de mestre.

As malhas são estendidas com eficácia meticulosa. O domínio da 2.ª Divisão do EMGFA (Informações Militares) e da 5.ª Divisão (Relações Externas) são os focos de onde irradia a revolução ao vento leste.

O COPCON, dirigido por Otelo, surgira como forma de apaziguar fricções entre o general Spínola e a comissão coordenadora do MFA. Contraponto do poder militar do general, o COPCON foi também o preço que Spínola pagou pela crise Palma Carlos e pela ida de Tomás e Caetano para o Brasil.

Mas os cargos de chefes dos estados-maiores do Exército, da Armada e da Força Aérea, ocupados por oficiais graduados do MFA, escapavam igualmente ao presidente Spínola e ao general Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.


staff de Costa Gomes servia para as ligações à NATO, e pouco mais.

Por estas frestas passou a carga de cavalaria dos gonçalvistas. Na sequência do 11 de Março, Almada Contreiras tomou conta da 2.ª Divisão e Ramiro Correia instalou-se na 5.ª Divisão.

Contreiras chefia o Serviço de Direcção e Coordenação das Informações. O SDCI tem o raio de acção de uma polícia política. E utiliza-o bem.

Correia dirige a Comissão Dinamizadora Cultural do MFA, espécie de Superministério da Cultura. A CODICE vai empenhar-se em galvanizar os cépticos para a empresa da Revolução.

Na Armada, os gonçalvistas edificam uma estrutura centralizada por células de tipo "leninista". Têm a cobertura total do CEMA, almirante Pinheiro de Azevedo.

Colocam Eurico Corvacho na Região Militar do Norte. Infiltram o COPCON para "segurar" Otelo. Tentam controlar o Conselho da Revolução. Empenham-se em que as assembleias do MFA não lhes escapem das mãos.

O gonçalvismo liga-se, no plano civil, a muitas autarquias locais. Controla-as o MDP, rosto domingueiro do PCP. Os quadros do MDP, partido com 4 por cento dos votos, detêm um poder desproporcional ao seu eleitorado. Povoam zonas consideráveis da administração pública.

O gonçalvismo apoia-se na Intersindical e no ministro do Trabalho, Costa Martins. Numa notável sincronia, ministério e central sindical agem como bombeiros dos conflitos laborais.

É o tempo do Partido Comunista como partido da ordem, ferozmente antigrevista, que atribui o clamor operário às influências da CIA.

O gonçalvismo serve-se da comunicação social e cria entre as redacções dos jornais e a 5.ª Divisão um cordão umbilical.

A RTP e a Emissora Nacional, o Diário de Notícias e O Século destilam um noticiário tendencioso e panfletário. Rui Montês, Faria Paulino, Sobral Costa, são alguns dos oficiais encarregados do controlo.

Correia Jesuíno é o ministro da Comunicação Social. Duran Clemente o telegénico educador do povo.

No SDCI coordenam-se escutas telefónicas. A coacção torna-se frequente. Gente há que age sob ameaças veladas. Na Comissão da Extinção da PIDE/DGS, controlada pelo tenente naval Judas, fabrica-se a chantagem com os dossiers policiais e escondem-se passados não inteiramente meritórios.

(...) A 5.ª Divisão é a oficina ideológica.

Coordena a intoxicação do público e difunde um arremedo de marxismo que nada tem a ver com Marx. Produz textos com ansiedade e mau gosto, em trejeitos juvenis de queimar etapas.

Com perseverança, a 5.ª Divisão torna-se um Estado dentro do Estado e arvora-se em 5.ª força dirigente do aparelho militar.

Fixa antenas nos quartéis, os grupos de dinamização de unidades, destinados à "educação política" dos soldados.

Elabora e distribui, gratuitamente, o Boletim das Forças Armadas, com tiragens superiores a 100 000 exemplares.

Promove estágios para quadros do "futuro MFA", à laia de escolas para comissários políticos.

Lança campanhas de dinamização cultural no Norte, de um conteúdo paternalista, medíocre e deslocado que pouco mais consegue do que irritar as populações camponesas.

Cria e domina as comissões nacionais de sargentos, nos três ramos militares.

Faz tudo isso de forma apressada.

Num documento exemplar, divulgado em Maio, a CODICE explicava que nas democracias populares o povo é que estava no poder.

"Socialismo proletário é o mesmo que democracia popular. Há socialismo proletário na União Soviética, na Hungria, na Alemanha Oriental, na Bulgária, em Cuba", afirmava-se no texto.

A abertura de espírito da 5.ª Divisão não chegava à Jugoslávia, à Roménia ou à China, países demasiado heterodoxos para o seu gosto.

Em Portugal, garantia a 5.ª Divisão, o 11 de Março tinha criado condições para a democracia popular.

"Uma democracia burguesa é só democracia de nome, de fachada", dizia o texto.

A 5.ª Divisão tinha igualmente ideias sobre a composição do "povo". Segundo os seus ideólogos, pertenciam ao "povo" os operários, os camponeses, os empregados de escritório e os empregados do comércio.

Mas já não pertenciam ao "povo" os "administradores", os "gerentes" e os "encarregados", que eram, sem dúvida, "verdadeiramente lacaios dos exploradores".

A generosidade da 5.ª Divisão ia até aos empregados do comércio.

Mas a 5.ª Divisão ia ainda mais fundo no seu pensamento. Falava do "comunismo" como derradeira etapa do socialismo proletário em construção depois do 11 de Março.

"Então entra-se no comunismo. Aí as riquezas serão abundantes e os trabalhadores estarão educados para não terem exigências supérfluas, pois as suas necessidades nunca visarão o supérfluo, mas sim o essencial.

Saímos então do 11 de Março rumo ao comunismo.

Delirante discurso, o da 5.ª Divisão, num país de camponeses que amam sobretudo a terra e aspiram à sua posse.

Mas a mensagem da 5.ª Divisão era a palavra oficial do tempo.

Diário do Minho, temeroso, registava as intenções do MFA quanto à sovietização do País. E citava, a medo, discursos de Mário Soares em que o dirigente socialista negava ao modelo de Leste a condição de libertador do homem.


Mas onde vinha esta obra teórica da 5.ª Divisão?

Era, nem mais nem menos, do que a transcrição, sem indicação da fonte, de uma brochura eleitoral do Partido Comunista. Essa brochura foi distribuída pelas comissões concelhias de Alenquer, Sobral de Monte Agraço, Mafra e Torres Vedras.

A 5.ª Divisão copiara-a integralmente, acrescentara-lhe um lead, e toca a andar.

(...) O Partido Comunista visava efectivamente a conquista do poder. Não é outra a sua vocação, e para a cumprir lutou meio século, com o seu património de heróis e mártires, os quatrocentos anos de cadeia evocados como troféu.

Mas cometeu um erro crasso: aliou-se aos esquerdistas, como quem reúne filhos tresmalhados, e subestimou o peso social da pequena e média burguesia. A aliança com os esquerdistas implicou uma dinâmica de afogadilho que assustou as classes médias.

Numa primeira fase, o PCP queria utilizar os radicais para deteriorar, para desorganizar e para agredir. Numa segunda fase, tinha em mente ceifá-los, tirar-lhes o tapete debaixo dos pés na altura própria e tomar o poder com a face lavada de um partido responsável.

As sereias esquerdistas são fatalmente pequenos capatazes do alarido.

O Partido Comunista é a única organização política capaz de desenhar o ataque aos pontos nevrálgicos e a ruptura nos momentos cruciais. É impossível aos esquerdistas aliarem-se ao PCP sem fazerem o papel de bobos.

O fracasso comunista entre as classes médias deveu-se ao delírio triunfal, ao espírito de igreja fechada, ao aventureirismo ávido dos teóricos de encomenda da 5.ª Divisão, à falta de perspicácia de dirigentes com uma fidelidade sem quebra a Moscovo.

A incompreensão da realidade portuguesa, a falta de respeito pelos valores das classes médias, a intoxicação permanente, tornaram o Partido Comunista extremamente odiado.

A reacção era também necessária para compor esse cenário de papel pintado em que Álvaro Cunhal imaginou o País. Mas essa reacção foi o Partido Comunista que a criou em grande parte, que a estimulou com os seus desvarios de novo-rico.

Ademais, a maioria dos portugueses sem atraso de consciência não pensa que o socialismo da Checoslováquia ou o socialismo da União Soviética sejam empolgantes paradigmas de liberdade humana.

Mas, como em todos os galopes, a prática do Partido Comunista não foi cronometrada, nem isenta de acidentes de percurso.

Houve divergências na sua direcção quanto à utilização da FUR, por exemplo. Em certos momentos, o PCP parecia colhido de surpresa, ultrapassado pelos radicais e sem outro remédio que entrar na barca para tentar domar a onda.

Num primeiro instante, o PCP parecia dirigir e marcar o timing do assalto. Num segundo instante, o PCP pensa em refrear os esquerdistas e lançá-los pela borda fora. Seria assim no 25 de Novembro.

Só que, no 25 de Novembro, o Partido Comunista não teve um segundo instante. Viu que a relação de forças lhe era desfavorável, que do outro lado havia um comando organizado e uma vontade política de lutar - e retirou-se candidamente da cena, como se não fosse nada com ele.

Como diz Melo Antunes, toda a prudência de Álvaro Cunhal, o tacto frio de animal político, não o impediram de, por instantes, ter perdido a noção da realidade portuguesa e acreditado numa ruptura violenta que reeditasse o Outubro de 1917.

A União Soviética, porém, nunca acreditou. Não queria também: ao repartirem o globo como uma melancia, nas novas Tordesilhas de Vladivostoque, o Kremlin e a Casa Branca acordaram na permanência de Lisboa na esfera ocidental.

Os Soviéticos esperaram para ver. E deram a cumprir ao Partido Comunista uma tarefa estrategicamente mais importante do que um duvidoso Belém vermelho: Angola.

A partir da batalha de Luanda, o PCP e os militares afectos boicotaram os acordos de Alvor. E a investida cubana e soviética em Angola, essa fulminante quão inovadora forma de exportar o socialismo, beneficiou da desastrosa actuação de Henry Kissinger.

Melo Antunes, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, avistou-se três vezes com o secretário de Estado norte-americano: e encontrou um homem apostado sobretudo nos acordos SALT, disposto mesmo a dar alguns peões a comer à União Soviética, e descrente numa invasão militar de Angola.

Como toda a Administração Ford, Kissinger não percebia África, e somou malogros sobre malogros.

(...) O Partido Comunista tinha um plano sistemático de desorganização das Forças Armadas.

São os radicais do Exército que se apoderam de postos-chave, que fazem a propaganda da insurreição, que enquadram milícias armadas. Mas é o Partido Comunista que colhe os lucros desse trabalho.

O fim último do desgaste é a paralisação do Estado. Pelo caminho, usa-se o terror, a intimidação, a conversão de ateus e o folclore radical. Uma bela manhã, o País surgirá esgotado, minado até à medula, sem oferecer resistência - e sobre o caos constrói o Partido Comunista a nova ordem.

Cunhal dirá mais tarde, depois do vendaval:

"Se o PCP tivesse ido a reboque do radicalismo esquerdista e do desejo de uma aventura de tipo insurreccional, como pretendiam alguns irresponsáveis, o movimento operário iria para um desastre incalculável que abriria as portas ao fascismo".

Está certo. Mas o álibi de Cunhal é mais para consumo interno e está carregado de má consciência. Não foi o secretário-geral do PCP que garantiu a Oriana Fallaci a inviabilidade de uma democracia parlamentar em Portugal?

A partir daí, quem é irresponsável?».

José Freire Antunes («O Segredo do 25 de Novembro»).

Toda a Verdade Sobre o Angoche.

  Foi graças a O DIABO que o “caso Angoche” não caiu no esquecimento. Uma série de reportagens publicadas no jornal de Vera Lagoa levantou a...