«Por ocasião do estabelecimento da Federação da Malásia, em 1963, o então Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, Harold MacMillan, enviou ao Governo daquele país uma mensagem de felicitações, e nesse documento salientava que a Federação constituía um Estado "multirracial". Discursando naquele ano perante a ONU, o antigo Presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, afirmou que o seu país constituía uma "sociedade multirracial". Dirigindo-se à imprensa, em Copenhague, o Presidente Jules Nyerere, da Tanzânia, defendeu a manutenção de "comunidades multirraciais em África". Alguns orgãos de grande imprensa mundial têm, nos últimos anos, invocado o multirracialismo como ideal supremo que deve ser prosseguido. Estamos assim perante uma série de afirmações responsáveis, e que têm por traço comum a defesa e o elogio do multirracialismo como objectivo a atingir pelas sociedades humanas.
Afigura-se que Portugal apenas se poderá regozijar com o facto. Mas não poderá nem deverá Portugal eximir-se a sublinhar que é o autor da noção de multirracialismo, que reivindica com firmeza e algum legítimo orgulho, e que foi Portugal o país que há séculos lançou aquele conceito e aquela expressão. Muito mais importante do que a simples criação da palavra ou do conceito teórico do multirracialismo, no entanto, é a criação da própria realidade viva a que se aplica o vocábulo. E esse mérito cabe aos portugueses, e isso desde há séculos. Porque foram os portugueses que levaram à África e ali pela primeira vez implantaram a noção de direitos humanos e a noção de igualdade de raças. Por estes dois conceitos se tem guiado através dos séculos, e neles tem insistido e teimado, afrontando a hostilidade de alguns, o desdém de outros, a incompreensão de quase todos. Não vai longe o tempo em que os portugueses metropolitanos eram olhados por algumas potências como europeus de segunda classe, e isso porque através do mundo se misturavam, e conviviam, e se identificavam com os povos da África ou da Ásia. Mas agora parece que se vão alterando os ângulos de visão, e que muitos começam a encarar a realidade por um prisma igual ao dos portugueses. Por isso caberá fazer duas observações. E a primeira é esta: quando no mundo se exalta o multirracialismo seria nobre e mostrar-se-ia respeito pela história se se dissesse com simplicidade que Portugal é o autor do conceito e da realidade que está por detrás do conceito. E depois parece justo que os defensores do multirracialismo nos seus respectivos países, para serem lógicos e objectivos, defendessem também ou aceitassem que Portugal o defendesse no quadro da nação portuguesa, porque foi esta que lhe deu estrutura e vida. Quer isto dizer que o multirracialismo português, além de ter procedência histórica e doutrinal, tem pelo menos tanta legitimidade como o de outros povos e nações.
Não estão em causa ideologias mas interesses, e o terceiro mundo prefere esquecer os princípios doutrinários portugueses porque admiti-los seria aceitá-los. Além do mais, Portugal fornece um tema de ataque, e constitui um dos poucos denominadores comuns à artifical unidade do terceiro mundo africano. Portugal tem procurado manter uma atitude conciliatória e de colaboração. Parece fora de dúvida que a posição assumida pelo terceiro mundo não é a mais consentânea com os interesses reais da África. Do que se trata efectivamente é de alimentar as populações; de prover à sua educação e cultura; de criar condições de progresso económico, social e político; de cooperar internacionalmente no comércio, nos transportes, nas comunicações; e em nenhum destes domínios se dá um passo com atitudes irresponsáveis e emocionais, ou com debates virulentos, ou com apelos a mitos mais ou menos heróicos. Por isso Portugal tem proposto um diálogo franco e prático com os países africanos, e muito particularmente com os que sejam seus vizinhos em África. É da tradição portuguesa, na Europa como na África ou na Ásia, dar a coooperação dos serviços e auxílios que for possível prestar. Àquele diálogo não se sabe que hajam sido postas, pelo lado de Portugal, quaisquer condições prévias; mas, não obstante, tem sido negativa e desprovida de espírito construtivo e realista a atitude da maioria dos Estados africanos.
Como resultado do movimento anticolonialista, tem-se verificado, entre outros fenómenos, uma verdadeira obsessão na conquista da amizade dos povos asiáticos e africanos. Da parte de muitas potências, grandes e médias, multiplicam-se e prodigalizam-se os gestos nesse sentido, e toda uma política se estruturou com o intuito de obter a adesão do terceiro mundo. Trata-se de um leilão político ou concurso de popularidade. Abrange toda uma vasta gama de variantes: desde as meras declarações verbais às consideráveis ajudas económicas, financeiras e militares. Dir-se-ia não terem limites a generosidade, o altruísmo, o desinteresse daquelas nações em face do terceiro mundo, asiático ou africano. E a essa política tudo aquelas nações parecem dispostas a sacrificar: os princípios, a lei, a moral, os seus aliados, até o que se afigura serem os próprios interesses a longo prazo. Ter-se-á de admitir, sem relutância, que Portugal não tem o monopólio do idealismo e da generosidade, nem o exclusivo da sabedoria e da experiência; e por isso não haverá dificuldade em reconhecer que outros podem determinar-se por iguais valores; mas também não lhes pertence qualquer monopólio de ideal ou de saber. Mas as grandes e médias potências deveriam também confessar - porque isso nada tem de pejorativo - que prosseguem interesses nacionais, e que os seus objectivos não são desinteressados na maior parte das vezes. Por isso se deve acentuar, porque se trata de um facto, que por detrás daquela política de captação e amizade estão também, e sobretudo, os objectivos estratégicos, os desígnios políticos, os interesses dos grandes monopólios do capitalismo internacional, o desejo de abrir novos mercados, a sofreguidão na corrida às matérias-primas, a ânsia do domínio ideológico.
Mas a política de descolonização e de aliciamento do terceiro mundo, além daquelas razões, funda-se também numa visão especial que a Europa e a América do Norte têm hoje de si próprias e do terceiro mundo. Sociedades altamente evoluídas, intensamente industrializadas, caracterizadas por uma crescente afluência ou opulência de que participam as grandes massas, materialmente refeitas da segunda guerra mundial, encontram-se distantes, todavia, do equilíbrio social e psicológico, e sobretudo muito longe de haver atingido a estabilidade política no plano internacional. Não há já guerra, pelo menos no sentido clássico, mas não se firmou ainda a paz; e a descolonização apareceu como mais um instrumento da revolução mundial que é um dos mais perturbadores rescaldos da última guerra. Para aqueles países, o colonialismo no quadro do século XIX e dentro do regime do pacto colonial foi um instrumento de expansão e de poderio na luta entre impérios. A descolonização, que é uma forma reconvertida do colonialismo, opera de forma idêntica; e as sociedades afluentes e pletóricas do hemisfério norte utilizam friamente o terceiro mundo na sua luta pelo poder. Comunidades industrializadas, de apurado nível técnico e cultural, olham para as sociedades agrárias e subdesenvolvidas do terceiro mundo como campos onde, sob novas formas, se pode expandir a actividade das primeiras. Não há, entre umas e outras e salvo algum caso inusitado, qualquer elo afectivo ou emocional, e as opiniões públicas afluentes, tendo posto de parte as gerações que construíram e conservaram os velhos impérios, mostram-se indiferentes aos aspectos morais e emocionais de um passado recente, medindo o abandono e a abdicação em termos de contabilidade imediata. Não terão os Governos aceite de boa-mente este ponto de vista utilitário e de curto alcance; mas ficaram dependentes de um sufrágio popular expresso em números e foram escravos de apoios partidários; e como na lógica das instituições estava uma demagogia que conduz cada partido a sobrepor-se aos demais em ousadia política e extremismo para assim minar o terreno eleitoral da facção adversária, depressa tudo foi subordinado à política do mais oportuno, do mais fácil e do mais imediatamente económico e rendoso. Com simplismo se ergueu a teoria de que a descolonização trazia a prosperidade na metrópole - porque eliminava as despesas de soberania, diminuía os investimentos, poupava a técnica e a mão-de-obra especializada, e evitava atritos políticos e problemas de consciência. Num breve período logo após a descolonização os factos pareciam confirmar aquelas presunções. Foi um mito. Mas durou pouco a ilusão. Aquelas presunções teriam sido exactas se, após a descolonização e quebrados os vínculos políticos, se houvesse mantido o mesmo exclusivismo de relações entre a antiga metrópole e as antigas possessões. Mas como a descolonização foi provocada, e apressada, e forçada por novos impérios, ávidos e codiciosos, para estes se transferiram as antigas relações metrópole-possessão. E hoje têm de considerar-se findos todos os transitórios benefícios da descolonização. Esta é a realidade descarnada, em termos puramente práticos, e por tudo isto pareceria que o terceiro mundo procederia avisadamente se encarasse com alguma reserva as amizades que de súbito se multiplicam e cuja finalidade é o domínio directo, ou pela subversão, ou através de instrumentos internacionais. E também terá de se confessar que, à parte uma ou outra excepção, a descolonização traiu os descolonizados, na medida em que não lhes trouxe paz, nem progresso, nem estabilidade, e em que os colocou, enfraquecidos e desorientados, à mercê da luta internacional pelo poder. Foi outro mito. Por isso muitos começam a perguntar-se o que haverá para além das declarações de amizade, e outros interrogam-se sobre se a cortina de subversão que desceu sobre a Ásia e a África não será alheia aos interesses daqueles continentes. Isto é particularmente verdadeiro quanto à África. Mas neste ponto parece lícito a Portugal dizer que, além de pioneiro do multirracialismo, foi também dos primeiros amigos da África, e decerto não se estranhará que cinco séculos de íntima convivência hajam emprestado a essa amizade um cunho de desinteresse e de sinceridade insusceptíveis de suspeita. Por isso tem Portugal insistido em manter o seu diálogo com a África num quadro puramente africano, e a essa orientação só tem sido obstáculo a interferência dos poderes alheios ao continente. Por outro lado, a relação metrópole-ultramar não foi constituída, na estrutura da nação portuguesa, em obediência e na linha da política europeia do século XIX e em termos de pacto colonial; e não temos do ultramar a visão que, por motivos diferentes, se elaboraram na América e na Europa do após-guerra quanto à África. A partir destas premissas, que são resultantes da história comum, não é viável contabilizar o ultramar.
Dirige o terceiro mundo a Portugal algumas acusações, ou directamente ou através das Nações Unidas. Seriam deploráveis as condições existentes nas províncias do Ultramar; constituiria a política portuguesa uma ameaça à paz e à segurança da África e até do Mundo; e o bloco africano, na impossibilidade de uma crítica válida, classifica o nosso idearium ultramarino de retrógrado, de obscuro, ou de anacrónico. Estes três capítulos cobrem toda a matéria de acusação. Mas temos de excluir os dois primeiros. Porque o bloco africano, embora indirectamente e com relutância, admite que Angola e Moçambique estão na vanguarda do desenvolvimento da África negra; e reconhece, muito em surdina e embora proclame o contrário no Conselho de Segurança, que na realidade das coisas Portugal não ameaça nem a paz nem a segurança da África. Preferem, todavia, não investigar estes aspectos do problema, e isso porque as conclusões a que seriam forçados, se fizessem o exame que lhes é oferecido, não lhes permitiriam continuar a lançar contra Portugal as mesmas alegações. Por isso o bloco africano concentra-se no exame do problema puramente político levantado em torno do idearium português, e insiste em conhecer o conceito português de autodeterminação. Este foi claramente definido, e encontra-se de resto reflectido em documentos públicos e oficiais das Nações Unidas: para Portugal, a autodeterminação significa o consentimento ou a adesão da população, expressos através de actos administrativos e políticos praticados ao longo do tempo, a uma determinada estrutura do Estado e forma do Governo. A pureza e a procedência deste conceito não podem ser validamente contestadas por ninguém porque, mesmo no critério extremo da maioria da Assembleia da ONU, reside nos desejos manifestados pelas populações a origem de toda e qualquer legitimidade das estruturas políticas. Corresponde este conceito, na essência, à velha fórmula de Jefferson que legitimava o Governo pelo consentimento dos governados. Mas tem-se verificado que, para o extremismo africano (coacto aliás pelos poderes alheios à África), o conceito só é válido desde que rodeado de condições e executado em circunstâncias que necessariamente, inevitavelmente, conduzam aos resultados predeterminados que se pretendem, e só a esses. Entre essas condições, e para que fosse aceite como válido um acto de autodeterminação, figura a retirada de todas as forças militares e de segurança; a autorização para livre funcionamento nos territórios dos partidos políticos existentes no estrangeiro; amnistia; reconhecimento dos chefes políticos indicados pela Organização da Unidade Africana; e supervisão pelas Nações Unidas de qualquer acto ou processo de autodeterminação. Como é óbvio, este condicionalismo assegura por antecipação os objectivos que as Nações Unidas pretendem. Para o grupo africano, ou para as forças que o comandam, apenas tem sido válida a autodeterminação que fatalmente imponha o desmembramento da estrutura da Nação portuguesa, e isso nos termos e pela forma a estabelecer pelo grupo africano. Posto o problema nesta base, não é susceptível de discussão, até porque nenhuma nação soberana pode partilhar com outras ou com quaisquer organismos internacionais problemas políticos que só a essa nação respeitem. Daqui o choque de posições políticas. Mas seria simplista reduzir esse choque a um conflito de noções ideológicas ou políticas, ou ver naquele somente uma luta entre a nação portuguesa e os países africanos. É muito mais profundo e amplo o problema, e estão envolvidos factores que ultrapassam em muito aquele quadro restrito. Porque, por detrás dos mitos que se alegam, estão as realidades materiais: e são estas que se buscam».
Franco Nogueira («Terceiro Mundo»).
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