quinta-feira, 18 de março de 2021

"Acuso", a morte de Humberto Delgado.

 


«Em Janeiro de 1964, realizava-se a II Conferência da Frente Patriótica, e o General [Delgado], agora presente, conseguiu impor a constituição da Junta Revolucionária Portuguesa e do Comando Operacional.

Do que consta das suas resoluções, oferecemos a seguir um extracto. Nelas, proclamava-se a urgência absoluta de produzir a luta a curto prazo. Foram seus signatários os membros da II Conferência da Frente Patriótica, os seus dirigentes, o General Humberto Delgado, o secretário do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, e o prof. Rui Luís Gomes.

"... Portugal atravessa a MAIOR e MAIS GRAVE crise da sua longa história; a situação económica agravou-se; grandes sacrifícios são impostos à população trabalhadora; as classes médias, os pequenos e médios industriais, os pequenos e médios comerciantes, os pequenos e médios agricultores, pagam pesados impostos; a dependência crescente da economia nacional aos interesses estrangeiros, por concessões negociadas em troca de investimentos e empréstimos que põem em PERIGO a independência nacional e que tomam o aspecto grave da utilização do território português por forças militares de outros países; a conferência... concordou em APRESSAR o processo revolucionário... Para a preparação NO MAIS CURTO PRAZO das condições insurreccionais; a situação do país é EXTREMAMENTE GRAVE; os compromissos aceites pelo governo fascista... põem em PERIGO a independência nacional e o futuro do País".

"(...) Em conclusão, verifica-se que, quer os dirigentes da Frente Portuguesa, quer os da Frente Patriótica, reconhecem nos comunicados e resoluções da I e II Conferências, de que todos foram responsáveis e signatários, a urgência duma acção revolucionária, invocando até razões de salvação nacional e outras de extrema gravidade".

Mas, logo em 27/1/964, em entrevista concedida ao jornal francês L'Humanité, reproduzida no Portugal Democrático n.º 81, de Março, de 64, Álvaro Cunhal declarava não existirem, na realidade, condições para o desencadeamento dessa luta, devendo o Partido prosseguir no seu trabalho de 'catequização' e organização de massas. O Secretário-Geral do PCP traía, assim, a proclamação e as resoluções de que pouco antes fora signatário.

Mas, mesmo à luz dessa traição, alguma coisa continuava errada.

Como aceitar-se que Álvaro Cunhal se tivesse disposto a apresentar-se, publicamente, como um homem de duas caras, traidor das suas próprias resoluções?

Só uma razão de bastante força, ou de interesse bastante, o levaria a isso. Mas o quê?

O plano imediato do Partido Comunista Português consistia, em linhas gerais, em inutilizar, para a acção, o General Humberto Delgado, impedindo-o de levar a cabo a derrubada do fascismo, por forma a que, no interior do país, fossem, ao longo dos anos, criando as condições necessárias à sucessão inevitável da ditadura salazarista, pela cunhalista.

Um tal programa deveria ser levado a efeito com um mínimo de consequências e repercussão. Era, contudo, necessário realizá-lo antes que fosse demasiado tarde; em teoria, antes de 1965, ano em que se realizariam as eleições presidencial e para deputados.

Enquanto o General Humberto Delgado se manteve pelo Brasil, o Partido limitou-se a sabotar, uma após outra, as suas tentativas de promoção de acções armadas, quer elas tivessem o objectivo de criar um clima revolucionário, quer o de produzir a queda do governo salazarista. E foi assim que a revolta de Beja se perdeu, antecipadamente, em Lisboa e Marrocos; que, posteriormente, um elemento ligado ao Partido deu descaminho duma remessa inicial de material de guerra, que o General fizera chegar ao interior para, em consequência do malogro da operação de Beja, aproveitar o clima que dela resultou, por forma a levar ao desenvolvimento dum processo revolucionário; que as grandes manifestações académicas e populares, que se estenderam pelo primeiro semestre de 1962, viriam a quebrar pela acção pacifista dos agentes do Partido, empenhados na defesa das acções legais e semi-legais, que o Povo Português [?] repudiava, por inúteis e revolucionariamente ultrapassadas.

Mas a revolta de Beja, em consequência do clima post-eleitoral de 1961, a envergadura, a frequência e o carácter, das manifestações de 1962, foram o sinal de alarme, quer para o governo, quer para a direcção do Partido. Um e outro, viram no ano eleitoral de 1965 um grave período de crise, no qual poderiam jogar-se forças e circunstâncias, que levassem à queda da ditadura. Daí resultou que, ambos, circunstancialmente irmanados, não hesitariam em conjugar a sua acção contra o General, sem que para tanto fosse necessário qualquer acordo contratual.


Assim, o Partido Comunista Português, através da fachada da Frente Patriótica e a pretexto da formação duma frente unitária, chamou a si, em Janeiro de 1964, o General Humberto Delgado, na intenção de o controlar e de, por qualquer forma, o impedir de preparar convenientemente a acção a desenvolver em 1965.

(...) Recebido com honras de Chefe de Estado e instalado no Palácio Presidencial (Palais du Peuple, Villa 3) Humberto Delgado e Ben Bella habituaram-se a conversar e a passear pelos jardins nas horas de lazer do Presidente. Dessas longas conversas surgiu o oferecimento para uma ajuda concreta à Oposição Portuguesa: convidado a definir-se, o General, dentro da amplitude que perspectivara, apresentou-lhe um plano, que foi aceite sem limitações nem reservas. O Presidente argelino punha, imediatamente, à disposição de Humberto Delgado, fundos, instrutores, instalações, alimentação, armamento e transporte, para um total de 600 homens, a mobilizar pelo General; mais se oferecia para uma ajuda complementar posterior, que poderia incluir o empréstimo de aviões militares.

(...) Demonstrarei que o desastre de Badajoz resultou da conjugação dos esforços da Frente Patriótica e da PIDE, coordenados num longo plano de acção, de conluio com o PC e o "grupo" Mário Soares, objectivamente destinado à eliminação do General.


Demonstrarei que aqueles que o traíram são precisamente os mesmos - todos eles hoje guindados ao Poder, nas altas posições políticas e administrativas deste País devastado - que agora, face à espontaneidade das manifestações do sentimento popular e às homenagens do Povo Português ao seu ídolo morto, se desfazem em elogios à própria vítima.

Depois de a terem traído.

Depois de a terem insultado, vilipendiado.

Depois de terem preparado e perpetrado o seu assassínio.

Mais coerente, apenas Álvaro Cunhal se tem mostrado moderado ao participar nessa farsa ridícula, enquanto Mário Soares, na ânsia de poder ainda prolongá-la, dominá-la para a própria salvação, promete, para próximo, justiça - a SUA JUSTIÇA.

Mário Soares o anunciou: "Soou a hora da Verdade".

No seu discurso televisionado - brevemente, com assustada celeridade - ainda arriscou dois curtíssimos períodos, perdidos num oceano verboso:

"Os Pides começarão a ser julgados. O Julgamento do General Humberto Delgado far-se-á igualmente ainda este ano".

Mortos Amadeu Cabral, Pedro Soares, Arrigo Repeto, Dr. Bisogno, Dr. Robles e Fernando Oneto, poucas ou nenhumas testemunhas restam para acusá-lo. Conta agora com a cobardia humana generalizada neste País. Se algo há em que Cunhal o apoie secreta e tenazmente é na manutenção do silêncio, na ocultação da Verdade sobre o assassínio de Delgado.

Contudo, a Espada de Dâmocles mantém-se suspensa sobre a sua cabeça e as dos seus acólitos do hediondo crime perpetrado a distância.

(...) que melhor expediente de dissimulação pode ter um criminoso na iminência de ser desmascarado, do que imiscuir-se entre os parentes da vítima, transportando o caixão sobre os ombros, carpindo em uníssono sobre a campa, comungando, embora teatralmente, da mesma dor e indignação?

Um actor, um advogado pode fazê-lo - sabe fazê-lo.


Mário Soares insinuou-se, arteiramente, advogado da vítima, infiltrou-se no seu meio - o melhor baluarte contra a suspeita - e multiplicou declarações à imprensa, apontando furiosamente os assassinos da PIDE, exigindo a justa punição.

Mas não bastava. Tornava-se-lhe igualmente imperioso justificar a origem da denúncia que acicatara a matilha pidesca. Só assim poderia sacudir as lamacentas suspeitas que o envolviam, incriminando globalmente com ele todo o seu Movimento.

Era-lhe pois imprescindível indigitar hipotéticos culpados; acusar inocentes; alastrar a Dúvida por mais vasto campo.

Para tal escolheu, por "bodes-expiatórios" Mário de Carvalho, Ernesto Bisogno e Henrique Cerqueira.

(...) O inquérito à Oposição não se fez. E pululam por aí indivíduos que foram os "donos" da Oposição Tradicional; que, permanentemente, colaboraram com a PIDE. Uns, para eliminarem concorrentes incómodos, como Álvaro Cunhal. O secretário do PCP, sempre que alguém lhe fazia sombra no Comité Central, acusava-o de ladrão e denunciava-o à PIDE - como a Francisco Martins Rodrigues... Outros, por ambição e vaidade pessoal, como Mário Soares, primeira "cimeira" da política nacional, que nunca fez fosse o que fosse contra o regime anterior, desde que para isso tivesse de arriscar a pele, conquanto sempre lograsse manobrar em proveito próprio. O seu papel, como advogado da família Delgado, teve essa finalidade exclusiva. Exilado em São Tomé, fruía de um ordenado de dezenas de contos do Grupo CUF; exilado em Paris, tinha-o do Grupo Bulhosa - dois grupos financeiros ligados ao salazarismo, que nunca pagariam ao "inimigo" do governo fascista, sem o acordo tácito deste.

(...) No seu "Portugal Amordaçado" [Mário Soares] conta-nos que a "a partir de 1965, a vigilância policial que sobre ele se passou a exercer tornou-se verdadeiramente asfixiante. "Os meus telefones e correspondência eram controlados em permanência e por forma grosseira, assim como todos os contactos que tinha e as deslocações que fazia (pág. 540). (...) "A pouco e pouco o círculo policial foi-se apertando e eu tinha a sensação nítida - partilhada aliás por todos os meus amigos - de que o Governo procurava um pretexto, mais ou menos airoso, para me inutilizar a título definitivo (...) o pretexto chegou em fins de 1967, com o rebentar do chamado escândalo sexual ou dos 'Ballets-Rose', caso em que apareceram envolvidas algumas personalidades gradas dos meios financeiros e mundanos portugueses, com a participação, ao que se disse e escreveu, de três membros do Governo de Salazar.


"A primeira vez que ouvi falar no assunto foi em casa dos meus amigos Sofia de Melo Breyner e Francisco Sousa Tavares. O nosso colega Joaquim Pires de Lima, regressado de uma viagem a Paris - e então muito interessado em actividades políticas oposicionistas a levar a efeito entre os meios católicos - apareceu expressamente para nos contar, com grande cópia de pormenores picantes, o que sabia da história, e em cuja revelação pública tivera alguma intervenção como advogado. (...)

"Foi então que me apareceu um jornalista inglês, do Sunday Telegraph, interessado num inquérito sobre o que chamava o caso dos 'ballets rose do Portugal salazarista'. Procurou-me no meu escritório, depois de me ter telefonado a marcar um encontro, e sem qualquer apresentação. Limitou-se a mostrar-me o seu cartão profissional de jornalista inglês. Disse-me que na origem do seu interesse estava o artigo publicado por Jeune Afrique e que, encontrando-se em Portugal há alguns dias, além de outros contactos nos meios jornalísticos e diplomáticos, tentara encontrar em Coimbra o prof. Antunes Varela, sem êxito, tendo apenas conseguido falar com um seu assistente. É claro que eu não sabia nada sobre o caso que lhe pudesse interessar ou que ele já não conhecesse. Em relação aos processos pendentes no Tribunal - objecto principal da sua curiosidade - disse-lhe que não me parecia que ele os pudesse consultar. Em todo o caso, sugeri-lhe que procurasse o advogado Pires de Lima, com intervenção profissional em pelo menos um desses processos, visto que seria ele, melhor do que ninguém, que o poderia informar sobre o que era possível apurar de concreto. Se é que havia alguma coisa mais para saber além do que já toda a gente bem informada conhecia...

"Aproveitando a minha sugestão o jornalista falou do meu próprio escritório para casa do pai do advogado Pires de Lima, onde este vivia. O pai de Pires de Lima, com o mesmo nome, pertencia ao Ministério do Interior onde ocupava, ao tempo, a alta função de director da administração política e civil.

"Só muito mais tarde vim a conhecer o que se passou depois. Na realidade o jornalista nunca falou com o advogado Pires de Lima, mas tão só com o pai deste, que teve o cuidado de não desfazer a confusão que se estabeleceu no espírito do inglês entre os dois. Foi o pai que se recusou a dar ao jornalista quaisquer informações sobre o caso, invocando "razões patrióticas" para a sua recusa! Posto, porém, ao corrente das intenções do jornalista - e porventura com a intenção de ilibar o filho de quaisquer responsabilidades na divulgação do caso, face ao rancor dos poderes constituídos - teria estado na origem da minha prisão posterior, como facilmente deduzi dos interrogatórios que me foram feitos na PIDE.


"O jornalista do Sunday Telegraph, uma vez regressado a Londres, publicou um artigo sobre o caso em que, partindo dos rumores divulgados pela Jeune Afrique, dava conta do que havia conseguido averiguar em Lisboa, e que não ia muito além do que se dizia nos meios sociais, jornalísticos e diplomáticos da capital portuguesa. No dia seguinte à tarde - mal tinha acabado o jornal de chegar a Lisboa! - fui preso, pela PIDE, no meu escritório, com um grande aparato bélico. Embora preso sem mandato de captura nem, como de costume, quaisquer explicações, logo verifiquei, pelos interrogatórios de que era acusado da 'divulgação de notícias falsas, no estrangeiro, susceptíveis de prejudicar o bom nome de Portugal'. Porém, quem não deve, não teme! Encarei minha prisão com perfeita tranquilidade, apesar das ameaças que, desde o início, tentaram comunicar-me.

- "Desta vez o senhor pôs em causa pessoalmente a moralidade do senhor Presidente do Conselho, injúria gravíssima! dizia-me o sub-director da PIDE Sachetti, com os olhos arregalados de horror perante uma tal audácia sacrílega.

"Como é evidente, neguei a acusação que me era feita. Dias depois (como soube mais tarde!) o jornalista do Sunday Telegraph desmentia explicitamente a acusação, escrevendo que eu não tinha sido de nenhuma maneira a "fonte das suas informações". Era verdade!

"Contudo, mantiveram-me preso durante três meses em condições muito duras de rigorosa incomunicabilidade. Fiquei todo o tempo na prisão privativa da PIDE de Caxias, dois meses e meio completamente isolado, numa cela individual, sem qualquer contacto com o exterior e apenas uma visita da Família, uma vez por semana, de um quarto de hora, por detrás de um vidro espesso e sempre na presença de um agente. Aí passei o Natal e o Fim do Ano de 1967, com um frio atroz. Não tinha livros nem, muito menos, jornais. (...)

"(...) Isolado na minha cela, os ecos de toda essa imensa campanha chegavam-me, deformados, através dos interrogatórios do sr. Sachetti. Contudo, dado que o inquérito, no que me dizia respeito, não conduzia a nada - 'isto é um limão que não deita suco!', lamentava-se o sub-director da PIDE quando lia os meus autos de resposta - a polícia tentou a exploração de outros caminhos, prendendo um mês e meio depois, o meu colega Francisco Sousa Tavares e o jornalista Urbano Tavares Rodrigues.

"(...) Como ao cabo de três meses a minha situação prisional se mantivesse inalterável, resolvi pedir a minha Mulher para dizer ao meu advogado - visto que este nunca tinha podido visitar-me, apesar das suas insistências - para requerer o habeas corpus. Na lei portuguesa a providência do habeas corpus é excepcional, hesitando os advogados em a requerer, dadas as penalidades de que são passíveis se o fizerem inconsideradamente. O processo impõe que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie, num prazo mínimo, sobre a legalidade da prisão.

"José de Magalhães Godinho, o meu advogado, requereu pois o habeas corpus no dia 29 de Fevereiro de 1968 e eu fui posto em liberdade (assim como os meus dois co-arguidos Sousa Tavares e Urbano Tavares Rodrigues) no dia 1 de Março" (págs 541 a 547 de Portugal Amordaçado).

O que é que tudo isso significa, afinal? Mário Soares, sabendo-se sujeito a uma vigilância pessoal "asfixiante"; sabendo "controlados em permanência" os seus telefones; sabendo que o pai Pires de Lima era "Director-Geral do Ministério do Interior» - o Ministério da Polícia; sabendo dos nomes iguais que tinham os Pires de Lima, pai e filho, leva um jornalista inglês recém-chegado, a utilizar o seu telefone permanentemente controlado pela polícia; a ligar para casa do director-geral do Ministério do Interior e a pedir-lhe que lhe faculte dados que permitam a publicação, no estrangeiro, dum artigo escandaloso que atingiria gravemente o Governo. Distraído, o coitadinho Soares esquece-se de avisar o jornalista da posição oficial do pai e do facto de pai e filho terem o mesmo nome; como se esquece de que o seu telefone está sob controlo permanente havia mais de 2 anos. E como o telefone estava de facto controlado, publicado o artigo, Soares vai para a cadeia, desta vez por 3 meses e sem parte dos habituais privilégios, pagar a sua fajardice: meter na cadeia um colega, filho do director-geral do Ministério do Interior, envolvendo-o num escândalo cujas provas ficariam necessariamente na mão da PIDE.


A carreira do Sr. Soares está cheia de "sacanices" - passe o termo - deste género.

Interrogado pela polícia, que desta vez lhe faz sentir as condições a que sistematicamente submete os oposicionistas que com ela não colaboram, denuncia colega e amigo seu - o Dr. Sousa Tavares - que passa a beneficiar também da hospitalidade da PIDE.

Como se vê, neste - como em todos os casos relacionados com o nosso ilustre esteio - o comportamento daquela polícia de má-memória, é, apesar de tudo, bem mais decente que o dele. Poderia continuar, por centenas de páginas mais, a descrever dezenas de casos de flagrante colaboração de elementos mais ou menos destacados da chamada Oposição, com a PIDE».

Henrique Cerqueira («Acuso! Soares, Cunhal, Emídio Guerreiro, Lopes Cardoso na morte de Humberto Delgado», Vol. I).

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