quinta-feira, 23 de julho de 2020

Salazar, o Ultramar Português e a O.N.U.



«Há porém as outras grandes Províncias de África, dotadas, pela sua extensão, população e riquezas, de muito maiores possibilidades. Estas possibilidades não significam que estejam isentas de graves crises, que não seja o Estado a facultar-lhes os meios para o fomento ou que não tenha o Tesouro de acudir-lhes com fundos e empréstimos gratuitos para as equilibrar financeiramente. Mas porque a sua grandeza as torna especialmente cobiçadas, ocupamo-nos delas à parte e temos de fazer referência aos vários aspectos que mais possam interessar-nos hoje.

lourenco marques 1970.mpg - YouTube

As diatribes lançadas de altas tribunas por pessoas responsáveis contra a obra colonizadora portuguesa, à parte o que se deve a atitudes emocionais e interesses inconfessados, assentam seguramente no desconhecimento do que sejam Angola e Moçambique. Algumas responsabilidades nos caberão no facto, a nós que, absorvidos no nosso trabalho, as não apresentamos devidamente ao mundo. A ignorância parece generalizada, tantos são os que falam como se elas se encontrassem como em quatrocentos, abandonadas à incapacidade de seus naturais.

Em contrapartida, as pessoas que as visitam sem preconceitos admiram-se da floração e beleza das cidades e das vilas, do progresso das explorações agrícolas, das realizações industriais, do ritmo da construção, dos característicos aspectos da vida social.

Não vou ocupar-me do estado económico e social das suas Províncias, mas estou a olhar para umas estatísticas oficiais estrangeiras, algumas da ONU, e respigo ao acaso algumas indicações. Ponho de lado a África do Sul onde nascem ouro e diamantes e onde a massa branca numerosa pôde dar aos territórios um desenvolvimento sem comparação no Continente. Mas vejo, por exemplo, o número de edifícios construídos nalguns territórios de África: Angola encontra-se largamente à cabeça da antiga África Ocidental Francesa, do Quénia, do Tanganica, de Uganda. O número de metros quadrados de área coberta construída por mil habitantes foi em Angola em 1959 de 76,8 contra 6,3 ou 51,3 ou 14,2 ou 17,8 nas outras regiões citadas.

beira 1970.mpg - YouTube

Em quilómetros de via férrea por mil quilómetros quadrados de superfície, Moçambique é igual ao Ghana e só é suplantado pela Serra Leoa, o Togo, o Daomé, todos de diminuta superfície; Angola, iguala o antigo Congo Belga e tem abaixo de si os Camarões, as antigas África Equatorial e África Ocidental Francesas e Madagáscar. Quanto a veículos (locomotivas, carruagens e vagões) Moçambique só é excedida pela Federação das Rodésias, pelo Ghana, pela África Oriental Britânica; Angola está em bom lugar quando por seu turno a comparamos com os outros territórios ao sul do Saará.

Relativamente a potência instalada e a energia produzida, por habitante, embora com representação honrosa, pois que em 57 superámos a Federação da Nigéria, estamos largamente ultrapassados pela Federação das Rodésias, pelo Congo ex-Belga e pelos Camarões ex-franceses; mas é de notar que tanto em Angola como em Moçambique as cifras duplicaram, pelo menos, de 1957 para cá e depois da conclusão de Cambambe os nossos números serão muito mais favoráveis ainda.

Nas costas ocidental e oriental de África, em qualidade de instalações fixas e apetrechamento, os grandes portos de Angola - Luanda e Lobito - e de Moçambique - Lourenço Marques e Beira - ombreiam com os melhores daquele Continente. Em tráfego, de entre os portos de África do Sul do Saará, da Mauritânia pelo Cabo até ao Sudão, Lourenço Marques só é ultrapassado por Durban, e a Beira por estes dois e pelo Cabo.

Hotel Tivoli onde estava o café Djambu | Lourenço marques ...

Em questões de saúde somos os precursores em África das campanhas de acção sanitária e fomos de igual modo os precursores da assistência materno-infantil. Não vou cansar dando nota aliás impressionante dos nossos estabelecimentos hospitalares nas províncias de África, mas apresentarei alguns números fornecidos pela Organização Mundial da Saúde relativamente à lepra em vários territórios africanos: assim Moçambique, com 5.647.000 habitantes tem 80 mil gafos e em tratamento para cima de 60 mil; o Tanganica, para uma população de 8.800.000 habitantes, tem 100 mil gafos e em tratamento apenas 34 mil; Ghana tem em 4.200.000 habitantes 50 mil gafos e em tratamento 26 mil; o Quénia para uma população de 6.250.000 habitantes tem 25 mil gafos mas só 350 em tratamento; a Nigéria para uma população de 25 milhões de habitantes tem 540 mil gafos e em tratamento apenas metade ou seja precisamente 274.790, etc. Daqui se deduz que a percentagem dos doentes tratados é muito superior em Moçambique à dos territórios que indiquei.

E apesar de tudo não podemos considerar-nos satisfeitos. A vastidão dos territórios por si própria sugere empreendimentos sem conta e arrisca-se mesmo a fazer perder a muitos o sentido das proporções e das possibilidades materiais ou humanas para que se possam realizar, em curto prazo. Em todo o caso, em face do exame imparcial de muitos problemas, parece-me que dois ou três devem ser destacados e receber, em primeira prioridade, impulso mais decisivo para a sua solução. Refiro-me especialmente ao sistema de comunicações, à multiplicação de escolas primárias e técnicas, à maior divulgação de postos ou serviços sanitários.

Diamantes, doença e saúde em Angola | História, Ciências, Saúde ...

As estradas devem considerar-se naqueles territórios o mais forte veículo do progresso. Podendo circular, os homens fazem por si muito do restante. Com a saúde teremos aumentado o bem-estar das gentes e a sua capacidade produtora. Os naturais mostram-se sedentos de instrução, porque nela vêem o meio de valorizar-se, de melhoria económica e mesmo de ascensão política. Há que matar-lhes a sede, sem esquecer equilibrar as escolas nos graus médios e superiores com o desenvolvimento económico geral, sob pena de criar-se perigosamente um proletariado intelectual, dado à agitação pelo desemprego e à política pela ambição. Se não fora ter-nos sido imposto o esforço de debelar o terrorismo, nós devíamos dedicar-nos àquele programa, como o de maior rendimento para as Províncias Ultramarinas. Nas actuais circunstâncias porém só com suprimentos externos o poderemos fazer.

Estas são coisas materiais que têm muita importância mas não deviam ser tomadas por decisivas, porque numa sociedade de homens o que acima de tudo importa é o tipo de relações humanas. A maneira de ser portuguesa, os princípios morais que presidiram aos descobrimentos e à colonização fizeram que em todo o território nacional seja desconhecida qualquer forma de discriminação e se hajam constituído sociedades plurirraciais, impregnadas do espírito de convivência amigável, e só por isso pacíficas. A integração política não derivaria de uma assimilação completa, mas sobretudo da confraternização estabelecida sem distinção de credos ou de cores, e da criação de uma consciência de nação e de pátria comum, naturalmente mais vasta que o pequeno horizonte em que os indivíduos e as suas tribos podiam mover-se.

Saudades e muita emoção | Minha Victoria

Ora é facto indesmentível e de observação corrente a existência em Angola e Moçambique de uma comunidade de raças vivendo em perfeita harmonia e compreensão, sem mais diferenças na vida pública ou privada que as que nas outras sociedades são marcadas pela diversidade de níveis económicos e de aptidões pessoais. De muito longe compreendemos que, só nestas condições, o branco pouco numeroso em relação ao negro e ao mestiço, podia, excluída a sujeição violenta, exercer a acção que lhe competia, dirigir o trabalho da comunidade, criar trabalho pelos investimentos que não estão ao alcance da massa, elevar esta ao seu próprio nível de civilização.

Nestas circunstâncias parece inútil discutir se é possível uma sociedade plurirracial, pois que existe, e nada demonstra mais cabalmente a possibilidade do que ser. Mas serão de discutir as formas de coexistência? Teoricamente, sim, mas como se trata já de factos e de situações estabelecidas, a melhor luz a que pode examinar-se a questão é ver as consequências a que levaria a destruição daquelas.


Os novos Estados africanos discriminam contra o branco, e isso o podem fazer nos territórios em que a obra colonizadora obedeceu a moldes diferentes e o branco, se trabalhava para viver, não estava instalado para ficar. Ora nós estamos precisamente no limite do racismo negro que vem estendendo-se até ao Zaire e que pelo Tanganica e pela Niassalândia atinge o Norte e Noroeste de Moçambique. Esse racismo negro tem-se revelado de tal modo violento e exclusivista que as sociedades mistas existentes ao sul se lhe não podem confiar. Pode-se, matando ou expulsando o branco, eliminar o problema, mas este não o pode resolver o racismo, se o branco, porque tem ao menos os mesmos títulos e goza de pelo menos igual legitimidade, pretende ficar naquela terra que é também a sua.

Nova Lisboa - Huambo em 1970 - YouTube

Pouco importa que alguns sorriam da nossa estrutura constitucional que admite províncias tão grandes como Estados e Estados tão pequenos como províncias, e se entretenham a pôr em dúvida soberanias, aliás indiscutíveis, ou a menosprezar civilização e cultura incontestavelmente superiores, ou a desconhecer necessidades de defesa ligadas a territórios sob a autoridade ocidental. O grande problema subsiste, resultante da instalação definitiva da população branca e do facto de se encontrar nas suas mãos quase exclusivamente a direcção do trabalho, o financiamento das empresas, a administração do bem público. Esta, sim, esta é uma questão que merece a atenção de estadistas e não duvido de que, se nela atentassem, não mais nos estorvariam de encaminhar um problema que, nos nossos territórios, só nós, pelos nossos métodos, somos capazes de resolver.

As fórmulas políticas, quaisquer que sejam, não podem desconhecer as circunstâncias de facto que aí ficam apontadas. Estamos em face de sociedades, em evolução forçosamente lenta, que eu creio há o maior interesse em salvar e fazer progredir. Elas apoiam-se moralmente no princípio da igualdade racial mas política e juridicamente não podem abstrair, para defesa própria e garantia de progresso, da diferença de méritos individuais. Para que estes princípios funcionem sem a indevida sujeição de grandes massas ao escol branco ou preto, é necessário que estejam garantidas a todos as mesmas possibilidades de acesso económico ou cultural. Ou a não discriminação está presente em toda a acção pública e privada, ou o edifício ruirá. Por outro lado sem se atingir um grau elevado de homogeneidade, fisiológica ou moral, das populações, a construção não poderá manter-se sem o apoio que há-de assegurar a genuinidade dos princípios e a vida da comunidade no equilíbrio que presidiu à sua própria formação.

Ouço às vezes falar de soluções políticas, diferentes da nossa solução constitucional e possivelmente inteligíveis em séculos vindouros. Não desperdicemos tempo a apreciá-las, porque o essencial agora é o presente e o presente é tão simples como isto: o que seria de Angola na actual crise, se Angola não fosse Portugal?

Isto vem a dizer que a estrutura actual da Nação portuguesa é apta a salvar de um irredentismo suicida as parcelas que a constituem e que outra qualquer as poria em risco de perder-se não só para nós mas para a civilização.

Largo da Mutamba - Luanda 1974. | Luanda, Angola, Moçambique

A estrutura constitucional não tem aliás nada que ver, como já uma vez notei, com as mais profundas reformas administrativas, no sentido de maiores autonomias ou descentralizações, nem com a organização e competência dos poderes locais, nem com a maior ou menor interferência dos indivíduos na constituição e funcionamento dos orgãos da Administração, nem com a participação de uns ou outros na formação dos orgãos de soberania, nem com as alterações profundas que tencionamos introduzir no regime do indigenato. Só tem que ver com a natureza e a solidez dos laços que fazem das várias parcelas o Todo nacional.

Abusei demasiado da vossa paciência mas vou terminar já.

Deve ter-se notado que me ocupei do que era essencial na atitude da ONU para connosco mas não do teor das suas deliberações. Achei que não valia a pena. Toda a gente terá reparado no que aquelas contêm de abusivo em relação aos termos expressos da Carta e falho de razão em relação aos factos e ao comportamento que perante eles deve ter um governo responsável.

A insistência em menosprezar o princípio fundamental da não intervenção nos assuntos internos dos Estados membros mereceu tais reparos e causa tais apreensões aos que ainda depositam alguma confiança no futuro da Organização que é de prever esta venha a alterar a sua conduta, no caso de desejar sobreviver.

O convite às autoridades portuguesas para cessarem imediatamente as medidas de repressão é uma atitude, digamos, teatral do Conselho de Segurança e que ele não tem a menor esperança de ver atendida, tão gravemente ofende os deveres de um Estado soberano. Desde os meados de Março não acharam nem o Conselho nem a Assembleia oportunidade para ordenar aos terroristas que cessassem os seus morticínios e depredações, e tantos dos seus membros o podiam ter feito com autoridade e eficácia. Mas quando intervém a autoridade cuja obrigação é garantir a vida, o trabalho e os bens de toda a população, essa obrigação ou primeiro dever do Estado não haverá de ser cumprido, porque é necessário que os terroristas continuem impunemente a sua missão de extermínio e de regresso à vida selvagem.

Largo da Mutamba, em Luanda, numa foto de Mário Silva de 1972 ...

A consideração de que a situação em Angola é susceptível de se tornar uma ameaça para a paz e para a segurança internacionais, essa, sim, pode ter algum fundamento, mas só na medida em que alguns dos votantes se decidam a passar do auxílio político e financeiro que estão dando, para o auxílio directo com as suas próprias forças contra Portugal em Angola. Tudo começa a estar tão do avesso no mundo que os que agridem são beneméritos, os que se defendem são criminosos, e os Estados, cônscios dos seus deveres, que se limitam a assegurar a ordem nos seus territórios são incriminados pelos mesmos que estão na base da desordem que ali lavra. Não. Não levemos ao trágico estes excessos: a Assembleia das Nações Unidas funciona como multidão que é e portanto dentro daquelas leis psicológicas e daquele ambiente emocional a que estão sujeitas todas as multidões. Nestes termos é-me difícil prever se o seu comportamento se modificará para bem ou não agravará ainda para pior. Se porém virmos este sinal no céu de Nova Iorque, é meu convencimento que estão para breve catástrofes e o total descalabro da Instituição.

Muitas pessoas, em face dos votos contrários a Portugal e das abstenções, inferem do seu número um isolamento perigoso para o nosso país no convívio internacional. Espero que não nos intimidemos os que estamos seguros de ter razão e estamos convencidos de poder demonstrá-la. A vida internacional não é toda feita na ONU e os votos são mais o resultado de um processo competitivo que ali se estabeleceu do que a expressão de um juízo válido sobre questões internacionais ou ultramarinas. Verifica-se – é certo isso – em muitos países como que uma onda de pânico e de intimidação, correlativa da falta de fé nos princípios, que continuo a considerar válidos, da civilização ocidental. Agora quem parece ter razão são os Estados afro-asiáticos. Mas com um pouco de coragem da nossa parte, eles acabariam por compreender que há limites a não ultrapassar.

Embora sob a acção de uma intensa campanha de difamação internacional, muito bem dirigida pela Rússia comunista que aliás nos obsequiou declarando a sua posição, vemos que a mesma não conseguiu obscurecer muitas das melhores inteligências nem arrastar consigo a opinião dos países representados. Veja-se, por exemplo, como tem reagido o escol intelectual do Brasil, em face do ataque a Angola, a província africana que, por várias vicissitudes da história comum, quase considera como fazendo parte do seu património moral. Veja-se, por exemplo, se a Espanha que nesta crise nos tem acompanhado momento a momento com a vivacidade do seu temperamento e o fervor da sua afeição fraternal, veja-se se ela não compreende bem que o ataque a Portugal foi apenas o aproveitar de uma oportunidade e tanto podia ser contra nós como contra ela, ou será uma vez contra ela e outra contra nós. Até que os europeus compreendam, contra este sudoeste da Europa continuarão a desferir-se golpes sob todos os pretextos, porque é necessário fazê-lo ruir para cair tudo o mais.

Patrick Gautrat: ″No balanço dos ditadores, Franco era o ...

Sejam quais forem as dificuldades que se nos deparem no nosso caminho e os sacrifícios que se nos imponham para vencê-las, não vejo outra atitude que não seja a decisão de continuar. Esta decisão é imperativo da consciência nacional que eu sinto em uníssono com os encarregados de defender lá longe pelas armas a terra da Pátria. Esta decisão é-nos imposta por todos quantos, brancos, pretos ou mestiços, mourejando, lutando, morrendo ou vendo espedaçar os seus, autenticam pelo seu mesmo martírio que Angola é terra de Portugal».

Oliveira Salazar («O Ultramar Português e a O.N.U.», 1961).



2 comentários:

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