terça-feira, 28 de julho de 2020

O admirável mundo novo, profecia assustadora!!!


«... A engenharia social antevista por Aldous Huxley carecia ainda do computador e das redes digitais como substrato material de controlo. A digitalização do mundo a partir da segunda metade do século XX criou fluxos de comunicação e formas de controlo ubíquas, diferentes das que foram imaginadas por H. G. Wells, Aldous Huxley ou George Orwell, mas também por escritores pós-cibernéticos como Philip K. Dick, J. G. Ballard, William Gibson ou Neal Stephenson. Ainda que o efeito hipnótico e orgiástico do soma e do cinema sensorial possa comparar-se ao ciberespaço como alucinação consensual, a capacidade simulatória do meio digital induziu efeitos psicoactivos cujo alcance psíquico e social talvez seja ainda mais profundo. Além disso, as lógicas finalmente automatizadas do sistema financeiro e da guerra são agora algoritmos programados no sistema cibernético, capazes de desencadear instantaneamente acções catastróficas com repercussões planetárias. Ecranizada, a morte tornou-se um jogo remoto via satélite. 

O próprio comportamento de consumo das massas se encontra matematicamente programado na infra-estrutura cibernética, usada para monitorizar o consumo, incluindo o consumo frenético e dispositivos de obsolescência programada. A reorganização das práticas quotidianas em função da conexão remota instantânea e da monitorização em tempo real dos desejos e dos estados emocionais dos indivíduos, colaboradores voluntários na avatarização de si próprios como itens na grande base de dados em que o mundo se tornou, é francamente diferente das antevisões ficcionadas literariamente ou projectadas cientificamente nas últimas décadas. Os sistemas actuais de vigilância política também não correspondem aos imaginários distópticos de tortura e brutalidade ostensiva ou de propaganda e repressão clandestina, ainda que estas continuem a ser usadas como instrumentos semilegais numa espécie de estado universal de emergência não-declarado de guerra ao terror. 

Biologicamente falando, o homem é um... Aldous Huxley

A granularidade da vigilância política aperfeiçoou a sua impessoalidade automática, permitindo agora a localização automática individual por coordenadas GPS e a prospecção massiva das redes de comunicação, num desrespeito flagrante pelo direito de privacidade, de que o programa XKeyscore da Agência de Segurança Nacional norte-americana seria apenas um exemplo [Dado a conhecer publicamente através das provas recolhidas e divulgadas por Edward Snowden em 2013, o programa XKeyscore permite fazer vigilância sistemática da Internet, dando aos analistas a possibilidade de pesquisar, sem qualquer autorização prévia, vastas bases de dados contendo correio electrónico, conversação em linha e a história da navegação contida nos browsers de milhões de indivíduos. Cf. Glenn Greenwald, «XKeyscore: NSA tool collects 'nearly everything a user does on the Internet'», The Guardian, 31 de Julho de 2013]. 

Um número cada vez maior das nossas acções deixa vestígios nos sistemas de dados, traços que são utilizados para monitorizar o comportamento futuro, garantindo a plena conformidade com a administração integral da nossa existência, dos nossos desejos e da nossa imaginação. Todos os sistemas recolhem dados e todos nos garantem a bondade dessa recolha, levando-nos a assinar contratos que nos colocam numa posição marcadamente assimétrica, alimentando-os com a informação que nos será instantes depois vendida sob a forma de produtos e serviços, e que servirá para programar no sistema os nossos perfis de consumidores e cidadãos. A virtualização da economia e da identidade permite agora reconstituir na rede digital electrónica um número crescente de interacções e realidades como puros fluxos de dados, imagem correlata da abstracção dos mercados financeiros e da ficção do valor.

Os súditos do ditador do futuro serão... Aldous Huxley

A programação dos indivíduos e a engenharia social constituem a essência da relação entre sociedades complexas e tecnologias avançadas: a complexidade das tecnologias implica um sistema ubíquo de controlo e vigilância, que amplifica em simultâneo a dependência do sistema tecnológico e dos seus dispositivos, e os processos globais de administração e controlo. 

Esta retroalimentação pode ser observada, por exemplo, na forma do aeroporto internacional como instituição totalizante, a qual, para alimentar os aviões com um fluxo constante de passageiros, submete os indivíduos aos processos de controlo e vigilância necessários ao sistema de gestão técnica e financeira das aeronaves. Idênticas descrições poderiam ser oferecidas do complexo técnico-militar, no qual a perigosidade de materiais - incluindo os agentes de guerra química, biológica e nuclear - submete os indivíduos a um controlo e vigilância sistemáticos. O princípio da vigilância instituiu-se como princípio universal na definição do comportamento das instituições relativamente aos indivíduos, alargando-se ao espaço público das ruas e parques. Ser administrado e ser vigiado é essência última do cidadão livre.

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O contexto histórico imediato da emergência da distopia de Huxley é o contexto da expansão da civilização urbana industrial - com a sua marcada divisão de classes -, da consolidação dos sistemas de propaganda e violência estatal, do rápido advento de uma sociedade consumista e hedonista na qual a inebriação do consumo faz parte do mecanismo de reprodução económica e cultural, sendo mesmo um instrumento para a aceitação generalizada das condições alienadas da existência - e dos avanços científicos e técnicos das primeiras décadas do século XX. O conhecimento das forças fundamentais da natureza e dos códigos que determinam a vida prometiam novas possibilidades de habitar o universo e conjurar o humano. Os testes nucleares do Projecto Manhattan, a partir de 1942, e a descrição da estrutura molecular do ADN, em 1953, constituíram o culminar de processos de investigação nesses dois campos. Ainda que, como refere Huxley no seu prefácio à edição de 1946, a obra se centre mais naquilo que ele descreve como as ciências da vida (biologia, fisiologia e psicologia) do que nas ciências da matéria (física, química e engenharia), a sua interrogação fundamental diz respeito aos efeitos da ciência aplicada e ao modo como a vida se torna um servomecanismo da tecnologia.

Um dos aspectos que caracterizam o admirável mundo novo é a absoluta planificação e administração da existência. A planificação eugénica dos seres humanos permite inscrever no código genético a diferenciação social e naturaliza a evolução artificial obtida através da manipulação genética. Ainda que a programação genética dos indivíduos não tenha chegado ao ponto imaginado por Huxley, a administração e estatização do mundo ampliou-se, em consequência do aumento da complexidade técnica dos processos de produção, comunicação e transporte. Os padrões de organização do trabalho e de circulação de mercadorias e os fluxos das diferentes formas de capital estruturam-se agora à escala mundial, submetendo os indivíduos à lógica autónoma da sua própria reprodução e acumulação infinita. A distribuição desigual da riqueza material, alimentada por um processo obsessivo e auto-referencial de crescimento económico e valorização financeira, continua a manter milhões de seres humanos no limiar da sobrevivência, em estado de servidão e ignorância, sem recursos para comprarem as mercadorias que eles próprios produzem, sem tempo ou condições para aprenderem a ler e a escrever, e sem possibilidade de reparação para o seu sofrimento. 


BBC poll considers web freedoms and surveillance - BBC News

(...) A prescrição de felicidade no admirável mundo novo em construção tornou-se uma mensagem repetida até à exaustão à medida que as novas tecnologias reforçam a fantasia do controlo, isto é, a ideia de que podemos prever, planificar e controlar tudo o que acontece à nossa volta e tudo o que acontece dentro de nós. A obsolescência programada nos dispositivos e aparelhos que usamos torna-se também a obsolescência programada dos nossos desejos e pensamentos, como se, desapropriados de nós mesmos, só nos restasse consumir, a crédito, o ser que desejaríamos ser e o pensamento que desejaríamos pensar. Talvez o facto mais extraordinário proporcionado pela descrição científica do mundo e pela tradução dessa descrição em complexos sistemas tecnológicos esteja na amplitude e na pregnância das transformações, de tal modo que a possibilidade de um exterior ao admirável mundo novo parece tornar-se cada vez mais impossível. Todas as relações sociais de produção e de consumo e todas as formas de vida e de cultura estão destinadas a refazer-se segundo a lógica da megatecnologia, que torna impensáveis e inimagináveis formas de vida ou de pensamento não domesticadas. A possibilidade de um "selvagem", exterior ao admirável mundo novo, passaria a ser impossível.

A selecção genética - que diferencia alfas e betas de gamas, deltas e epsilões - e a clonagem de embriões garantem uma produção em massa de cada tipo, segundo necessidades de mão-de-obra previamente determinados pelos técnicos de predestinação social. Esta produção fabril administrada de castas de seres humanos em incubadoras mimetiza a estrutura social, com ganhos de eficiência e produtividade sobre os modos de reprodução naturais, controlando os rácios de diferenciação entre masculino e feminino ou entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais. O que importa ao sistema é reproduzir a sua própria estrutura, ampliando para o todo social da reprodução biológica humana a fordização, que decompôs e racionalizou as tarefas produtivas numa cadeia de montagem. A própria morte pode ser fordizada e racionalizada, entrando na cadeia de produção.

ALDOUS HUXLEY - ADMIRÁVEL MUNDO NOVO - Mensagens e Frases

O desenvolvimento de uma classe administradora, cuja função é supervisionar o funcionamento eficiente de todo o sistema, reflecte a cientifização das modernas práticas de gestão, destinadas a disciplinar os corpos e as mentes, tornando-os mecanismos obedientes da engrenagem. A nomenclatura das instituições e dos espaços sugere quer a funcionalização racionalizada da reprodução de embriões humanos, quer a natureza planificada e administrada de todos os espaços sociais do admirável mundo novo: Centro de Incubação e de Condicionamento de Londres-Central; Depósito de Embriões; Armazém de Orgãos; Sala de Decantação, Sala de Fecundação; Sala de Envasamento; Sala de Predestinação Social; Infantários - Salas de Condicionamento Neopavloviano; director da Incubação e do Condicionamento; administrador residente da Europa Ocidental; Estúdio de Cinema Sensorial de Hounslow; Central Hipnopédica; Companhia-Geral das Secreções Internas e Externas; Hospital para Moribundos de Park Lane.


Cabe referir ainda a presença dos media e de dispositivos de propaganda e engenharia das emoções, responsáveis pela produção de um sistema de crenças que sustenta uma determinada ordem social e pela manipulação psicológica e emocional. Antes de conhecermos Helmholtz Watson, autor de cenários para filmes sensoriais e de fórmulas e slogans hipnopédicos, o conglomerado dos media é assim apresentado:


"As diversas secções de propaganda e do Colégio de Engenharia Emocional estavam instalados no mesmo edifício de sessenta andares de Fleet Street. Na cave e nos pisos inferiores encontravam-se as tipografias e os escritórios dos três grandes jornais de Londres, O Rádio Horário, jornal para as castas superiores, A Gazeta dos Gamas, de verde-pálido, e, em papel cor de caqui e usando exclusivamente monossílabos, O Espelho dos Deltas. Depois, seguiam-se os escritórios de Propaganda por Televisão, por Cinema Sensorial, e por Voz e Música Sintéticas, que ocupavam, ao todo, vinte e dois andares. Por cima estavam os laboratórios de investigação e as câmaras acolchoadas onde os escritores de bandas sonoras e os compositores sintéticos levavam a cabo o seu delicado trabalho. Os dezoito últimos andares eram ocupados pelo Colégio de Engenharia Emocional".

Admirável mundo novo

A disposição arquitectónica das diversas tecnologias dos media em três secções num mesmo edifício, permite perceber a ecologia diversificada, mas interdependente dos media (imprensa periódica, música gravada, cinema, rádio, televisão) e associá-los à engenharia emocional. O cinema sensorial - capaz de activar conjuntamente os sentidos da visão, da audição, do tacto e do olfacto - aponta para a lógica imersiva das representações, cujo poder holográfico e sensorial lhes permite oferecerem-se como mundos de substituição que compensam a monotonia sensorial e motora da funcionalização industrial dos corpos geneticamente controlados.

Esta função compensatória cabe também à música sintética e à dose diária de soma. A descrição da saída da fábrica da Companhia-Geral de Televisão, observada pelo Selvagem, mostra a conjugação alienante entre trabalho e não-trabalho:

"Era justamente a hora de saída do turno principal do dia. Uma multidão de trabalhadores das castas inferiores, em bicha diante da estação do monocarril, setecentos a oitocentos homens e mulheres gamas, deltas e epsilões, que não tinham, entre todos, mais do que uma dúzia de fisionomias e estaturas diferentes. A cada um deles o bilheteiro dava, juntamente com o bilhete, uma pequena caixa de cartão com pílulas".

O controlo compensatório da química cerebral e o consumo recreativo de narcóticos são extensões da engenharia social programadora da felicidade. A erotização difusa e omnipresente dos corpos assume idêntica função compensatória, sinal de uma relação inversa entre liberdade sexual e liberdade política e económica. Tal como em Nós, de Evgueni Zamiatine, ou em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, a troca sexual é manifestação da instrumentalização do desejo, tornado acto funcional colectivo, no qual a ligação afectiva individual perturba a lógica impessoal e meramente abstracta das relações.

E se Orwell, Huxley e Bradbury tivessem acertado? - NotaTerapia

No prefácio de 1946, Huxley antevê a eficiência futura do controlo das massas através das formas brandas do poder do Estado, da propaganda dos media e dos sistemas de ensino, cujo verdadeiro fim seria produzir o amor à servidão. A produção fabril de seres humanos - geneticamente modificados, conformados a reproduzirem um sistema de relações alienadas e cuja existência é totalmente administrada - é uma imagem extrema da racionalidade e da eficiência pressupostas pelas tecnologias avançadas de produção. Para um sistema auto-referencial, centrado nas cadeias de produção e de valor, é o próprio ser humano que é necessário reproduzir à sua imagem e semelhança. Produzir uma realidade mais real que a realidade e administrar obsessivamente a existência continuam a fazer parte das utopias tecnológicas dos nossos imaginadores do futuro. Talvez por isso a designação "admirável mundo novo" tenha hoje, além da ressonância irónica original, algo do sabor amargo e melancólico de uma fantasia realizada. Se tornar os indivíduos felizes é fazê-los amar a sua servidão, a função da planificação consiste em continuar a gerar as condições presentes e futuras dessa felicidade servil».

Manuel Portela («Os imaginadores do futuro», prefácio in Aldous Huxley, «Admirável Mundo Novo», Antígona, 1.ª Edição, 2013)
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Links que considero de vital importância a sua consulta:

No primeiro faz-se a analogia entre o pensamento de George Orwell e Adous Huxley.
O segundo link é a versão integral e traduzida do filme "O Admirável Mundo Novo", de George Orwell.

No terceiro está a versão integral e traduzida do filme "Soylent Green", em português, "À Beira do Fim".






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