domingo, 26 de julho de 2020

Franco Nogueira e o problema africano.


Consumo, solidão, miséria e ideologia

«Interrogam-se agora os espíritos sobre o destino de todo um continente, e René Dumont sintetizou este pensamento perguntando, no título de um livro, se L'Afrique noire est mal partie? Formular o problema equivale a enunciar as dificuldades, as frustrações e as ciladas que se acumulam nos caminhos do continente negro. São estes tão difíceis que Albert Meister, num volume de réplica, põe a questão de saber se L'Afrique peut-elle partir? Temos, nestes dois títulos, as coordenadas entre que podemos situar o continente africano. Trata-se de sublinhar que a África principiou ou partiu mal e de inquirir se aquela poderá mesmo principiar ou partir de todo. Não há que interpretar os termos em que o problema é equacionado como implicando uma incapacidade inata ou inerente ao homem africano. Pretende-se apenas significar que não parecem ter sido favoráveis as condições em que a África partiu à conquista do seu lugar no tablado internacional, que se pretendia autónomo, pelo que a alguns se tem afigurado duvidoso que, naquele condicionalismo, possa sequer partir.

Mas colocando assim o problema havemos logo de verificar que não coube à África a responsabilidade de definir as condições da sua partida: estas foram fixadas pelas potências condutoras da política mundial, e cujos motivos determinantes, em nada relacionados com a África, estão hoje bem esclarecidos. Já sabemos como o clima de guerra fria, a luta pelo poder, e a construção de novos impérios desempenharam um papel determinante. Mas há um outro aspecto que não tem sido sublinhado com o relevo merecido: o da visão que a Europa e o mundo livre se fazem de si próprios e o papel que, no quadro dessa visão, atribuem à África. Nesse quadro ressalta, antes de mais, este traço fundamental: a Europa e o mundo livre olham-se como um agregado humano altamente desenvolvido e industrializado, e sentem-se bem adiantados no caminho de se constituir em sociedade pletórica ou opulenta. Este facto alterou por completo a concepção dos interesses europeus na sua relacionação com África, e deu ao homem europeu um prisma novo para observar o mundo em redor. Nessa nova concepção permite-se uma margem muito escassa de risco, um desejo muito limitado de aventura para além das fronteiras do continente europeu, e uma recusa de responsabilidades que imponham sacrifícios. Terá de se observar que o crescimento económico e industrial da Europa parece coincidir com um entibiamento da vontade europeia. Pretende-se edificar uma Europa unida, e forte pela unidade; mas para o efeito praticam-se quase tantas políticas quantos os países europeus. Refeita da crise da guerra, saradas as chagas, robustecidas as forças, a Europa mergulhou em nova crise. Nem a construção do Mercado Comum, nem a da Associação do Comércio Livre, nem a estrutura da NATO, nem o Conselho de Estrasburgo trouxeram à Europa o que esta busca: a autonomia das suas decisões e das suas atitudes. Desta crise interessa agora, todavia, destacar um aspecto especial: a crise da consciência mundial da Europa. Dir-se-ia que a Europa se entregou a um isolacionismo, que era tradicional entre os anglo-saxónicos. Mas aquela crise teve sobretudo reflexos e consequências na política quanto à África. A Europa separou-se da sua visão tradicional do continente africano, e até do homem africano, e tendo feito tábua rasa de todo um passado adoptou ideias e princípios que não eram propriamente seus. Perante a sociedade agrária africana, os países europeus aceitaram as teses que os pólos de força mundiais ou os países altamente industrializados (em particular os Estados Unidos e a Inglaterra) haviam formulado como aplicáveis à África. A União Soviética lançou na África o ideal socialista. Sofregamente mas sem discernimento claro os países africanos proclamaram a adopção do socialismo, sem todavia ousarem rejeitar por completo, para efeitos meramente exteriores, alguns valores políticos ocidentais. Ao socialismo misturaram-se preocupações nacionalistas e, como se pretendia acima de tudo vincar a independência, multiplicaram-se as fórmulas consoante os países. Surgiu o socialismo africano; outros instituíram o socialismo positivo; houve Estados que se atribuíram um socialismo de massas; e no norte de África alguns países proclamaram o socialismo árabe. Tudo isto traduziu uma atitude política; mas a contribuição do socialismo para o progresso africano tem sido principalmente vocabular e de terminologia. É um mito. Mas está longe de ser o único ou mesmo o maior dos mitos.







Tanto os países socialistas como os países ocidentais têm derramado sobre a África toda uma mitologia que abrange e governa quase todos os aspectos da vida do continente. Tendo dado prioridade à política sobre a administração e a economia, sentiu-se depois necessidade de criar ilusões e alimentar esperanças como meio de governo e instrumento de pressão e influência política. Neste particular aparece-nos, em primeiro lugar, o mito do desenvolvimento rápido dos povos e países do terceiro mundo. Assenta na formação acelerada dos quadros e na ajuda financeira externa maciça. Mas a ajuda externa, por si mesma, não suscita nem promove o desenvolvimento, e já vimos como é interesseira e está na base do neocolonialismo; e a formação acelerada de quadros é inútil, mesmo que fosse viável, se partir de um desfazamento entre um escol muito limitado e a massa tribal sem camadas intermédias, como é o caso africano. [A ideia da formação acelerada de quadros está levando a consequências absurdas ou pitorescas. Pensando que todas as profissões são susceptíveis de aprendizagem acelerada, alguns jovens nos novos países, embora apenas possuam rudimentar instrução, deslocam-se à Europa ou aos Estados Unidos em busca de escolas onde possam matricular-se em cursos de Ministros, de Primeiros Ministros e de Presidentes da República]. Mas a par do mito do desenvolvimento célere, criou-se um outro: o do desenvolvimento democrático e liberal. Embora se saiba que não corresponde à realidade, e que não seria mesmo possível, sustenta-se que a economia, a administração e o desenvolvimento dos novos países africanos se podem processar em termos de demo-liberalismo ocidental. Trata-se de uma clamorosa distorção dos factos: a vida colectiva nos novos países africanos está subordinada ao despotismo mais ou menos legalizado, firmado num só partido de massas. Por outro lado, a propaganda conduzida em África tem instilado no espírito dos responsáveis e até de alguns elementos menos tribalizados a convicção de que a independência, a força nacional, o respeito internacional, estão ligados e são função de um certo número de símbolos sem os quais o país não existe com dignidade. Temos, em primeiro lugar, o mito da industrialização. Mas esta é impraticável sem uma administração eficiente e não corrupta. Nada disto possuem os novos países africanos; as grandes potências não o ignoram; e por isso, quando encorajam qualquer país africano a industrializar-se velozmente e em larga escala, sabem que estão a conduzir esse país a uma ruína inevitável ou pelo menos à estagnação e a tornar-lhe cada vez mais difícil e lento qualquer pequeno desenvolvimento real. [Quando se empresta dinheiro e se fornece assistência técnica, por hipótese, ao Gabão ou à Tanzânia para montar uma fábrica de televisores, por exemplo, parte-se do princípio de que se cumprem estas condições: a) há um mercado interno para consumir televisores; b) a produção de televisores aumenta a riqueza nacional; c) os televisores fabricados estão em condições de competir nos mercados internacionais com os manufacturados pelas grandes potências. Ora nada disto é assim, e as grandes potências sabem-no perfeitamente. Quer isto dizer que o Gabão ou a Tanzânia têm de pagar às grandes potências as máquinas que compraram para instalar a fábrica, têm de liquidar os salários dos técnicos, e têm de reembolsar os empréstimos (e os respectivos juros) para o lançamento financeiro da empresa - e não fabricarão televisores. Ou, se os vierem a fabricar, fá-lo-ão para venda nos mercados internacionais apenas, recolhendo as grandes potências o lucro e limitando-se o Estado local a permitir que a sua mão-de-obra fosse explorada e paga a um preço muito inferior ao da mão-de-obra das potências desenvolvidas]. Depara-se-nos depois o mito da reforma agrária. Encontramos esta no programa de todos os jovens governos revolucionários, e o facto é havido como sintoma de progresso, de ousadia administrativa, de afirmação do desejo de justiça social. Na realidade, todavia, estamos perante simples demagogia. Não escasseia a terra nos países africanos; e o problema consiste antes na escassez de população. De resto, a reforma agrária praticada nos novos estados tem propósitos políticos ou sociais, e não é efectuada tendo em vista um melhor aproveitamento e a máxima utilização da terra; e por isso, do ponto de vista da produtividade e do aumento da riqueza nacional, são inúteis as reformas agrárias dos novos países do continente africano. Mas se nos dirigirmos agora para o campo da cultura encontraremos um outro mito poderoso: o mito das universidades e educação superior. Muitas vezes escasseiam ou não existem escolas primárias, nem escolas de ensino rural ou técnico, nem escolas de artesanato; mas isso não obsta a que se construa um imponente conjunto de edifícios, com o apetrechamento pedagógico inerente, e a que se lhes chame universidade. Sabe-se que uma universidade demora gerações a formar, e sintetiza o resultado de uma longa tradição, representa uma cultura, simboliza o centro mental e intelectual de uma nação. As universidades da África negra, há que reconhecê-lo, são caricaturas de escolas superiores; e no quadro do plano de desenvolvimento dos países respectivos desempenham um papel não só inútil como pernicioso e até perigoso. São dispendiosas, e não contribuem para criar um cêntimo de riqueza. Poderá haver um fácil orgulho em produzir quantidades de médicos ou de engenheiros, e daí suscitar-se uma falsa sensação de que o país progride e de que os problemas nacionais se podem resolver. Ora os médicos e os engenheiros produzidos são-no no nome e no diploma, e não na competência; mas os problemas humanos ou técnicos, que têm de enfrentar, não diminuíram de complexidade ou de dificuldade por aquele facto. Por isso, à medida que o tempo decorre e se multiplicam os técnicos e os profissionais de formação acelerada, agrava-se a situação dos países africanos. [Constitui exemplo típico o de uma província de um país africano cuja mortalidade dos respectivos habitantes aumentou verticalmente depois de terem para ali sido enviados dois médicos acabados de formar aceleradamente na nova Universidade]. Como quer que seja, é em torno destes mitos que se debate a realidade africana. O mundo livre e o mundo socialista impulsionam esses mitos sem reparar, ou preferindo não reparar, que uma tal orientação está destruindo a África, e o primeiro não se dá conta de que está negando esta à Europa e aos próprios africanos. [Uma lista muito completa dos mitos de que sofrem os países subdesenvolvidos, e que pode ser aplicada à África, encontra-se em William e Paul Paddock, Hungry Nations, 1964]. Em confronto com esta África traída, a realidade portuguesa deveria brilhar como um centro nervoso de progresso real e de uma promoção genuína do homem africano nos planos político e social. Mas admiti-lo, por parte da ONU ou de algumas das potências, seria confessar a falência da sua política ou desvendar o carácter equívoco desta. Em vez de se dizer que a África partiu mal, ou de se perguntar se poderá partir de todo, seria talvez mais justo e exacto perguntar se se quer a partida da África».

Franco Nogueira («Terceiro Mundo»).

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