quarta-feira, 22 de setembro de 2021

O Princípio do Fim da Civilização Europeia.

 

(...) Regressado aos Estados Unidos, Dwight Eisenhower apresenta a sua candidatura à Presidência, em nome do partido republicano; é eleito; e sucede a Harry Truman. No Departamento de Estado, Dean Acheson é substituído por John Foster Dulles. Tem repercussões no mundo o resultado da eleição: que política será a de Eisenhower? Em França, acentua-se a instabilidade governamental, e desta resulta uma oscilação constante da atitude de Paris. Schumann abandona os Negócios Estrangeiros, e regressa Georges Bidault; e de novo estão em causa o papel da França, na NATO, e as relações como a nova Alemanha de Konrad Adenauer. Neste particular, o debate político em França trava-se sobre a questão de manter um exército francês autónomo, ou de o europeizar numa união da Europa Ocidental, ou na estrutura da NATO; e ainda sobre o estatuto da Alemanha, que ressurge como Estado Federal, e a cooperação desta com o Ocidente. São tradicionais os receios da França perante um ressurgimento do poderio germânico; restabelecer este, todavia, parece indispensável para resistir ao expansionismo soviético; há que procurar, desta forma, o melhor enquadramento para uma Alemanha remilitarizada; e Londres e Washington, com a anuência de Bonn, inclinam-se para a entrada da nova República Federal no quadro do Pacto do Atlântico. Por seu lado os Estados Unidos, sob a orientação de Dulles, reforçam uma política de alianças para além da NATO, e destinada a conter a penetração russa; as Filipinas, a Austrália, a Nova Zelândia, a Tailândia, o Paquistão, a França e o Reino Unido dão o seu aval a essa política; e em paralelo com a NATO, é firmada a SEATO [iniciais para significar: South East Treaty Organization]. De súbito, porém o mundo é colhido por uma notícia inesperada: em 5 de Março de 1953 morre Estaline. Da reunião do presidium emana a escolha de Georgi Malenkov para lhe suceder em todos os cargos; mas, pouco após, a sua actividade fica cingida à chefia do governo; e as suas funções de secretário do partido são confiadas a Nikita Krushchev. No exterior, há a sensação de que, no plano político, está constituído um triunvirato formado por Malenkov, Beria e Molotov, e que disporia das decisões supremas: é o princípio da chefia colectiva ou colegial, apresentado como inovação na estrutura do poder soviético: e é denunciado o culto da personalidade do tempo de Estaline. Pelo mundo corre uma interrogação: vão cessar o terror, a agressividade, a subversão de terceiros países, o expansionismo imperial da ditadura estaliniana? Muitos ficam persuadidos de que a União Soviética, desaparecido o ditador de aço, vai entrar num período de distensão, de liberalismo; e entre os povos dos países satélites há sobressaltos de esperança. E Eisenhower declara: "o mundo inteiro sabe que com a morte de Estaline findou uma era".

Robert SCHUMAN E Konrad ADENAUER

Em Lisboa, Salazar, sempre apaixonado pela situação do mundo, não deixa de se sentir preocupado, e mesmo perplexo. Como a encara neste momento? Escreve para Bruxelas, a Eduardo Leitão: "Noto na vida internacional uma pausa, de um lado provocada por ninguém saber quais serão e até onde irão as divergências no respeitante aos negócios do mundo entre a administração Eisenhower e a de Truman, por outro lado pela mutação no governo da França que se encontra em face de uma opinião pouco disposta a aceitar o exército europeu, ou talvez mais precisamente a dissolução do exército francês no exército europeu". E quanto a ideias federalistas? "A meu ver", diz Salazar, "as ideias federalistas que parece terem sido tão do agrado de franceses e italianos e não sei se belgas e holandeses, apesar do impulso que por todas as formas lhes dão os americanos, encontram dificuldades de execução e até poucas simpatias em muitos meios, convencidos de que se trata menos de um problema europeu do que de arranjar maneira de resolver dificuldades da política francesa". Em nada disto tem Portugal que estar envolvido, mas "o caso é sobretudo desagradável porque estes vai-vens da política europeia fazem perder tempo na organização de forças e no estreitamente da cooperação económica, militar, cultural e política que, sem federação ou com federação, é possível e necessário estabelecer e reafirmar".


Estas preocupações pela defesa do Ocidente não são exclusivas de Salazar. São partilhadas por homens eminentes, da política e das letras, em muitos países do Ocidente. Há pouco fora Henri Massis, que viera desabafar junto de Salazar a sua ansiedade; e agora é a Gustave Thibon, da mesma linha ideológica de Massis e de Gabriel Marcel, que Salazar recebe, e interroga sobre a situação francesa, e de quem escuta iguais desabafos. E são também homens da política: é André de Staercke, muito ligado a Paul Spaak, que em cartas e visitas não esconde o seu pessimismo; é Van Acker, primeiro-ministro belga; é Paul Van Zeeland, que continua ministro dos Estrangeiros da Bélgica; são outros ainda. E justamente Van Zeeland acaba de convocar Eduardo Leitão e de lhe pedir para consultar o chefe do governo português sobre a conjuntura mundial, e em particular os negócios da Europa e as ideias em curso quanto ao futuro desta. Leitão tudo transmite para Lisboa, e Salazar responde à consulta de Van Zeeland no dia seguinte ao da morte de Estaline. Traça um quadro inicial: "As coisas aparecem-nos assim: os Estados Unidos, pela simplicidade do seu espírito e ligeireza das suas opiniões, não vêem para a Europa outra solução política que não seja a unidade através da federação; a França, que se nos afigura um país cansado de lutar e a quem a plena independência parece pesar, adopta a ideia como a maneira mais fácil de evitar o rearmamento alemão isolado e amanhã potencialmente hostil; as nações que se agrupam em volta da França parecem convencidas, embora por motivos diversos, de que aquele é o melhor caminho de salvar a Europa e talvez o único de assegurar o apoio americano, em potência militar ou em dólares". Desdobra depois o seu pensamento: há apenas duas realidades, que são uma ideologia americana e uma política francesa: mas a viabilidade de executar a ideia, o ambiente político e moral, os problemas económicos, estão em plano secundário, embora sejam o essencial. Por ideologia americana, entenda-se uma ideia de partido político no governo; por política francesa entenda-se a de uma fracção dos políticos franceses, porque a França, "se anseia por não ter de bater-se, também procura não ser mandada por outros"; e quanto ao receio de perda do auxílio americano, "penso que esse receio não tem razão de ser, porque a Europa é tão necessária à América como esta à subsistência da liberdade europeia". Mas "é sobre tão frágeis fundamentos que se anda a construir a federação da Europa". E essa federação é possível? No domínio lógico, é. Apenas há duas maneiras, no entanto, de a conseguir: por acto de força de um federador ou por lenta evolução que pode levar séculos. Não existe um federador: "se a Rússia puder, talvez ela o faça nos países danubianos sob a sua égide; se Hitler tem ganho a guerra, era possível que obrigasse a Europa a federar-se sob a hegemonia alemã; e pelos frutos e demoras da evolução não se quer esperar". E que pode resultar de uma federação? Resultam o abandono de terras, arrumação ou concentração de indústrias, deslocação de populações, desequilíbrios económicos, perdas de interesses e capitais: são sofrimentos sem conta, alterações profundas nas maneiras de viver e de pensar: "mas retoma-se a vida em novas bases, e no futuro, num futuro largo, pode até ser melhor para todos os que então existirem". Isto pode fazer-se pela força; não o podem fazer os políticos, ao menos de um dia para o outro, contra interesses inconciliáveis e os sentimentos das populações. Porque a verdade é que a Europa nasceu de um certo modo e tem um certo carácter; a sua diversidade, se é fraqueza, é também fonte da sua radiação universal; tem nações tão antigas que o seu nacionalismo se confunde com o instinto de propriedade; e é duvidoso que por combinações ou tratados se possa erigir o Estado Europeu. E, se se constituísse, esse Estado europeu seria por muito tempo destituído de coesão e força efectiva; "o momento óptimo para o ataque russo, se a Rússia pensasse em atacar o Ocidente, era exactamente o da constituição do Estado Federal Europeu". Essa federação, a fazer-se, far-se-ia sob a égide republicana: comportaria três grandes repúblicas (França, Alemanha, Itália) e três pequenas monarquias (Bélgica, Holanda, Luxemburgo): a força das primeiras, a dificuldade de escolha de uma dinastia comum, o desejo dos americanos, imporiam a solução republicana: e os três pequenos países teriam de se desfazer das suas instituições. Depois, há o problema colonial. Itália e Alemanha foram despojadas de tudo; os domínios ultramarinos serão integrados na federação, que herdará as colónias belgas e francesas; os que nada têm a perder são os que têm tudo a ganhar; mas a Bélgica e a França não pertencem a este grupo. Deste modo, uma federação europeia suscitará mais problemas do que resolve; constituiria por muito tempo uma construção política e economicamente frágil; por cima de sacrifícios e sofrimentos a impor às gerações actuais, a Federação poderá dispor de mais espaço, racionalizar a produção, conseguir com os territórios ultramarinos uma maior base económica para o conjunto. Acontece que, pela sua força e capacidade, será a Alemanha quem conduzirá a federação para todos os seus destinos. "Para isto, talvez não valesse a pena ter feito a guerra". E a Inglaterra? No território europeu, a Inglaterra funciona já como um estado federal; no mundo, é a cabeça de uma associação de Estados. Se a Inglaterra tomar na Europa o compromisso de um esforço total, será a perda da chefia da comunidade; e os vários Estados que compõem esta, privados daquele ponto de apoio, procurarão outros pólos de atracção. Parece desassisado que, em nome de uma unidade hipotética, se desfaça ou corra perigo de desaparecer uma outra unidade, já existente e de real valor.


Neste quadro, que posição convém a Portugal? Independentemente da aliança antiga, e considerando apenas o jogo das forças mundiais que emergem, importa a Portugal uma Inglaterra forte e independente: "quem nos dera que possa continuar a ser um factor de equilíbrio entre os Estados Unidos e uma federação europeia em que a Alemanha seja o elemento preponderante". No mais, e "se posso ser intérprete do sentimento do povo português, devo afirmar que é tão entranhado o seu amor à independência e aos territórios ultramarinos, como parte relevante e essencial da sua história, que a ideia da federação, com prejuízo de uma e de outros, lhe repugna absolutamente". Nos dissídios da Europa, raras vezes Portugal interveio; e sempre com dano de outros interesses mais altos. Se agora se compromete no Pacto do Atlântico, e para caso de ataque pelo imperialismo russo, "é que há a compreensão nítida de que esse imperialismo traz consigo os elementos destrutivos da nossa mesma razão de ser"; e por isso evitar aquele ataque "é condição necessária ao prosseguimento da nossa missão no mundo". Da Europa, interessam a Portugal a paz, o génio e espírito da civilização cristã e mais nada; e Angola e Moçambique interessam bem mais. Felizmente, são de tal relevo os Pirenéus que abrigam a Península de uma absorção ou decisiva influência; a Espanha, com as suas ligações à América Central e do Sul decerto vê mais futuro no conjunto hispano-americano do que numa federação europeia. Do debate em torno do problema, a Portugal somente interessa não ser embaraçado no seu caminho; e por isso se tem abstido de intervir em discussões públicas ou de pertencer a alguns organismos, como o Conselho da Europa e outros. Portugal sabe que não pode influir na evolução das ideias e dos acontecimentos; "mas não devemos esquivar-nos a dizer com inteira lealdade o que pensamos acerca de umas e dos outros"».

Franco Nogueira («Salazar. IV, O Ataque - 1945-1958»).

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