segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Henrique Galvão e o problema colonial.

«Às 15 horas entrava no edifício da ONU e, pouco depois, numa sala enorme como grande praça pública, e completamente cheia de gente, era-me dada a palavra.

Falei duas horas e quinze minutos, sempre escutado com muita atenção, e apenas interrompido duas vezes pelo Presidente, a quem não convinha, ou por que assim o entendeu objectivamente, que eu me afastasse um só milímetro do assunto para que fora convocado. Contra a expectativa geral, e a minha, fui sempre tratado com impecável correcção. Depois de depor, seria o interrogatório para o qual estavam inscritos numerosos delegados dos países afro-asiáticos. Apenas cinco ou seis falaram, nitidamente contra mim, mas em termos perfeitamente aceitáveis, que, com facilidade rebati. A maioria dos que haviam pedido a palavra para interrogatórios, desistiram - e alguns vieram cumprimentar-me. Tive a impressão de que o meu depoimento os surpreendera e desconcertara. Esperavam que eu tomasse partido, por uma das teses correntes da ONU - e para essa hipótese se haviam preparado. Como poderia eu, meu Deus!, estar de acordo com qualquer dos extremismos que ali arengavam, no mais colossal desconcerto de propagandas delirantes que já se vira neste desconcertado mundo. A África real, a verdadeira África, que estava como pretexto de tantos ódios, paixões e interesses, não seria coisa muito diferente da que ali se apresentava? Não; o meu depoimento não concordava nem com uns nem com outros, nem com as maiorias nem com as minorias. Não podiam, é claro, responder-me sem previamente terem consultado os seus governos. Por isso todo o ataque foi frouxo - e a maioria desistiu. Como tivesse falado, sem me ter servido de quaisquer notas ou documentos, deixei depois um resumo da parte essencial do meu discurso que não só ficou na ONU como foi largamente distribuído.»

O PENSAMENTO POLÍTICO EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII António Ribeiro ...

«(...)Oitenta por cento das populações negras da África ainda vivem em regime tribal - um regime que tem conhecido alterações ou variações mais ou menos instáveis durante a sua existência milenária, mas que de modo algum tem evoluído progressivamente. Apesar de todos os dramas cruentíssimos da sua existência (migrações provocadas pela fome ou pela pressão de uma tribo mais forte, as guerras tribais, a feitiçaria, a escravatura e o nomadismo atávico de muitas tribos) a verdade é que os usos e costumes e as instituições tribais, longe de terem evoluído com o progresso dos seus melhores valores, que os houve como em qualquer outra raça, decaiu, corrompeu-se, enfraqueceu, por acção de causas próprias e factores estranhos, que não mais lhes permitiram encontrar-se no rumo de um destino especificamente africano. Foi assim, antes da intervenção dos Europeus em África; foi assim, a partir do século XV, quando, a bem dizer, e porque os Boers nunca se excederam para além do extremo sul do Continente, só os portugueses por lá andavam, comerciando em feitorias de um litoral quase inteiramente descoberto e ocupado, e dilatando a fé ou descobrindo terras do interior, em longas e penosas viagens em que muitos se perderam; e foi assim, ainda, na segunda metade do século XIX, depois da viagem místico-comercial de Levingstone e da de Stanley, que, tendo despertado as cobiças económicas e a curiosidade científica das grandes potências europeias, criaram a situação de competição de que resultaria a Conferência de Berlim, a partilha da África e, finalmente, a fase moderna do colonialismo ocidental.

Quando os Europeus - digamos, os Portugueses - entraram em África no século XV, encontraram já uma África tribal em decadência, ainda com todas as suas instituições em funcionamento, mas já minada pelos agentes destrutivos, por assim dizer suicidas, que tumultuariamente a arrastavam para a extinção pura e simples. Não importa, nem este seria o seu lugar, distinguir etnograficamente os povos que habitavam a África e os que a ela vieram como invasores (Bantus, Sudaneses, Nilóticos, Hamitas ou Chaimitas, Pigmeus e Bochimanes, Zulus ou Hotentotes, etc.). Importa aqui fixar apenas que nenhum vínculo especial ligava esses povos às terras que sucessivamente ocupavam e que todos mais ou menos, voluntária ou involuntariamente, abandonavam, acossados pelas necessidades de subsistência ou pela conquista de outra ou outras tribos mais poderosas, na inquietude social mais dramática que, porventura, se verificou no mundo. Não havia, nem podiam formar-se, em tais condições, ideias, conceitos ou sentimentos de pátria ou de nação, pois a terra era elemento transitório e fugaz, que podia abandonar-se e não prendia ninguém - nem sequer pelo respeito devido aos mortos que lá ficavam. Só a tribo, assim movediça e instável, a mais forte dominando e expulsando a mais fraca, a fome obrigando todas as cruéis migrações, juntava famílias e clãs, e dava a cada aglomerado populacional, independentemente da terra que ocupava, uma personalidade moral e política definidas. Mas também a tribo ia corrompendo nestas andanças, que facilitavam a exogamia casual, misturando sangues e adulterando os caracteres originais.

El secuestro del transatlántico Santa Liberdade, un ...

Desde o primeiro milénio da era cristã até ao fim do século XV, houve os grandes movimentos de migração dos povos bantus, que, vindos do Norte, Nordeste e Oriente, ocuparam quase toda a África Central e do Sul, tendo destruído, expulsado e escravizado, para se estabelecerem ou passarem, as antigas populações. Depois deram-se, para só citar as mais importantes, nos séculos XVI a XIX, as invasões dos Sudaneses, dos Nilóticos e dos últimos Bantus conduzidos por famílias hamitizadas. Estes últimos avançaram sob o impulso de pastores hamitas, proprietários de grandes rebanhos de gado, os quais, tendo descido dos planaltos de Nordeste procuravam novas pastagens, obrigando boa parte dos bantus agricultores, para evitar a fome, a deslocar-se em busca de novos terrenos de cultura. Um grupo destes hamitas, os gigantescos Watutsi, instalar-se-ia em Ruanda-Urundi. Outras migrações de menor importância se produziram incessantemente, e mais ou menos em toda a África ao sul do Sara, até à segunda metade do século XIX.

A tribo, a unidade gregária destes povos, manteve, durante toda essa atribulada época, a sua organização, os seus usos e costumes, as suas instituições, estranhos a qualquer influência exterior e tipicamente africanos. Mas não podiam deixar de sustar uma evolução progressiva, de a corromper - aos mais fortes como aos mais fracos, aos mais independentes como aos mais subjugados - esta correria das tribos através de toda a África, as confusões étnicas que daí resultaram e a inquietação que a todos dominava. Foi esta causa que mais decisivamente contribuiria para a decadência das tribos. Outras causas, porém, consequências delas, ou libertadas por elas do equilíbrio em que se mantinham com instituições que as compensavam ou corrigiam, contribuiriam pesadamente para o mesmo fim. Foram, sobretudo, as práticas da feitiçaria, depois a escravatura e a inospitalidade do clima, agravada pela incontinência sexual e pela selvajaria de uma terapêutica brutal. A escravatura, de que muitos europeus se fariam «colaboradores oportunistas» e que não era ainda negócio hediondo e se movimentava entre os costumes, era, desde tempos imemoriais, prática de negros, depois de negros e árabes, que forneciam de escravos o mercado internacional e os mantinham entre si como animais - costume que ainda se conserva clandestinamente em algumas tribos africanas.

É preciso realmente que a raça negra seja, como é, uma raça admirável, para ter resistido ao desgaste colossal de população que sofreu até à segunda metade do século XIX - e que, a continuar, a levaria, praticamente, em África, à extinção. Apesar da sua prolificidade, a raça negra era então uma raça em decomposição, suicida, cujo número minguava apressadamente - e que não encontrava a sua terra.

File:JRD - 1ª Exposição Colonial Portuguesa – Portugal, Porto ...

Foram os Europeus que, ocupando a África, depois a dividiram e nela se estabeleceram como senhores, e atrás deles outros ocidentais, que salvaram a raça negra, sustaram o seu movimento suicida e provocaram, ao fim e ao cabo, o progresso numérico da sua população. As guerras que empreenderam na ocupação das suas colónias, e que deixaram recordações odiosas, tiveram mais o aspecto de guerras disciplinares contra um estado de coisas insustentável do que propriamente o de guerras de conquistas; não fossem elas, e outras mais cruéis, entre os próprios negros, se teriam produzido. Talvez as intenções com que as fizeram fossem, em muitos casos, menos humanas; mas foi esse o seu resultado prático. Com os erros e pecados do seu colonialismo despótico, as suas cobiças espoliativas, o racismo desdenhoso de alguns, o desinteresse havido pela sorte e situação dos elementos nativos, as injustiças na distribuição das terras, enfim, com todos os males e defeitos que constituem hoje razões de queixa dos negros - e que são, por parte destes, factos inegáveis - esse colonialismo introduziu também em África, além de certa ordem na repressão dos costumes mais desumanos dos negros, escolas e hospitais, estudou e combateu as moléstias epidémicas que mais assolavam a África, difundiu as práticas de higiene, tornou habitáveis muitas regiões inóspitas, organizou serviços de assistência, combateu a escravatura, reprimiu a antropofagia e as práticas hediondas da feitiçaria, possibilitou o acesso de muitos negros às escolas e universidades e preparou, talvez inconscientemente, a revolução africana que depois da Segunda Grande Guerra eclodiu em África. Quer dizer: não só deteve os flagelos que destruíram a raça negra em África, como a levou a reencontrar as sendas em que a sua população poderia progredir; e isso parece ter sido esquecido mais facilmente do que foram os seus pecados, por aqueles que assentaram a sua revolução no ódio ao branco e se negam a reconhecer que, sem haverem passado por esta fase do colonialismo, isto é, sem a verdadeira revolução prévia realizada pelo colonialismo em África, a raça negra apenas teria consumado o seu suicídio.

Não foi isento, sim, de graves pecados e de alguns erros, o colonialismo praticado em África pelos Ocidentais, mas, considerado no seu todo, com os pecados que odiosamente se lembram e delatam, e com as virtudes que o ódio aceso pelos primeiros ignora ou pretende ignorar, falsificando a História - é certo que o saldo tem de avaliar-se positivo. Demais, positivos também foram os saldos do colonialismo a que todas as nações, as antigas e modernas, foram submetidas, e ao qual devem a possibilidade de formar as suas nacionalidades, até sem a menor consideração pela sorte dos povos nativos. Mas também, ao contrário do que sucedeu com outras nações que se libertaram do colonialismo, por bem ou por mal, não se mostram - nem poderiam mostrar-se - mais dignos, mais respeitáveis, mais humanos e mais conscientes da sua «liberdade», a maioria esmagadora das «nações» que precipitadamente alcançaram a independência política e passaram bruscamente, ou quiseram passar, de uma situação quase inteiramente tribal para a dignidade de nações livres e independentes.

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Aqui voltamos novamente à tribo, que parecia termos abandonado.

A partilha da África, quando da Conferência de Berlim, foi realizada por acordos e imposições ofegantes, com critério absolutamente colonialista, sem conhecimento dos territórios partilhados e com muito menos conhecimento ainda das tribos que os ocupavam. Foi uma partilha de régua e esquadro, combinada e imposta em gabinetes europeus mal informados, como facilmente se pode verificar hoje por simples exame de uma carta de África. Linhas convencionais de fronteira dividiram tribos que ficaram sujeitas a países diferentes - o que, de momento, não preocupava nem os Estados soberanos, cujos poderes ignoravam todas as dificuldades, nem as tribos, que ignoravam a arbitrária divisão. Estas apenas sentiam a licenciosa liberdade de movimentos perdida… e com um encargo e uma função novos para elas: o trabalho compelido e o imposto ao novo soberano. As coisas decorreram então perfeitamente, muitas foram-se humanizando, a cultura ocidental impunha-se e absorvia os mais anti-ocidentais - mas as tribos, então mais estudadas e rebuscadas, tornaram-se motivo de interesse para etnólogos ou de pitoresco para os amadores, sem que algum poder político demonstrasse preocupar-se pelo seu destino para além dos impostos e obrigações de trabalho. Destituídas de muitas das suas características originais que, contudo, já em decadência, se mantinham ainda especificamente africanas, e no uso de instituições que se equilibravam, muito reduzidos os poderes dos seus chefes tradicionais e mais distantes da cultura ocidental de que, a bem dizer, apenas conheciam as partes espoliativa e punitiva - as tribos esfarelaram-se. Esvaziaram-se do seu conteúdo substancial e não lhes deram coisa alguma que enchesse esse vazio; e assim ficaram, as mais fortes curtindo saudades tribais recalcadas de poder e glória, com ódios, todos os dias renascidos e cultivados, transmitidos de pais a filhos, em misteriosas conversas nos tchio cos; as mais fracas e submissas na apagada e vil tristeza do seu viver. Muitos brancos, então, pressentiram o perigo que representava esta situação tribal que só evoluía em ódios; mas as suas preocupações cristalizavam em literatura, que só como literatura impressionava os mais responsáveis. O negro trabalhava, pagava os seus impostos, era cliente cada vez mais numeroso de um mercado que todos os dias lhe oferecia coisas novas, e que assim se dilatava e prosperava; era o que realmente interessava à Administração.

Entretanto, a cultura ocidental havia criado fortes raízes. Das tribos chegavam às cidades, todos os dias, os melhores e os mais irrequietos - uns, que se espalhavam por escolas e universidades ocidentais, outros que permaneciam no burburinho das cidades - em confusos complexos de que faziam parte os grandes místicos, os revolucionários sem mística e os piores aventureiros. Uns vinte por cento da população - talvez exagere - arrancados às suas tribos, delas divorciados, mas ainda com os sentimentos tribais; todos aglutinados pelo ódio aos brancos, que mais tarde tanto comprometeria a justiça da sua revolução.

Veio a última guerra - e tudo se precipitou no espaço contra o Tempo. A algumas independências oportunas e a outras retardadas, sucederam as independências precipitadas de quase toda a África Central, que assim passava de uma realidade tribal para uma irrealidade nacional, sem ter passado por um estágio de autonomia sem colonialismo que houvesse arrumado a questão territorial e estabelecido fronteiras de harmonia com a distribuição tribal; que houvesse encarado a realidade das tribos de maneira a constituí-las em províncias; que houvesse saneado ódios alucinados; que houvesse, enfim, preparado povos, e não apenas líderes, para uma independência verdadeira. Não eliminaria possivelmente todas as lembranças amargas do colonialismo; mas tornaria muito mais respeitáveis as boas. Mas não. Por um lado, as independências foram dadas com incrível facilidade e sem lutas, e logo que se verificou que, sem as responsabilidades e despesas de Administração, podia manter-se o negócio; era o neocolonialismo que subrepticiamente se instalava como sucessor do colonialismo. Por outro lado, a maioria dos líderes africanos, ávidos de poder e manobrados por ódios descontrolados, aceitavam a situação sem medirem as consequências - e tanto melhor quanto a sua revolução encontrava no mundo uma simpatia quase universal.


As consequências aí estão, em oposição aos esforços da propaganda, ao auxílio que lhe prestaram os grandes repórteres internacionais, à falsificação que têm feito da História das coisas, à discussão de consequências com o desprezo das causas - lançando a Revolução africana na mais caótica das confusões.

Não nos surpreendem; sempre as previmos.

Embora agora com paixões importadas do grande conflito mundial - outras se ateariam com outras causas - o que actualmente sacode a África é a erupção espontânea de seculares irredutibilidades tribais que despertam, de velhos ódios contidos, que com o pretexto de novos mitos renovam um antigo estado de coisas.

A África arde hoje em quase toda a sua extensão. E mais arderá ainda - e então irreprimivelmente.»


(Henrique Galvão, in Da Minha Luta Contra o Salazarismo e o Comunismo em Portugal.


Sem pretender ser tendencioso, aqui fica bem patente, e pela voz de um anti-salazarista, um olhar sobre o problema colonial, bastante objectivo e focando o essencial, mostrando mesmo qual a raiz do problema e em antecipação à vergonhosa descolonização, profetizando mesmo qual seria o desfecho do processo, da forma como estava a ser conduzido, especialmente pelo incitamento ao ódio ao "branco"! 

O resultado é aquele que bem sabemos, um continente cada vez mais atrasado, os povos a viver na mais completa miséria, as recursos saqueados pelas grandes multinacionais e pseudo-democracias que não passam de sanguinárias ditaduras, infelizmente patrocinadas pela ONU, as tais democracias que apenas o são no papel, bem ao gosto dos senhores do mundo!!!                                                                                                                                                                                                                                          Alexandre Sarmento


4 comentários:

  1. Excelente Texto. Quantos dos que combateram Salazar,uns vivos outros já na eternidade ,estão arrependidos. Só corruptos e parasitas incompetentes, teem governado e muito mal o tacho chorudo, que Salazar deixou, além da obra feita,tanto em Portugal como nas ex-colónias. É só ler o texto indesmentível que ainda ontem partilhei "AS OBRAS DE SALAZAR".

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