quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A Alma Portuguesa.

 


Um retrato dos portugueses, da sua alma e raça, por Francisco da Cunha Leão, o qual subscrevo.

A brandura do temperamento caracteriza os Portugueses, particularmente emotivos, coisa que anda no Brasil, com muito açucar, «cravo e canela» dos trópicos. «Molezas ternas do carácter» segundo Fialho de Almeida, em observação comum às duas bandas do Minho.

Uma das nossas palavras-tipo, das que Unamuno considera definidoras e intraduzíveis, é meiguice.

A afectividade marca-nos, forma o tesouro da nossa psicologia, está na base da compreensão e do querer. A suprema evidência da vida, o que a torna bela e digna de ser vivida, é o amor, que atinge o absolutismo. O português compreende e age por comoção.

O outro grande pólo da evidência situa-se na morte. Amar e morrer são os estados plenos do ser.
Morrer, já nos cancioneiros medievais equivale a desejar muito (v. José Joaquim Nunes «Cantigas de Amigo», vol. III) e está ligado intimamente à elocução amorosa.

Amor e morte são para a mundividência portuguesa as duas únicas alternativas, excluem o termo médio.

Amor idêntico a vida. Fora dele outra dignidade não há que a da morte. E a morte vem a ser o cumprimento da existência que tem no amor e no heroísmo as cordas mais tensas, as máximas provocações.

O amor é uma absorção no Português, facto notado pelos Espanhóis e pelos nossos compatriotas conhecedores de Espanha (por ex. Lope de Vega e D. Francisco Manuel de Melo). Outra constante lhe foi reconhecida por esses e outros em todas as épocas: o valor guerreiro.

Tal supervivência do amor domina a Poesia - «a coisa mais séria que há em Portugal» na opinião de Afonso Lopes Vieira.

Estranho é que o verbo amar e o substantivo amor pululem na palavra escrita, enxameando alguns géneros literários, e sejam evitados, em especial as formas verbais, na linguagem oral, ao contrário do que acontece na conversação francesa. Vê-se que há pudor no uso do verbo amar, substituído quase sempre por gostar, querer e até adorar, (no afectado calão de Lisboa-Cascais).

A nosso ver isso provém da idealidade posta no amor, algo de sagrado que na fala quotidiana exige discrição, defesa da trivialidade. O caso é tanto mais notório quanto o Português não receia as palavras, propende a chamar as coisas muito naturalmente pelos seus nomes, razão porque o seu idioma dificilmente se amolda à tradução de textos amorosos franceses.

Significativo é o emprego frequente dos diminutivos, mormente da terminação inho, denunciadora de extremos de ternura.

Muitos acham ridícula, piegas, essa costumeira luso-galega. Cada povo fala, porém, conforme sente, imprime aos idiomas, que são sedimentares, o jeito da sua alma. Claro que a diminuição poderá obter-se com o qualificativo pequeno, qual o fazem os Franceses com petit. Mas pequeno, petiz significa redução, ao passo que o sufixo inho, as mais das vezes não minimiza, envolve ternura, e nas províncias do Norte, consideração, respeito afectuoso, como por exemplo chamar senhor Antoninho a um proprietário criado e radicado na terra, independentemente da estatura e idade.

O diminutivo nessas condições não é usado em relação a qualquer pessoa, revela certa escolha social, mediante o filtro afectivo de que o íncola se serve.

A moda foi de Norte a Sul, invadiu as terras de Além-Mar, Cabo Verde, o Brasil. No Algarve abundam os apelidos em diminutivo.

A sensibilidade complexa e o espírito irónico levaram a inflexões semânticas subtis. Aumentativos com intenção diminutiva, diminutivos ampliadores.

Tal brandura do temperamento impregnou as instituições, e joga contra os justiceiros quando exageram estribados na fria razão.

Assim a escravatura, entre nós, tornou-se moderada. O próprio Toynbee o reconhece. O quadro patriarcal em que se inseriu nos territórios portugueses e a tendência não segregacionista, quer pela indiscriminação das relações sexuais, quer por motivos de afectividade religiosa e de política unitária, levou à humanização do tratamento dos escravos e à alforria destes.

Se fomos dos primeiros a abolir a escravatura na generalidade, e não para ferir interesses rivais como a Grã-Bretanha, muito antes disso algumas disposições parciais a haviam abolido (por exemplo: a carta de alforria dada por D. Manuel I aos escravos de S. Tomé e a disposição idêntica para os índios do Brasil no tempo do marquês de Pombal). O padre António Vieira, pensador lusíada por excelência, é decerto o mais estreme procurador do movimento antiescravocrata moderno.

Contamo-nos também na primeira linha dos que baniram a pena de morte - coisa que soberbas nações, tão ciosas de comandos mundiais, ainda não fizeram. Orgulham-se da sua colossal engenharia, do poder económico e militar, da mecanização generalizada, sem que tenham conseguido institucionalizar um princípio básico em civilização que se diga cristã ou pelo menos humana.



O toureio da Lusitânia, conforme se fixou, tanto reflecte a bravura peninsular como um específico sentimentalismo, correndo o forcado com galhardia os riscos da luta contra o animal, opondo-lhe apenas o seu físico, e sem que haja o remate cruento da morte do touro.

A tourada «à portuguesa» é fruto do temperamento nacional. Desse ângulo nos cabe focá-la.

Entre nós jamais poderia ser um caso de vida ou de morte com o touro, como na Espanha, país das oposições frontais e dos extremos dramáticos. A nossa sensibilidade não concede que se derrame sangue por mera distracção.

Temos um jogo, um passatempo, já tradicionalmente evoluído, a que não dispensamos arte, fantasia e lealdade. O duelo do homem com a besta exerce-se, todavia, sujeito a um mínimo de convenção que o despoja dos aspectos mais bárbaros. Serram-se os cornos ao boi, mas dispensa-se a espada morticida; serram-se os cornos ao boi porque o homem também não pretende matá-lo, nem é preciso mortes para que haja lide; serram-se ainda porque os cavalos, os nobres cavalos que custam a amestrar não possuem arma equivalente e dói-nos vê-los esventrados, tripas de fora.

O forcado vai para a cabeça do touro de peito exposto, e desarmado. O cavaleiro floreia, volteia com destreza, movimentos amplos, galantaria.

Será barroco? Seja. Arte marialva, «entronização do amo»? Antes do mais, veja-se a causa psicológica, modeladora do público e do consenso nacional, que assim consagrou, humanizada, a «festa brava» dos portugueses.

Se o temperamento suave, comovível, como factor de plasticidade nos abre à compreensão do alheio e, desta sorte, ao universalismo, à tolerância, ele não deixa de comportar negativo reverso. A tão apreciada «brandura dos nossos costumes», descamba amiúde para amolecimento moral, condescendência em relação aos abusos, à vagabundagem e outras pechas de longa data aninhadas no meio social português. Uma delas está na generalização do empenho, a um tempo credencial e gazua, na «cunha» como verdadeira instituição nacional. Corrente pedir-se tudo, os mais altos cargos, as honrarias, o passar nos exames e a preferência nos concursos, as situações monopólicas, e desde o simples cumprimento do dever à mais grossa ilegalidade. Há mesmo quem considere um acto de cortesia a pessoa «recomendar-se», e desatenção não o fazer. É um dos aspectos que mais impressiona os estrangeiros.

Todavia o costume, por muito que se radique na nossa sensibilidade, alega motivos de justificação, a cada passo fundamentados pela demora e atropelos a que muitos assuntos, até de expediente, estão sujeitos em burocracias chinesas ou ronceiras, muito condicionadas e pouco selectivas, mesmo nas empresas particulares.

Também esta «brandura dos nossos costumes» leva a esquecer depressa, após o transe emocional. A própria justiça no caso de tardia ou muito rigorosa chega a desagradar aos mesmos que a reclamaram. Aceita-se melhor a violência fulminante, a sanha de ofendido ou traído que a impessoal, fria razão judiciária.

Sendo o Português no geral bondoso, sofredor, espanta que se transmude intrepidamente em violento e cruel.

É a «ira do manso», a pior, segundo Unamuno. Outros autores assinalaram esse aspecto revelado em certas páginas breves, mas extremamente brutais da nossa história, em que há lances de cólera cega. Tais episódios parecem desmentir a brandura do carácter e dos costumes, a baixa criminalidade do nosso povo.

A contradição equivale às que se verificam noutro campo, entre a veia lírica e a satírica, entre um idealismo do «amor-adoração» e a obscenidade boçal da chalaça amorosa.

Oliveira Martins chega a falar em força aliada ao terror, demonstração extrema e extremo desconcertante da psicologia portuguesa, que também lhe serve para se não vergar à intimidação terrorista como ainda há poucos anos aconteceu em Angola, cuja população, espontaneamente, e sem aguardar o apoio da Metrópole, afrontou com a maior bravura, a bárbara, selvagem explosão.

A ferocidade é inscrita por Sampaio Bruno como distintiva de Portugal antigo. Di-lo a propósito da Inquisição, apoiado em narrativas de autos-de-fé no seu livro «O Encoberto». Associa o facto a um «religiosismo intransigente». Incide a crítica, efectivamente, sobre uma época de intenso fanatismo, entre acções e reacções reformistas heterodoxas como ortodoxas que geraram uma atmosfera de excessos, até e principalmente, nos países considerados hoje mais livres e tolerantes.


Aliás, haverá história que se meça com a da Inglaterra, em especial nos séculos XVI e XVII, nas múltiplas manifestações endógenas de violência configuradas em perfídias cruas, odiosas, incansáveis perseguições, intolerância, esbulhos, descaroáveis assassínios e matanças?

Ter-se-iam modificado os Portugueses de Oitocentos, após a sangreira fratricida das guerras liberais? Modificaram-se os Ingleses, Franceses, Italianos?

A dificuldade está em discernir o que é temporal do que é idiossincrático, ou melhor, os processos evolutivos da conjugação desses factores.

A brandura, o carácter amoroso, a generosidade humana dos Portugueses parece-nos uma constante, certificada em todas as épocas, mediante literatura, arte, obras pias e o trato com a restante humanidade. Outra constante, por igual certificada pelos séculos, é a do heroísmo, da bravura no combate.

Já a violência é intermitente, por explosivismo dos recalques de um povo sofredor e resignado, por atiçamento passional sobre as circunstâncias que destemperam a nossa peculiar sensibilidade, quais sejam o cálculo pérfido, a traição, a usura desapiedada. Isso exprime-se em condescendência beneficiária daqueles que, perdendo a razão por decepções sentimentais, acaso foram cruéis; dos violentos cheios de razão; dos que, possuídos por um idealismo apaixonado, esquecendo-se de si próprios, também puderam incorrer nalgumas desatenções ou desvios de sensibilidade.

Dispensamo-nos de apresentar exemplos, visto que são flagrantes; de uma História Pátria que é das menos sangrentas ressaltam com nitidez as violências perdoadas e as não perdoadas. E pelas razões expostas.

(in Ensaio de Psicologia Portuguesa, Guimarães Editores, 1971, pp. 96-104).

1 comentário:

  1. Nos Lusíadas já o Luiz de Camões, descrevia que não havia terra como a sua. Ele que esteve em Goa, em Ceuta e mais mundo que ele e outros iguais a ele tornou esta nossa amada Pátria possível até aos nossos dias.

    ResponderEliminar

O Molusco...

Para bom entendedor... «(...) A ambiguidade da figura de Caetano, de acordo com o The New York Times, tinha ficado bem demonstrada na sua at...