sexta-feira, 26 de junho de 2020

O tempo livre, por Agostinho da Silva.


É Realizações | Agostinho da Silva


Excerto de uma entrevista de Victor Mendanha ao Prof.Agostinho da Silva, muito interessante a visão deste grande pensador.

A.S. – As pessoas julgam irem ser pagas as grandes dívidas internacionais deste país àquele ou daquele ao outro?

Se o Brasil deve 3 biliões e não sei quê e os Estados Unidos da América 5 biliões e não sei quanto, quem vai pagar as dívidas a quem?
Haverá uma altura em que já nem se saberá quem é o credor e quem é o devedor.

Só então o problema se irá resolver.

V.M. – Irá resolver-se politicamente?

A.S. – Por política, por pensamento político? Não creio muito nisso, sabe?

A situação é tão complicada como a textura da Terra, com as suas placas tectónicas que, de vez em quando, chocam umas com as outras, provocando um terramoto.

Então, poderíamos censurar o mundo dos engenheiros por não terem encontrado, ainda, as máquinas suficientes para evitar os terramotos, não deixando chocar umas placas com as outras.

Não fazemos essa censura por pensar tratar-se de uma atitude idiota, no entanto continuamos a censurar os políticos porque eles não arranjam as máquinas necessárias para evitar os terramotos políticos.

Os actuais problemas do Mundo são de tal ordem que excedem toda a capacidade humana de os pensar.

Não sabemos, por exemplo, como iremos resolver o problema de manter vivos os desempregados já que serão cada vez mais por uma razão muito simples: eles não são desempregados, o que desapareceu no Mundo foi o emprego.

Não poderei dizer não estar o meu casaco pendurado se não houver cabides, sucedendo a mesma coisa com o desemprego: se não existe emprego como pode o desgraçado estar desempregado?

V.M. – Qual vai ser a saída desse impasse?

A.S. – O Mundo vai ter de os matar, deixando-os morrer, ou vai ter de os alimentar.

Quando optar pela segunda solução, o Mundo entrará num tipo de Economia completamente diferente. Já não se trata de uma economia de produção organizada mas, isso sim, de uma economia de distribuição organizada. Curiosamente, aquela que os portugueses criaram, na Idade Média, com o culto do Espírito Santo: o banquete gratuito na vida.

V.M. – Essas mudanças provocarão situações surpreendentes.

A.S. – Pois provocarão.

Por que é que os pais mandam os filhos para a escola? Porque sabem não haver outra forma de lhes arranjar emprego, que os empregos serão muito difíceis sem isso.

Mas se, agora, milhões de meninos já nascem reformados como passará a ser isso da instrução obrigatória e da escolaridade, tal como a temos, para preparar os meninos para as profissões?

O pensamento do Ministro da Educação Roberto Carneiro, quanto à necessidade de haver escolas que, ao mesmo tempo, possam dar capacidade de emprego para uns e liberdade para outros, através da instrução nas artes de que eles gostam – pode ser a agricultura, pode ser a pintura, pode ser a modelagem – é um pensamento certo.

V.M. – Não concorda com os tempos livres?

A.S. – Toda a gente sabe ser, o tempo livre, o pior presente que um homem pode receber.

Suponhamos que se conseguia que todos os meninos tivessem, como agora se diz, sucesso escolar mas, amanhã, não encontrando emprego, apenas lhes restava o tempo livre.

Não possuindo nada para preencher esse tempo livre, fariam toda a espécie de disparates, desde o suicídio até o assassínio dos outros.

V.M. – O tempo livre é assim tão pernicioso?

A.S. – O tempo livre, quando não se enche com coisa nenhuma, torna-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo.

É a razão porque morre tanto reformado já que, deixando de ter o seu emprego, se não encontrar novos objectivos na vida, a morte seguir-se-á rapidamente.

O facto de haver desemprego no Mundo é como o fermento que entrou na massa e faz o verdadeiro pão comido hoje por todos nós. A existência de desempregados irá obrigar o Mundo a prover os indivíduos das artes e das ciências de forma a permitir-lhes serem livres e criadores no tempo livre, assumindo na vida uma atitude completamente diferente, seja qual for a especialidade escolhida.

As coisas vão mudar nesse sentido.

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