sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Salazar - Em defesa do Império.

 



«... mesmo em ambiente de paz, um ponto sobressalta a sensibilidade política de Salazar: a campanha que internacionalmente se lança contra a existência de ligações de soberania entre a Europa Ocidental e territórios noutros continentes. Já há anos, em discurso público, aludira a ventos que poderiam pegar fogo à África; e em Conselho de Ministros de há tempo declarara estar no momento mais preocupado com o futuro do ultramar português do que o estivera durante a guerra. E agora Salazar verifica que se interpretam e procuram aplicar algumas disposições da Carta das Nações Unidas no sentido de pôr em causa e destruir os laços políticos que a Europa Ocidental mantém na Ásia e África; e o maior perigo reside em os Estados Unidos e a União Soviética, no seu intervencionismo, darem à Carta da ONU, naquele capítulo, uma interpretação semelhante, e no facto de a Europa parecer desejosa de alijar as suas responsabilidades pelo mundo. Perante as grandes forças, e as borrascas que desencadeiam, há que resistir até ao amainar da tempestade: e o chefe do governo procura incutir no país o ânimo apropriado, e habilitá-lo a descortinar com nitidez as realidades por detrás das aparências.





(...) E Salazar, certo de que, mais do que a de outros povos, é fugaz a memória dos portugueses, insiste nos seus temas. Em face dos erros cometidos pelos ocidentais, na sua política de guerra, a Rússia tem explorado com êxito a vitória, criando à sua volta uma rede de países em que a identidade do sistema constitui o elemento de defesa e de monopólio económico; o comunismo deixou de ser havido por doutrina filosófica ou económico-social como qualquer outra, aspirando a partilhar o poder ou a realizar no poder certo número de reformas em favor das massas; o carácter totalitário da doutrina torna-a incompatível com a civilização do Ocidente, e os partidos comunistas funcionam "efectivamente como secções de um partido que é um Estado estrangeiro"; todas as tentativas de conciliação na ordem interna ficam votadas ao fracasso; e a vastidão do império russo dá-lhe imunidade quanto ao exterior, ao mesmo tempo que se arroga o direito de intervir por toda a parte. Felizmente, desde há um ano, as potências ocidentais retomaram a iniciativa, e as vantagens têm sido evidentes. Se todos os povos, incluindo o russo, aspiram à paz, "só é política digna dos nossos esforços a que tenda e consiga evitar a guerra". Mas um conflito apenas pode ser prevenido "através de uma preparação bastante" que restabeleça "um equilíbrio de forças", de modo a tornar "a guerra negócio arriscado e grave". Ao Ocidente compete, portanto, "reforçar a sua defesa e não largar de mão as poucas cartas que, embora diminuídas, ainda lhe ficaram no desbarato final das operações militares". Esta política de se "armar para a guerra por amor da paz" exige sólidas frentes interiores, e sobre a "formação da nossa farei as minhas últimas considerações". Importa ter em conta que "o comunismo não é necessariamente um partido nem precisa de dispor de maioria: basta-lhe dispor de uma minoria, movida por uma fé e servida por uma técnica de proselitismo e de combate, técnica que é a síntese de tudo quanto a experiência e a psicologia descobriram para dominar e conduzir as massas humanas". Para se opor ao comunismo há uma tendência para depositar esperanças na repressão; mas estas são excessivas; e impõe-se sobretudo uma "acção intensiva de aliciação das inteligências à volta de um sistema de ideias que o repilam". E o chefe do governo conclui: "Tomemos sobretudo em mãos a iniciativa da campanha, porque é para mim evidente que o comunismo em Portugal só pode tomar o lugar que nós deixarmos vago na inteligência e no coração dos portugueses".

No Diário de Notícias, em dois longos fundos, Augusto de Castro comenta o discurso de Salazar: E pergunta: há uma ideologia ocidental? Há: "é greco-latina, cristã, atlântica, mãe soberba de todas as grandes invenções".

(...) Paralelamente, adquire consciência e dimensão a ofensiva ideológica contra os países ocidentais. Seguindo a orientação política que já Lenine propusera, e uma vez que está organizada a defesa da Europa Ocidental, Moscovo procura contornar esta, e enfraquecê-la em áreas que ficam para além dos limites geográficos do Pacto do Atlântico. À derrota do Japão sucede o esboroamento da hegemonia ocidental no extremo-asiático; e paradoxalmente o Japão vê triunfar, naquela parte do mundo, os ideais e os objectivos por que se batera e fora esmagado. Mas outro continente está ligado à Europa: é a África: e ambos se entreajudam e são complementares nos planos económico, estratégico, político. Nesta base, a ruptura e a hostilidade entre os dois arrastam ao enfraquecimento recíproco; e este convém à União Soviética, e aos novos países cuja independência fora proclamada na Ásia depois da guerra. Para o conseguir, os adversários exploram princípios de que o próprio Ocidente é autor e lhe são caros: a dignidade da pessoa humana, os direitos individuais, a legitimidade do facto nacional, o direito dos povos a determinarem o seu destino, o consenso democrático em torno de instituições e regimes, a liberdade de expressão do pensamento. Do mesmo passo, acusa-se o Ocidente Europeu de se contradizer, e alega-se o imperialismo, a opressão, o racismo, a exploração económica a que está submetido o continente africano. Julgam os países europeus que se encontram presos de um dilema: proclamarem para si princípios que negam para outros. E a Europa, ainda exangue, perturbada, em crise moral e mental, suscita no seu seio um complexo de culpa: há que redimir os pecados, há que ser genuína no respeito e aplicação dos princípios. E entre os europeus dissemina-se uma convicção: a melhor forma de destruir as acusações consiste em aceitar a sua procedência. Se se instituir por toda a África o princípio da democracia de raiz ocidental, este facto leva por si à rejeição de regimes autoritários e assegura a continuidade da cooperação e do entendimento entre a Europa do Ocidente e a África. Para mais, uma tal solução aliviará a Europa de pesadas responsabilidades, de despesas de administração, de gastos militares para a defesa da soberania. Está-se assim perante uma situação que é, ao mesmo tempo, ideológica e de expediente político. Por parte da União Soviética, seus satélites e novos países, há o objectivo de enfraquecer a Europa, batendo-a com os seus próprios princípios, e de negar a esta o apoio e os recursos da África; e por parte do Ocidente há o objectivo de, dando razão ao adversário, frustrar as acusações deste, e manter para a Europa a cooperação da África, garantindo assim a complementaridade dos dois continentes. Conquistar ideologicamente a África torna-se fundamental; e para tanto segue-se uma política de licitação pública, numa corrida de concessões em que cada um procura exceder as dos adversários, para assim aliciar as boas graças daqueles cujo apoio busca. Está firmado o anticolonialismo.




Encontra este o seu centro impulsionador no plano das Nações Unidas, e à sombra da Carta. Para promover o bem-estar dos povos e assegurar entre as nações a colaboração nos domínios económico, social, educativo e até político, a Carta estabelece três modalidades: a Cooperação Internacional Económica e Social, regulada nos capítulos IX e X; a Declaração sobre Territórios Não-autónomos, de que se ocupa o capítulo XI; e o Sistema Internacional de Fideicomissos ou Curadorias, tratado no capítulo XII. Ao primeiro sistema, e para o executar, corresponde o Conselho Económico Social, onde se debatem os problemas económicos e sociais que afectem áreas determinadas ou grupos de nações; e ao terceiro corresponde o Conselho de Curadorias, onde se examinam as questões respeitantes a territórios sob o antigo mandato da Liga de Genebra, ou que as potências responsáveis hajam espontaneamente colocado sob curadoria internacional. Mas para administrar o sistema do capítulo XI - relativo a territórios não-autónomos - não estabelece a Carta qualquer orgão. No entanto, o anticolonialismo rapidamente aproveita a Quarta Comissão da Assembleia Geral e transforma-a no orgão de ataque às potências coloniais. Para o efeito, o capítulo XI, nos seus arts. 73.º e 74.º, é interpretado através de sucessivas resoluções como impondo às potências administrativas de territórios não-autónomos obrigações equivalentes às das potências em territórios em fideicomisso. Nestes termos, os territórios não-autónomos são havidos por colónias e da parte das potências detentoras há o dever de conduzir os seus habitantes à auto-determinação, sob a égide e fiscalização da ONU: e os membros das Nações Unidas que possuam colónias são solicitados a declarar as suas intenções e os seus planos para se alcançar aquele objectivo. Achou o anticolonialismo a sua plataforma parlamentar para a acção política.

Desde 25 de Novembro, Salazar não tem reunido o Conselho de Ministros. Arreiga-se a sua convicção de que é pouco profícuo o trabalho do Conselho em plenário. Para mais, preocupa-o a revisão constitucional, e em particular a do Acto Colonial. Trata-se de integrar este, de forma homogénea, no corpo da Constituição. Importa acima de tudo, no entanto, resolver um problema básico: mantém-se para os territórios de além-mar a designação de colónias ou regressa-se à de províncias ultramarinas? Não é apenas vocabular a questão; e são muitas as implicações no plano interno e externo: No primeiro, a mudança supõe a ideia de integração progressiva, nos domínios económico e político, entre metrópole e ultramar, com toda uma visão nova e em grande da nação portuguesa; no plano externo, nega frontalmente as teses anticolonialistas, e portanto exime os territórios de além-mar à aplicação dos princípios proclamados pelas Nações Unidas; e finalmente, por paradoxal que parecesse a muitos, significa o abandono da noção de império e de estruturas imperiais, incompatíveis com uma integração paritária.




(...) Na tradição do direito público português e na terminologia corrente os territórios de além-mar haviam tido a designação de províncias. Esta designação é usada desde 1576 e consta de um diploma de 12 de Março de 1633; e foi transladada para as constituições liberais, desde 1820, que consideravam as províncias ultramarinas como parte integrante da Coroa portuguesa. O Título V da Constituição de 1911 designava-se: Administração das Províncias Ultramarinas. Posteriormente, a I República adoptou a designação de colónias. A abolição deste nome e o regresso ao de províncias foi assim um retorno a uma tradição de séculos. No plano internacional, o governo português foi depois acusado de inventar a expressão províncias ultramarinas e de a usar como expediente político para escapar ao anticolonialismo. Este factor teve decerto influência; mas não foi o único; e em qualquer caso não se tratou de facto de uma invenção.

(...) Este último ponto, todavia, suscita dúvidas e objecções em alguns sectores. Do Acto Colonial, por que Salazar fora responsável quando gerira as Colónias, passara-se a uma concepção imperial, a que Armindo Monteiro dera o seu esforço, quando ministro daquela pasta. Depois de demitido da embaixada de Londres e de um regresso acerbo a Lisboa, atravessara um período de ressentimento e ostracismo. Esbatida a mágoa, Monteiro reaproxima-se do governo, e pela mão de Marcello Caetano entra como procurador da Câmara Corporativa. Mas agora enfileira entre os que se opõem à conversão de colónias em províncias. Salazar encara o problema sob ângulo diverso: há que colocar o país num terreno jurídico e político que lhe permita resistir com êxito à onda de anticolonialismo. É nesta base que Salazar concebe as propostas de revisão constitucional a apresentar à Câmara Corporativa e à Assembleia Nacional e que, além do Acto Colonial, afectam outros artigos da Constituição, para os tornar conformes com a nova terminologia. Salazar concentra-se no problema com atenção e minúcia; e consulta repetidamente os seus conselheiros e numerosas personalidades ultramarinas. Pensa, reflecte, avança com lentidão. Para mais, o funcionamento da Assembleia está suspenso, e não é necessário precipitar a submissão das propostas.

Desta preocupação é distraído em meados de Janeiro de 1951. Numa viagem que o leva às capitais dos países membros do Pacto do Atlântico, chega a Lisboa o general Eisenhower, e na manhã de 17 daquele mês é recebido pelo chefe do governo.

É no gabinete de S. Bento; Salazar está bem-disposto, com modo afável mas decidido, e calmo e senhor de si. Felicita Eisenhower pela designação para comandante supremo das forças do Pacto, e estima a escolha, tão lembrado como o general é desde as campanhas na Europa. Eisenhower parece intimidado: fala de locais pitorescos de Lisboa, das fotografias que tirou. Salazar pergunta que estado de espírito encontrou o general nas capitais já visitadas. Tem melhorado, afirma Eisenhower, mas há um problema psicológico: os europeus não actuam sem que os americanos entreguem os equipamentos prometidos, os americanos não entregam os equipamentos sem saber o que estão os europeus fazendo de concreto. Comenta Salazar que este lhe parece ser um problema político: se solucionado, os demais resolver-se-ão também. Depois, o chefe do governo expõe o seu ponto de vista sobre a situação actual. Foi errada a base de partida. Julgou-se ser a miséria a única fonte do comunismo. "isto é uma ilusão: o comunismo pode desenvolver-se mesmo em meios ricos ou pobres: é uma atitude de snobismo intelectual, com a pretensão de ser diferente dos demais". E assim "os milhões de dólares americanos não bastarão para o conter". Todavia, em virtude do plano Marshall, está hoje facilitada a missão do comandante supremo; agora, importa evitar a guerra, não importa vencê-la; e apenas pela força é possível evitá-la. Seriam idênticos para todos os resultados de um conflito: a destruição. "Decerto", interpõe Eisenhower, "mas se a guerra deflagrar, a última das coisas a fazer seria perdê-la". Salazar entende que pior do que a derrota é a escravidão. Por si, a "Rússia não quer a guerra"; e "não haverá guerra se for possível preparar defensivamente todo o Ocidente". Mas Eisenhower sente um receio: as correntes isolacionistas nos Estados Unidos. Homens de consequência, como Hoover ou Taft [Herbert Hoover, antigo presidente dos Estados Unidos, e Robert Taft, influente senador do Partido Republicano], desconfiam da Europa, e sustentam que a América não tem de assumir responsabilidades para além-fronteiras. Há que persuadi-los de que a Europa está pronta a dar a sua contribuição. "É muito perigosa para os próprios Estados Unidos a tese do Senador Taft", diz Salazar. Sem dúvida: mas veja-se como é aliciante: "não mais encargos, não mais impostos a pagar". Há que rebater a tese antes de conquistar muitos adeptos; e por isso Eisenhower está desejoso de ir aos Estados Unidos para "poder falar dos esforços feitos na Europa, do que viu e ouviu com os seus próprios olhos e ouvidos". Sim, conclui Salazar, a Europa está pronta, se os Estados Unidos forem firmes no seu apoio, e há ainda valores europeus desaproveitados, que o poderiam ser com benefício. Eisenhower despede-se. Mas antes de sair quer pedir desculpa de um incidente. Desculpa? Um incidente? Sim, um incidente durante a guerra. Um piloto americano, dirigindo-se a África, aterrou por engano em Portugal, e só então se apercebeu de que estava em país neutral; prometeu à torre de comando que se apresentaria às autoridades portuguesas; mas levantou voo, e fugiu. Quebrara assim a promessa, e iludiu a boa-fé daquelas. Então Eisenhower entrou em contacto com o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, e pediu-lhe para comunicar às autoridades portuguesas que estava disposto a mandar o piloto para ser internado. Simplesmente, o governo de Lisboa responde que "esquecera" o incidente. E Salazar ri: "Ah! É que houve a intenção de não diminuir as forças de que dispunha o general!" Depois o comandante supremo visita ainda Santos Costa, Paulo Cunha, entidades militares superiores, e cumprimenta Carmona. E quando atravessa o Atlântico e, em Otava, se avista com os ministros canadianos reunidos em Conselho, Eisenhower diz-lhes: "De todos os estadistas europeus com quem conversei, Salazar parece-me o mais lúcido e avisado".




(...) Chegam a Lisboa jornalistas  do mundo e figuras de marca na política internacional do Ocidente: Dean Acheson, pelos Estados Unidos; Anthony Eden, pela Inglaterra; Paul Van Zeeland, pela Bélgica; Dirk Stikker, pela Holanda; Edgar Faure, Robert Schumann e Georges Bidault, pela França; Lester Pearson, pelo Canadá; Alcide de Gasperi, pela Itália. No Palácio de S. Bento, a 20 de Fevereiro de 1952, reúnem-se todas as delegações para uma sessão solene, sob a presidência de Costa Leite, em representação de Salazar. Paulo Cunha profere um discurso de abertura: são seus temas o Ocidente, o reforço da sua defesa, a admissão da Espanha no Pacto. No Diário de Notícias, Augusto de Castro reivindica para Portugal e Salazar a prioridade na definição de atitudes do Ocidente, que foram mais tarde perfilhadas e seguidas pelas grandes potências. Depois, são as sessões de trabalho no Instituto Técnico. São tomadas decisões básicas: a entrada definitiva da Grécia e da Turquia, como membros do Pacto; a criação de um posto de secretário-geral; o reforço do dispositivo de segurança; a mobilização de 50 divisões de combate; a atribuição de novos créditos para despesas militares. Salazar recebe individualmente os principais ministros estrangeiros. Recebe o seu amigo André de Staerck, delegado belga junto da NATO, que "deu o prazer de vir um dia almoçar comigo" mas "não me soube dar notícias do príncipe Carlos". E "pude estar três quartos de hora com Van Zeeland, que foi brilhante como sempre". É longa a conversa com Eden: conhecem-se enfim aqueles dois homens que há quase vinte anos, cortados de algumas intermitências, conduzem entre si negócios graves para Portugal e Inglaterra, mesmo para o mundo. E é também extensa a entrevista com Dean Acheson. Este sente-se surpreendido: "Fiquei muito impressionado com Portugal". Não notou tensões sociais, nem os indícios de uma ditadura; o povo parecia tranquilo, tanto na cidade como nos campos. "E fiquei especialmente impressionado quando visitei Salazar", no edifício da Assembleia Nacional. Não havia polícia, nem guardas; no gabinete, não viu telefones; Salazar não tinha papéis em cima da secretária. Salazar diz que o seu interesse consiste em equilibrar o orçamento, manter estável a moeda, assegurar pleno emprego, fortalecer e ampliar uma vasta classe média, garantir preços baixos para géneros essenciais. E industrialização? Decerto; mas com vagar e prudência, para não criar desemprego. E que retrato de Salazar fixa Dean Acheson? "Ele é uma personalidade muito forte, e agradável, de tipo português""A coisa mais impressionante em Salazar, são as suas mãos, extraordinariamente belas, e sempre activas enquanto fala, esculpindo no ar aquilo de que fala, como se o ar fosse feito de plástico e ele o estivesse a talhar"; "nada tem de pomposo, nem pretende impor-se""enterra-se na poltrona, quase fica suspenso pelos ombros, pernas estendidas, e conversa com muita facilidade e calma". E Dean Acheson estranha o gabinete, modesto embora digno, mas sem bulício, sem agitação: "o do Presidente dos Estados Unidos é um cortiço, com gente a entrar e a sair, telefones a tocar, processos e papéis por toda a parte". Salazar comenta: "Eu não poderia trabalhar assim; fazer muitas coisas ao mesmo tempo e ter a sensação de estar muito atarefado não significa realização efectiva"; quando enfrenta um problema, tem de o estudar: e "não julga que muitos telefones a tocar e muitos secretários a correr o pudessem auxiliar". Não: pondera uma questão como um navegador, com a bússola e a carta, traça o rumo; no percurso surge toda a sorte de problemas, o mar calmo, as tempestades, os escolhos; vai-os resolvendo um a um; e com bússola e carta mantém o navio no rumo certo. Acheson observa que essa é a técnica de quem espera o futuro calmamente, sem pressas; e isso faz-lhe lembrar uma velha senhora sua conhecida, para quem a coisa melhor que o futuro tinha era aproximar-se apenas por um dia de cada vez. "É isso", diz Salazar, "essa senhora é muito sábia".

(...) Regressado aos Estados Unidos, Dwight Eisenhower apresenta a sua candidatura à Presidência, em nome do partido republicano; é eleito; e sucede a Harry Truman. No Departamento de Estado, Dean Acheson é substituído por John Foster Dulles. Tem repercussões no mundo o resultado da eleição: que política será a de Eisenhower? Em França, acentua-se a instabilidade governamental, e desta resulta uma oscilação constante da atitude de Paris. Schumann abandona os Negócios Estrangeiros, e regressa Georges Bidault; e de novo estão em causa o papel da França, na NATO, e as relações como a nova Alemanha de Konrad Adenauer. Neste particular, o debate político em França trava-se sobre a questão de manter um exército francês autónomo, ou de o europeizar numa união da Europa Ocidental, ou na estrutura da NATO; e ainda sobre o estatuto da Alemanha, que ressurge como Estado Federal, e a cooperação desta com o Ocidente. São tradicionais os receios da França perante um ressurgimento do poderio germânico; restabelecer este, todavia, parece indispensável para resistir ao expansionismo soviético; há que procurar, desta forma, o melhor enquadramento para uma Alemanha remilitarizada; e Londres e Washington, com a anuência de Bonn, inclinam-se para a entrada da nova República Federal no quadro do Pacto do Atlântico. Por seu lado os Estados Unidos, sob a orientação de Dulles, reforçam uma política de alianças para além da NATO, e destinada a conter a penetração russa; as Filipinas, a Austrália, a Nova Zelândia, a Tailândia, o Paquistão, a França e o Reino Unido dão o seu aval a essa política; e em paralelo com a NATO, é firmada a SEATO [iniciais para significar: South East Treaty Organization]. De súbito, porém o mundo é colhido por uma notícia inesperada: em 5 de Março de 1953 morre Estaline. Da reunião do presidium emana a escolha de Georgi Malenkov para lhe suceder em todos os cargos; mas, pouco após, a sua actividade fica cingida à chefia do governo; e as suas funções de secretário do partido são confiadas a Nikita Krushchev. No exterior, há a sensação de que, no plano político, está constituído um triunvirato formado por Malenkov, Beria e Molotov, e que disporia das decisões supremas: é o princípio da chefia colectiva ou colegial, apresentado como inovação na estrutura do poder soviético: e é denunciado o culto da personalidade do tempo de Estaline. Pelo mundo corre uma interrogação: vão cessar o terror, a agressividade, a subversão de terceiros países, o expansionismo imperial da ditadura estaliniana? Muitos ficam persuadidos de que a União Soviética, desaparecido o ditador de aço, vai entrar num período de distensão, de liberalismo; e entre os povos dos países satélites há sobressaltos de esperança. E Eisenhower declara: "o mundo inteiro sabe que com a morte de Estaline findou uma era".




Em Lisboa, Salazar, sempre apaixonado pela situação do mundo, não deixa de se sentir preocupado, e mesmo perplexo. Como a encara neste momento? Escreve para Bruxelas, a Eduardo Leitão: "Noto na vida internacional uma pausa, de um lado provocada por ninguém saber quais serão e até onde irão as divergências no respeitante aos negócios do mundo entre a administração Eisenhower e a de Truman, por outro lado pela mutação no governo da França que se encontra em face de uma opinião pouco disposta a aceitar o exército europeu, ou talvez mais precisamente a dissolução do exército francês no exército europeu". E quanto a ideias federalistas? "A meu ver", diz Salazar, "as ideias federalistas que parece terem sido tão do agrado de franceses e italianos e não sei se belgas e holandeses, apesar do impulso que por todas as formas lhes dão os americanos, encontram dificuldades de execução e até poucas simpatias em muitos meios, convencidos de que se trata menos de um problema europeu do que de arranjar maneira de resolver dificuldades da política francesa". Em nada disto tem Portugal que estar envolvido, mas "o caso é sobretudo desagradável porque estes vai-vens da política europeia fazem perder tempo na organização de forças e no estreitamente da cooperação económica, militar, cultural e política que, sem federação ou com federação, é possível e necessário estabelecer e reafirmar".

Estas preocupações pela defesa do Ocidente não são exclusivas de Salazar. São partilhadas por homens eminentes, da política e das letras, em muitos países do Ocidente. Há pouco fora Henri Massis, que viera desabafar junto de Salazar a sua ansiedade; e agora é a Gustave Thibon, da mesma linha ideológica de Massis e de Gabriel Marcel, que Salazar recebe, e interroga sobre a situação francesa, e de quem escuta iguais desabafos. E são também homens da política: é André de Staercke, muito ligado a Paul Spaak, que em cartas e visitas não esconde o seu pessimismo; é Van Acker, primeiro-ministro belga; é Paul Van Zeeland, que continua ministro dos Estrangeiros da Bélgica; são outros ainda. E justamente Van Zeeland acaba de convocar Eduardo Leitão e de lhe pedir para consultar o chefe do governo português sobre a conjuntura mundial, e em particular os negócios da Europa e as ideias em curso quanto ao futuro desta. Leitão tudo transmite para Lisboa, e Salazar responde à consulta de Van Zeeland no dia seguinte ao da morte de Estaline. Traça um quadro inicial: "As coisas aparecem-nos assim: os Estados Unidos, pela simplicidade do seu espírito e ligeireza das suas opiniões, não vêem para a Europa outra solução política que não seja a unidade através da federação; a França, que se nos afigura um país cansado de lutar e a quem a plena independência parece pesar, adopta a ideia como a maneira mais fácil de evitar o rearmamento alemão isolado e amanhã potencialmente hostil; as nações que se agrupam em volta da França parecem convencidas, embora por motivos diversos, de que aquele é o melhor caminho de salvar a Europa e talvez o único de assegurar o apoio americano, em potência militar ou em dólares". Desdobra depois o seu pensamento: há apenas duas realidades, que são uma ideologia americana e uma política francesa: mas a viabilidade de executar a ideia, o ambiente político e moral, os problemas económicos, estão em plano secundário, embora sejam o essencial. Por ideologia americana, entenda-se uma ideia de partido político no governo; por política francesa entenda-se a de uma fracção dos políticos franceses, porque a França, "se anseia por não ter de bater-se, também procura não ser mandada por outros"; e quanto ao receio de perda do auxílio americano, "penso que esse receio não tem razão de ser, porque a Europa é tão necessária à América como esta à subsistência da liberdade europeia". Mas "é sobre tão frágeis fundamentos que se anda a construir a federação da Europa". E essa federação é possível? No domínio lógico, é. Apenas há duas maneiras, no entanto, de a conseguir: por acto de força de um federador ou por lenta evolução que pode levar séculos. Não existe um federador: "se a Rússia puder, talvez ela o faça nos países danubianos sob a sua égide; se Hitler tem ganho a guerra, era possível que obrigasse a Europa a federar-se sob a hegemonia alemã; e pelos frutos e demoras da evolução não se quer esperar". E que pode resultar de uma federação? Resultam o abandono de terras, arrumação ou concentração de indústrias, deslocação de populações, desequilíbrios económicos, perdas de interesses e capitais: são sofrimentos sem conta, alterações profundas nas maneiras de viver e de pensar: "mas retoma-se a vida em novas bases, e no futuro, num futuro largo, pode até ser melhor para todos os que então existirem". Isto pode fazer-se pela força; não o podem fazer os políticos, ao menos de um dia para o outro, contra interesses inconciliáveis e os sentimentos das populações. Porque a verdade é que a Europa nasceu de um certo modo e tem um certo carácter; a sua diversidade, se é fraqueza, é também fonte da sua radiação universal; tem nações tão antigas que o seu nacionalismo se confunde com o instinto de propriedade; e é duvidoso que por combinações ou tratados se possa erigir o Estado Europeu. E, se se constituísse, esse Estado europeu seria por muito tempo destituído de coesão e força efectiva; "o momento óptimo para o ataque russo, se a Rússia pensasse em atacar o Ocidente, era exactamente o da constituição do Estado Federal Europeu". Essa federação, a fazer-se, far-se-ia sob a égide republicana: comportaria três grandes repúblicas (França, Alemanha, Itália) e três pequenas monarquias (Bélgica, Holanda, Luxemburgo): a força das primeiras, a dificuldade de escolha de uma dinastia comum, o desejo dos americanos, imporiam a solução republicana: e os três pequenos países teriam de se desfazer das suas instituições. Depois, há o problema colonial. Itália e Alemanha foram despojadas de tudo; os domínios ultramarinos serão integrados na federação, que herdará as colónias belgas e francesas; os que nada têm a perder são os que têm tudo a ganhar; mas a Bélgica e a França não pertencem a este grupo. Deste modo, uma federação europeia suscitará mais problemas do que resolve; constituiria por muito tempo uma construção política e economicamente frágil; por cima de sacrifícios e sofrimentos a impor às gerações actuais, a Federação poderá dispor de mais espaço, racionalizar a produção, conseguir com os territórios ultramarinos uma maior base económica para o conjunto. Acontece que, pela sua força e capacidade, será a Alemanha quem conduzirá a federação para todos os seus destinos. "Para isto, talvez não valesse a pena ter feito a guerra". E a Inglaterra? No território europeu, a Inglaterra funciona já como um estado federal; no mundo, é a cabeça de uma associação de Estados. Se a Inglaterra tomar na Europa o compromisso de um esforço total, será a perda da chefia da comunidade; e os vários Estados que compõem esta, privados daquele ponto de apoio, procurarão outros pólos de atracção. Parece desassisado que, em nome de uma unidade hipotética, se desfaça ou corra perigo de desaparecer uma outra unidade, já existente e de real valor.




Neste quadro, que posição convém a Portugal? Independentemente da aliança antiga, e considerando apenas o jogo das forças mundiais que emergem, importa a Portugal uma Inglaterra forte e independente: "quem nos dera que possa continuar a ser um factor de equilíbrio entre os Estados Unidos e uma federação europeia em que a Alemanha seja o elemento preponderante". No mais, e "se posso ser intérprete do sentimento do povo português, devo afirmar que é tão entranhado o seu amor à independência e aos territórios ultramarinos, como parte relevante e essencial da sua história, que a ideia da federação, com prejuízo de uma e de outros, lhe repugna absolutamente". Nos dissídios da Europa, raras vezes Portugal interveio; e sempre com dano de outros interesses mais altos. Se agora se compromete no Pacto do Atlântico, e para caso de ataque pelo imperialismo russo, "é que há a compreensão nítida de que esse imperialismo traz consigo os elementos destrutivos da nossa mesma razão de ser"; e por isso evitar aquele ataque "é condição necessária ao prosseguimento da nossa missão no mundo". Da Europa, interessam a Portugal a paz, o génio e espírito da civilização cristã e mais nada; e Angola e Moçambique interessam bem mais. Felizmente, são de tal relevo os Pirenéus que abrigam a Península de uma absorção ou decisiva influência; a Espanha, com as suas ligações à América Central e do Sul decerto vê mais futuro no conjunto hispano-americano do que numa federação europeia. Do debate em torno do problema, a Portugal somente interessa não ser embaraçado no seu caminho; e por isso se tem abstido de intervir em discussões públicas ou de pertencer a alguns organismos, como o Conselho da Europa e outros. Portugal sabe que não pode influir na evolução das ideias e dos acontecimentos; "mas não devemos esquivar-nos a dizer com inteira lealdade o que pensamos acerca de umas e dos outros"».

Franco Nogueira («Salazar. IV, O Ataque - 1945-1958»).

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