Amilcar Cabral
«No dia nove de Janeiro de 1976 podia ler-se no semanário "O Jornal" uma reportagem destinada a criar sensação no grande público. Três páginas compactas ajudavam a manter o complexo de culpa no povo português desencadeado pela estratégica do PCP. As grandes linhas mestras de todo o processo post-25 de Abril pareciam assentar na psicanálise. Não bastava culpar toda uma população pela guerra colonial: era necessário emocioná-la com pormenores chocantes para a alma cristã dos portugueses. Noticiar um desastre de comboio no qual morreram 50 pessoas, é uma coisa que impressiona, que torna as pessoas pensativas e, quiçá, revoltadas contra uns vagos técnicos responsáveis pela segurança dos caminhos-de-ferro. Mas se essa mesma notícia vier acompanhada de uma fotografia mostrando uma criança contorcida nos ferros quebrados, esmagada debaixo da sucata e a mãe chorando diante do espectáculo macabro, então as pessoas perdem a serenidade e o melhor que os técnicos responsáveis têm a fazer é não aparecer em público durante algum tempo.
Ronald Reagan e Sékou Touré
Da guerra colonial faltava o pormenor chocante, revoltante, que fazia transbordar a cólera dos portugueses: o assassinato de um líder respeitado. Foi assim que, naquele dia nove, o "Jornal" anunciava em grandes títulos: "Como Lisboa planeou a morte de Amílcar Cabral!..."
A reportagem abria da seguinte forma: "Completam-se, no dia 20 de Janeiro, três anos sobre a data em que Amílcar Cabral, o grande dirigente africano que fundou o PAIGC, morreu assassinado, no decurso de um golpe levado a cabo por alguns traidores desse partido, sob a direcção dos governantes fascistas portugueses".
Mais adiante o semanário transcreve do Livro Branco que o PAIGC preparou sobre o crime, a seguinte passagem: "No dia 20 de Janeiro do corrente (1973) os criminosos colonialistas portugueses conseguiram levar a cabo o mais crapuloso crime contra o nosso povo. O assassinato do nosso secretário-geral Amílcar Cabral é, sem dúvida alguma, o maior golpe que o inimigo desfechou desde a fundação do nosso partido.
Como se sabe, nesse dia, agentes inimigos, infiltrados de colaboração com certos elementos do nosso partido, corrompidos e frustrados nas suas ambições, perpetraram esse odioso crime que veio a juntar-se à enorme lista de barbaridades e massacres que o desacreditado exército colonial e fascista português pratica quotidiamente contra as nossas populações indefesas.
Com efeito, cerca das 22 e 30 desse dia, um grupo de traidores africanos devia pôr em execução o criminoso plano longamente preparado pelas autoridades de Lisboa para eliminação fisica do nosso secretário-geral e a destruição do nosso glorioso partido.
Cabral acabava de regressar de um jantar na Embaixada da Polónia. A maioria dos militantes, dirigentes e responsáveis presentes em Conacry encontrava-se na nossa escola-piloto de Ratoma, onde o camarada Chissano, membro da Comité Executivo da Frelimo, de passagem em Conacry, fazia uma conferência aos nossos quadros sobre o desenvolvimento da luta em Moçambique.
No secretariado, encontrava-se apenas o secretário-geral adjunto, camarada Aristides Pereira, em companhia de três camaradas, todos mobilizados pelos traidores, assim como os restantes guardas do secretariado.
Logo à chegada do secretário-geral, os traidores, encobertos pela noite, puderam assim dirigir-se, sem serem incomodados para o carro, em vias de estacionamento à porta da garagem. A bordo encontravam-se apenas Cabral e a sua esposa, ambos desarmados. Após uma tentativa infrutífera de rapto, o criminoso Inocêncio Kani disparou cobardemente um tiro de pistola que devia arrebatar à vida a esperança de todos aqueles que na África e no Mundo lutam contra a opressão colonial e para uma vida melhor de paz e de progresso.
Não satisfeito com o monstruoso acto que acabara de praticar, o renegado Kani ordenou aos seus cúmplices que concluíssem a obra destrutiva que ele próprio havia iniciado. Imediatamente, uma rajada de AK disparada por um dos guardas pôs termo à vida do nosso secretário-geral".
Estranhamente o Livro Branco não fala mais na mulher de Amílcar Cabral... Os assassinos não a mataram. Deixaram uma testemunha? Os executantes de operações deste género não costumam cometer erros tão elementares. Recordemos o assassinato do general Humberto Delgado: a sua secretária brasileira, Arajarir, foi igualmente morta para que, obviamente, não pudesse testemunhar. Porque teriam, então, poupado a mulher de Amílcar? Pela simples razão de que não foi assim que as coisas se passaram. A versão oficial do PAIGC e do governo da Guiné-Conacry não corresponde à realidade. Simplesmente não é verdadeira e, mais uma vez, o povo foi burlado pela estratégia do PCP em todo o processo revolucionário português.
Embora extremamente difícil de provar por forma irrefutável - como difícil se torna documentar a implicação dos comunistas na morte de Delgado -, a verdade é que não havia a mínima lógica para que as autoridades portuguesas desejassem, em 1973, o assassinato de Amílcar Cabral. E nas andanças de guerra os planeamentos à distância obedecem sempre a um critério lógico.
Para o governo de Sékou Touré essa eliminação era vital. E Sékou Touré mandou matá-lo. Tanto quanto foi possível apurar, Amílcar teria sido degolado e não morto a tiro. Mas vejamos as razões do interesse do ditador de Conacry.
Amílcar Cabral estava em contacto com o general Spínola para pôr fim à guerra de uma forma honrosa, e obter a independência de uma forma prudente. Sékou Touré soube disso e mandou matá-lo. Simplesmente isto.
Este livro revela documentos altamente secretos que provam os contactos havidos com Amílcar Cabral e o irmão Luís Cabral. Estes contactos eram realizados através de uma gente nossa colocada em Londres. Pelas datas dos telegramas aqui reproduzidos verifica-se que esses contactos se processaram cerca de dois meses antes da morte de Amílcar Cabral... Porque é que nós, portugueses, mandaríamos matar um homem com quem queríamos negociar e que nos havia respondido estar disposto a isso? Saberá por acaso o povo português que a mãe de Amílcar Cabral vivia tranquilamente em Bissau? E que o sonho de Sékou Touré era anexar pura e simplesmente a Guiné-Bissau?».
Alpoim Calvão («De Conacry ao MDLP»).
Sem comentários:
Enviar um comentário