quinta-feira, 15 de abril de 2021

Mais alguns pormenores da Guerra Colonial.

 

«O general Spínola tem duas fases na vida dele. Uma, em que se dedicou à Guiné, à parte militar, ao desenvolvimento social - foi a fase nobre da vida dele. Depois, deixou-se deslumbrar pela política, com influência de alguns deputados da ala liberal. Ele nunca me mostrou as cartas que tinha recebido. Depois disse-me que tinha recebido directivas, mas que continuava fiel ao presidente do Conselho. Mas o general Spínola, com todas as qualidades que tem, tem um defeito: é muito vaidoso. A certa altura, deixámo-nos de falar, e ele criou aquele mito da impossibilidade da defesa militar da Guiné, que o levou a ser substituído pelo general Bethencourt Rodrigues que, pelo contrário, dizia que a Guiné era susceptível de ser defendida desde que tivesse mais meios - e os meios ainda foram conseguidos no meu tempo. A última vez que fui à Guiné foi em 1972. Senti que o general Spínola estava diferente. Quando ele levantou o problema do colapso militar, eu estava na última fase como ministro do Ultramar. Mas mandou-se à Guiné o general Costa Gomes que, quando regressou, disse que a Guiné era perfeitamente defensável desde que se mudasse o dispositivo. Foi na altura em que se resolveu substituir o governador. Fui eu que fiz o convite ao Bethencourt Rodrigues para ir para a Guiné. Eu combinei com ele falar num sítio onde não houvesse muita gente, e fomos para São Julião da Barra. Mas estava cá uma esquadrilha inglesa de acrobacia aérea, e foi um inferno para lá chegar.

Cheguei a São Julião da Barra, ele estava lá e eu disse-lhe: "Trago-lhe uma boa notícia. Você vai para a Guiné. Nós precisamos de si na Guiné. Diga que sim". Ele aceitou. Foi à Guiné, fez um estudo da situação, veio cá e disse, confirmando o que o Costa Gomes tinha dito: "A Guiné é defensável, mas tem que se mudar o dispositivo. E têm que ser reforçados certos meios de defesa". Mas a partir de certa altura, quando começou a cair a vontade de luta do general Spínola, começou-se a dizer que a guerra subversiva não era susceptível de ser vencida. Não é verdade: os ingleses venceram a guerra subversiva no Quénia, na Malásia... Na guerra subversiva, a tendência é para se passar para a guerra convencional, porque a guerra subversiva provoca a desordem mas não consegue dominar o território. Eles passaram a vida a dizer que a guerra subversiva não era susceptível de ser vencida, e quando, na Guiné, passaram para a guerra convencional, começaram a dizer que a guerra convencional não era susceptível de ser vencida. Foi quando começaram a evocar a falta de material, argumento que nós anulámos porque conseguimos o material. O Bethencourt Rodrigues foi informado de que estava em preparação a remessa de material, para além de termos mandado muito material disponível, que fazia parte da defesa do continente. Disse-me que ia mudar o dispositivo e que aquilo seria perfeitamente dominável.

Havia muitos problemas administrativos que superavam os problemas militares. E militares que pediram que o novo ministro da Defesa fosse um civil. Quem pressionou mais a solução civil foi o próprio Costa Gomes. Eu, na altura, já estava no Governo há doze anos, só desejava sair e voltar à minha vida profissional. E só fui por causa da conjuntura e da situação em que estava o País, porque não ia abandonar num momento difícil. E fiquei, o que me valeu dois anos na cadeia, depois do 25 de Abril. Depois de tomar posse, cheguei à conclusão de que a situação era preocupante porque havia o problema do armamento - nós tínhamos dificuldade em conseguir o armamento que os militares diziam que precisavam. Havia um agravamento da situação em Moçambique, na zona de Vila Pery, que era necessário eliminar. Eu tinha que tirar razão aos militares quando eles diziam: "Não temos meios". E só o conseguiria criando os meios. Foi o que fiz: tentei suprir a falta de armamento para lhes tirar o argumento do "nós não nos podemos bater como deve ser porque não temos armamento". E o armamento conseguiu-se. Mas o que aconteceu foi que, quando apareceram os mísseis terra-ar Strela, na Guiné, aquilo criou um alarme excessivo. Também apareceram Strela em Angola e não houve aquela reacção. Nessa altura, dediquei-me ao problema do armamento e estabeleci ligações com o ministro da Defesa da África do Sul, Pieter Botha, que veio cá tão discretamente que ninguém deu por nada. Estivemos dois dias fechados no Forte de São Julião da Barra a discutir os problemas. Eu fui nomeado ministro da Defesa em 7 de Novembro de 1973 e isto passou-se logo a seguir. Discutimos o problema do armamento. A África do Sul tinha comprado duas baterias de mísseis terra-ar Crotale em França - eu consegui que eles desistissem de uma, e comprámo-la nós, directamente aos franceses. Pagámos a bateria aos franceses, os trinta por cento que estavam no contrato, e chegámos a mandar o pessoal para ser treinado. A bateria dos Crotale era para proteger o aeroporto de Bissau. Havia na Guiné aviões MIG, que eram da República da Guiné, mas podiam ser usados lá.


Conseguimos artilharia em Israel, porque uma das coisas de que se queixavam na Guiné, era que a artilharia deles tinha alcance superior ao da nossa. Conseguimos os Red Eye, mísseis terra-ar individuais, na Alemanha. Não sei quem os vendia, só sei que eles nos forneciam 500 Red Eye americanos. Aí, também houve influência do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas indirecta. Esteve no meu gabinete o general Étoile, que era quem superintendia nas vendas dos aviões Mirage, e que nos fez uma oferta de Mirage, pondo como única condição ficarem com base em Cabo Verde. Eu disse-lhe: "Não preciso dos Mirage em Cabo Verde, mas na Guiné". Ele respondeu: "O senhor sabe muito bem como é que isso se faz depois". Oficialmente os Mirage não podiam ter base na Guiné. Eu nem sei se, depois do 25 de Abril, o material veio ou não. Discuti também com Pieter Botha o fornecimento de excedentes, em vez de os venderem ou mandarem para a sucata, vendiam-nos a nós. Havia sido negociado um contrato de empréstimo até seis milhões de contos, mas em vez de ser em dinheiro era em material. Em compensação, nós vendíamos à África do Sul petróleo de Angola. Este contrato ficou assente, mas depois não teve seguimento. O reequipamento tinha uma verba à parte, que saía parcialmente daquele Fundo de Defesa do Ultramar. Eu deixei no Ministério cerca de oitocentos mil contos, os tais que ninguém sabe onde foram parar. Eu sei que na noite do 25 de Abril a primeira coisa que eles fizeram foi porem uma equipa de contabilistas no Ministério a verificar a minha contabilidade, onde não faltava meio tostão. Para gastos confidenciais, duzentos mil contos; para reequipamento, seiscentos mil contos.


[...] Em determinado momento, o almirante Crespo disse que o general Spínola estava a escrever um livro e que não havia muita vantagem em que o livro fosse publicado. Isto passou-se quando eu ainda estava no Ministério do Ultramar. Uma tarde, chegou um despacho do general Costa Gomes, dizendo que o livro do Spínola estava pronto para ser publicado. Eu disse: "Ele não pode publicar o livro sem eu o ter lido". Os militares no activo não podem publicar nada sem autorização superior. Mas Spínola recusou-se a dar-me o livro para ler, embora ele minta e diga que eu tinha conhecimento do livro, insinuando que tinha sido por intermédio da DGS. Mas a DGS também não sabia do livro. Fui ter com Marcello Caetano e disse-lhe: "O livro não pode ser publicado sem autorização, mas ele recusou-se a entregar-mo". Então, Marcello Caetano respondeu-me: "Para não estarmos a criar um problema, você encarrega o general Costa Gomes - que era o superior hierárquico do general Spínola - de ler o livro e de lhe dar um parecer". Então chamei o general Costa Gomes e ele deu-me um parecer favorável. Nessa altura, despachei nestes termos: "Embora não tenha conhecimento do livro, porque não me foi facultado para ler, confio no parecer do chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Publique-se».

Silva Cunha («África a arder», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).

1 comentário:

  1. Só alguns podem saber a razão do parecer favorável do Gen Costa Gomes em relação ao suposto livro do Spinola. Falar em democracia quando são as sociedades secretas que decidem tudo é um gozo completo!

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