terça-feira, 13 de outubro de 2020

O fim de um sonho, por António Quadros.

 


«Se a crise de 1974-78 é porventura a mais dramática de quantas, nos últimos dois ou três séculos, ameaçaram a continuidade da nação, não é apenas porque, crise após crise, se foi dando a erosão das energias e da capacidade de resposta do seu povo, nem é unicamente devido à terrível luta política de que o país foi palco nos últimos anos, é também porque temos de enfrentar, com poucas ou nenhumas armas, adversário bem mais letal do que qualquer inimigo exterior: o próprio português em crescente alienação de identidade, em acelerada dissolução de personalidade, em progressivo agravamento do seu velho complexo de inferioridade, em queda na desilusão e no vazio pela súbita ruptura com o que fora até aqui o elemento original e caracterizador da sua existência histórica, o projecto nacional da expansão ultramarina.

Os portugueses responsáveis teriam podido aceitar uma evolução desse projecto: federação, confederação, "commonwealth" dos povos de expansão lusa, qualquer proposta coerente que assegurasse a continuidade de uma presença em África em conciliação com a independência das novas nações e com os seus sentimentos nacionalistas.

Mas a expulsão, o êxodo, a auto-derrota, a humilhação, a assinatura de acordos desonrosos e o seu desrespeito por parte dos que se sentaram connosco de má fé à mesa das negociações, eis o que constituiu o impulso final para o agravamento de complexos que aliás não eram novos.

Para obviar ao sentimento de frustração e de descrença que se apoderou do país consciente depois desta descolonização viciada, não encontraram os responsáveis melhor solução do que rever a história de Portugal, apresentando-a à mocidade como um romance nefando, em que os heróis de antanho se transformaram em colonialistas e em vilões, em que monarcas esclarecidos, sábios, missionários e navegadores outra coisa não fizeram do que explorar e reprimir os infelizes povos do "terceiro mundo", em que todos eles afinal, foram títeres ou robots ao serviço do imperialismo económico e da ganância de uma aristocracia e de uma alta burguesia sem escrúpulos.

Esperavam deste modo que os portugueses acabassem por olhar a descolonização precipitada e manipulada que se fez, não como o descrédito irreparável que acabou por constituir para a nação inteira e para os revolucionários e políticos que a impuseram, mas como uma epopeia de generosidade e de heroísmo! Chegou a dizer-se, sem receio de cair no ridículo, que foi uma gesta mais honrosa do que a dos descobrimentos e houve quem, no delírio de uma patética auto-hipnose, tivesse comparado os versos de Agostinho Neto com os de Camões (Esta comparação foi estabelecida, através dos microfones da então Emissora Nacional, alguns meses depois do 25 de Abril, por alguém com nome e responsabilidades na nossa literatura contemporânea).

O que sucedeu posteriormente nas ex-províncias ultramarinas, desde a ditadura de Moçambique até à guerra civil de Angola e à invasão dos sul-africanos e dos cubanos, desde as vergonhas de Timor até à ocupação indonésia, e desde as prisões e humilhações de toda a ordem inflingidas aos portugueses que quiseram ficar, até ao seu êxodo, acabou por emudecer essas vozes desvairadas ou ditadas. Aliás, um acto político que aniquila irresponsavelmente o destino de algumas centenas de milhares de seres humanos, não pode representar a justiça, nem a liberdade, nem a honra.

O que se conseguiu com as campanhas de dinamização cultural, com as revisões e com as campanhas jornalísticas tendentes a apagar do passado português precisamente aquilo que constituiu a sua grandeza e a sua personalidade para justificar a irresponsabilidade de um momento de desvario, foi mais uma aceleração no processo masoquista e auto-destrutivo em que caímos...».

António Quadros («A Arte de Continuar Português»). 

Na foto, Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto, Brasil.     

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