terça-feira, 29 de setembro de 2020

O padrinho do Porreiro, pá!!!






«O que impressiona, em todos estes políticos no poder, é apresentarem uma imagem que nada tem a ver connosco, portugueses. Todos eles nos são – nos rostos, na linguagem, até no modo de falar, de vestir, de estar – todos eles nos são… como dizer?... completamente alheios, pouco portugueses. Há uma excepção. É Mário Soares. Com todas as suas limitações, com o pouco saber de que dá provas sucessivas, com as suspeitas que possam levantar-lhe (caso do empresário alemão Flick ao declarar “ter preferido resistir ao socialismo comprando homens como Soares e Gonzalez, o que dera resultado”), com os queixumes dos socialistas que o viram “meter o socialismo na gaveta” (o que não é verdade) e afirmar-se “um tanto liberal” para “governar à Tatcher”, com os seus onze anos de filiação no PC, com o estado a que reduziu “este País”, com as suas velhas ligações a assaltantes de bancos, com a sua confissão de agnosticismo (que suspeitamos ele não saber bem o que seja), com os seus amuos de menino gordo quando o tirassem do poleiro, com tudo isso, apesar de tudo isso, todos reconhecemos nele um homem que pode ser do nosso convívio, que cabe bem nos ambientes que frequentamos. Não nos surpreenderá encontrá-lo no “café”, sentado à nossa mesa, bebendo e cavaqueando connosco. Não nos passa pela cabeça que não tenha o nome na lista telefónica e que não atenda se lhe telefonarmos. Temos a sensação de acabarmos de nos cruzar com ele na rua, de ficarmos lado a lado na plateia de um teatro, de trocarmos uma piada, de nos rirmos juntos. E de haver em nós lembranças comuns dos velhos tempos da pacatez salazarista, noites gloriosas de fado com a Amália, espera no corredor dos camarins das actrizes (ele até casou com uma), as revoltas contra a Censura que acabavam por se desfazer em risotas (como há tempos lembrou em público o insuspeito Ernesto de Sousa), um certo golão de Eusébio… E as prisões na PIDE que dizem ele ter suportado sem falsos gestos heróicos, sem ranger de dentes, estendendo-se no catre e dormindo a sono solto… E os seus exílios em São Tomé e Paris, exílios dourados e passados em lugares paradisíacos, todos nós invejávamos até… Ora, a nenhuma destas sensações, a nenhuma destas lembranças, é possível associar figuras como a do sr. Freitas do Amaral, pomposo a fingir de modesto, circunspecto para fingir de sábio, distante para fingir de bem comportado, sempre vestido para ir fazer exame com o fato da primeira comunhão. Nem a do sr. Cavaco Silva, tecnocrata seco, aplicado e trabalhador, provinciano e fechado na sua vida na esperança de se assemelhar a Salazar. Nem a da eng.ª Pintasilgo, com a sua beatice de freira laica, o seu compungimento com o sofrimento dos pobrezinhos, o seu gozo de se rebolar num Rolls-Royce e frequentar palácios de Belém, o seu blá-blá marxista, o seu “petit-sourire” de holandesa rósea e gorda, as suas boquinhas beijoqueiras e contentes de que julga ser julgada mais inteligente do que as outras. Não, Mário Soares é outra loiça. Será possível que a política o tenha dessorado, mas a imagem é a de um dos nossos, gordalhudo, malandrete, bonacheirão, simpático, porreiro. Como se ainda ontem andasse connosco em farras pelintras. Agora, é ministro e deixou de aparecer. Achamos piada. Governou-se. Ainda bem. Nós continuamos sem cheta, ele governou-se. Ainda bem. Há-de haver sempre quem se governe. Antes ele do que outros. E suspeitamos que ele, lá no fundo, tem saudades de nós, prefere esta nossa vida pacata, morna, saborosa, sobressaltada pelo pequename, e acabará por voltar».

António Carlos Carvalho (in A Capital, 4 Nov. 1985)


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