terça-feira, 1 de setembro de 2020

Mais um episódio da vergonhosa descolonização!!!





18 de Maio de 1976, 2 horas da manhã.

Um mar de refugiados, milhares, dirigiam-se ordenadamente, pelas ruas de Lisboa, do Pavilhão dos Desportos, no Parque Eduardo VII, onde tinham assistido a um comício do CSI, para a estação do Cais do Sodré. Regressavam aos hotéis fixados para a sua residência, na linha do Estoril.


Ao chegarem à estação, os refugiados depararam com as entradas obstruídas por bancos. Ainda antes de penetrarem na gare, agentes da PSP foram ao seu encontro, falando-lhes rispidamente e agredindo os da frente, entre os quais algumas senhoras.

No conflito que se gerou, os agentes abriram fogo sobre a multidão. Ao mesmo tempo, forças de choque da PSP, "emboscadas" atrás dos comboios, carregaram sobre toda aquela gente, perseguindo grupos em fuga até ao largo da Assembleia da República. Ali estavam, há dias, outros refugiados, que protestavam contra as sub-condições de vida em que o Governo os mantinha.

A Insustentável Leveza do Ser: MEMÓRIAS 1974 - MÁRIO SOARES

Vejamos o relatório apresentado no dia seguinte e assinado por 87 testemunhas:



"Ao Exmo. Presidente do CSI


A IOR (Inter Organização de Refugiados) informa V. Exa. que esta madrugada, por cerca das 2.30 horas apareceram em S. Bento um grupo de 30 indivíduos, refugiados, fugidos à tristemente célebre polícia de choque, vindos do Cais do Sodré, vindo entre eles um indivíduo (refugiado) ferido a tiro numa mão e numa perna.

Minutos depois fez a sua apoteótica aparição a tristemente polícia de choque, munida de escudo e todo o aparato bélico, subindo as escadas, partindo os primeiros inimigos (bandeiras e dísticos) e enfrentando o "muito bem armado" inimigo (mulheres e crianças refugiadas que residem na escadaria de S. Bento, entre elas senhoras grávidas).

Depois de uma 'heróica' actuação esta polícia findou a sua batalha com ultimatos para abandonar S. Bento, dando-lhes escassos minutos, ao que o "exército" feminino e infantil de refugiados se recusaram a cumprir, dizendo "Ninguém arreda pé".

Esta célebre polícia, heroicamente, enfrentou a nossa Bandeira, a Bandeira Nacional, partindo a sua improvisada haste e espezinhando-A. Espezinharam o símbolo da nossa Pátria, o símbolo que nos norteia, o Bandeira Verde-Rubra, a Bandeira Nacional. Além de a espezinhar levaram-na consigo, talvez sob prisão, como refém".



IOR, em S. Bento, aos 19 de Maio de 1976


A Comissão


(87 assinaturas).



Dos incidentes resultaram bastantes feridos, parte deles identificados, como João Manuel Nunes dos Santos, de 22 anos, natural de Nova Lisboa, atingido numa das mãos e numa das pernas. Doutros não se sabe o nome, porque foram transportados em carros da Polícia para local desconhecido. Dezenas de testemunhas assinaram depoimentos.

BRAVOS "RETORNADOS", REFUGIADOS, DESLOCADOS, ESPOLIADOS...: Indemizações:  Estado deve milhões de euros aos portugueses que em 1975 foram obrigados a  regressar à Metrópole

O relatos da Imprensa foram, na maior parte, falseados pelas informações governamentais.

Os antecedentes:

O CSI vinha realizando comícios e conferências de Imprensa, no sentido de unir os refugiados e fazê-los lutar pelos seus direitos. Para o Governo, bem como para certos Partidos e personalidades, o CSI tornava-se incómodo.

Muitos dos refugiados presentes, naquela noite, no Pavilhão dos Desportos, residiam - como disse - na zona do Estoril e de Cascais. Não tendo dinheiro para o transporte, invocaram a sua "qualidade" de refugiados e a sua carência de bens, perante os revisores de um comboio da companhia nacionalizada "Estoril-Sol", insistindo em viajar, gratuitamente, para Lisboa.

O comboio parou na Estação da Parede, e os revisores contactaram a direcção da Companhia, pedindo instruções quanto à atitude que deveriam tomar. Três quartos de hora passados, o comboio seguiu, normalmente, até Lisboa, onde os refugiados desembarcaram e, como vulgares transeuntes, foram para o Pavilhão dos Desportos. Saliente-se, entretanto, que, se muitos refugiados viajaram gratuitamente, muitos outros tinham "passes" ou bilhetes.

Findo o comício, ao pretenderem voltar aos hotéis, deram-se os injustificáveis incidentes já descritos.

O CSI não apresentou queixa: investigações posteriores indicaram por detrás dos acontecimentos, pressões e chantagem sobre militares, exercidas por certas forças políticas, receosas dos Centros e dos refugiados. E os termos das notícias nos jornais e na Rádio reflectem, com límpida clareza, ter havido o objectivo de, a todo o custo, fomentar, na opinião pública, animosidade contra os refugiados, equiparando-os a delinquentes e arruaceiros, marginalizando-os e incitando a PSP a tratá-los como criminosos e inimigos da sociedade».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


Eu chegando cá a Portugal não foi nada agradável porque fomos confrontados com desdém, fomos chamados de retornados. Muitos não eram retornados como era o meu caso. Os meus pais, sim porque o eram, mas eu não. Eu era natural de Moçambique, não sou retornado. Quanto mais sou refugiado. Esse é o verdadeiro termo. Mas o desdém… foi assim que nos consideravam a todos retornados. Porque eu sou retornado, porque eu sou retornado… Vieram aqui agora tirar-nos o emprego, andaram lá a explorar os negros e agora vêm-nos estragar a nossa vida! Era tudo fantasia. Por falta do mínimo de educação, de civilidade, porque quando chegámos, encontrámos aqui uma diferença educacional muito grande. [Homem português, branco, nascido em Moçambique em 1953 e estabelecido em Portugal em 1975. Entrevista, Outubro de 2015].

1 comentário:

  1. Episódios dolorosos e que deveriam ser coligidos em livro(s) para que não se perca a memória.Importa resgatar para a História esses momentos.E algo mais deveria ser feito.Estive por breves instantes em Lisboa(1998) e pude sentir ainda este dilema dos chamados"retornados".Convivi brevemente com uma família de concidadãos moçambicanos ,um deles oriundo de Chibuto e proprietário de vastas plantações.Tragamos uma aguardente à maneira da terra.Foi bonito sentir este fluir.E redescobriamo-nos pela maneira de ser e cultura comum,Moçambique um aroma próprio .

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