quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Salazar e as ditaduras.

 


  «(...) Duas palavras, agora, sobre o problema político.

O Sr. Presidente do Ministério [General Domingos de Oliveira] declarou que iam ser preparadas, finalmente, a reforma da Constituição política e a organização nacional destinada a continuar e completar a restauração geral do País. A sua autoridade de chefe de Governo e de oficial general, com larga folha de serviços, marcou nitidamente uma posição, que está em correspondência com as superiores necessidades do Estado e com o pensamento – quero crê-lo – de todos aqueles que ligam à Ditadura a devida significação. Peço licença para apresentar sucintamente as razões da minha concordância com este modo de ver.

Pode afirmar-se que entre os homens que pensam nas coisas públicas em Portugal se encontram três posições diversas, relativamente a este problema. Condensá-las-ei nas três proposições seguintes:


       1.ª a Ditadura nada tem que ver com a política;

       2.ª a própria Ditadura é a solução do problema político;

       3.ª a Ditadura deve resolver o problema político português.


Examinemos, pela sua ordem, estas três atitudes.

É, sobretudo, fora dos elementos afectos à Ditadura e entre os seus inimigos que se defende a primeira tese – a Ditadura nada tem que ver com a política. Segundo estes, a Ditadura teria como única razão de ser a necessidade de uma obra administrativa, concluída a qual nada mais haveria a fazer do que restabelecer a ordem constitucional, suspensa ou violada desde 28 de Maio de 1926. Quem pensar um pouco nesta atitude mental descobre facilmente que ela se apoia sobre dois outros conceitos – um acerca da administração, outro acerca da natureza ou da origem dos males de que enfermava o País.

Na verdade, se a Ditadura só há-de fazer administração e não política, é que a administração se pode separar da política. Isto não corresponde à realidade dos factos.

É apenas verdade que se pode fazer administração fora de toda a política partidária, mas neste sentido estrito não se há-de dizer pode-se, há-de de dizer-se – deve-se. Quando, porém, se tem em mente a verdadeira, a alta acepção da palavra política, julgo impossível fazer-se, sem esta, administração que se imponha e valha. Fora do pequeno expediente, a execução a bem dizer material duma regra, pode afirmar-se que a verdadeira administração tem sempre atrás de si um conceito de Estado, finalidade social, de poder público e suas limitações, de justiça, de riqueza e das funções desta nas sociedades humanas, quer dizer, uma doutrina económico-política, se quereis mesmo, uma filosofia. Ai dos governos, melhor, ai dos povos cujos governos não podem definir os princípios superiores a que obedece a administração pública que fazem.

Mas não é este o único conceito erróneo que está na base dos que recomendam a ditadura simplesmente administrativa. O outro é julgar-se que todos os males nacionais provinham dos homens a quem estava confiado o ónus do governo, e que, afastados esses e substituídos por outros, estaria resolvido o problema. Reduz-se assim a uma defeituosa arrumação partidária uma das mais delicadas e complexas questões nacionais.

Sou dos que, tendo meditado longamente sobre os vários acidentes da vida pública portuguesa, lançam sobre os homens do passado responsabilidades, ainda que grandes, menores que as que vulgarmente se lhes assacam; e nunca pude compreender que sejam eles mesmos a preferir se atribua a incompetência, a desonestidade e a ambição o que mais fundadamente se deve supor derivado de vícios de organização ou de deficiências de fórmulas políticas.

Daqui deduzo que a ditadura que governa e que administra não é, nem pode ser, no campo dos princípios ou no das realidades nacionais, simples parêntese da vida política partidária.

Passemos adiante. A segunda proposição afirma que a Ditadura é de si mesma a solução do problema político. Parece-me que também aqui há erro ou exagero.

Sem dúvida que a ditadura, mesmo considerada apenas como a concentração no governo do poder de legislar, é uma fórmula política: mas não se pode afirmar que represente a solução duradoura do problema político; ela é essencialmente uma fórmula transitória.

Porque as ditaduras bastas vezes nascem do conflito entre a autoridade e os abusos da liberdade, e vulgarmente lançam mão de medidas repressivas da liberdade de reunião e da liberdade de imprensa, confundem muitos ditadura e opressão. Não é isto da essência da ditadura, e compreendida a liberdade (única noção para mim exacta) como a garantia plena do direito de cada um, a ditadura pode até, sem sofisma, suplantar sob esse aspecto muitos regimes denominados liberais. Ela é em todo o caso um poder quase sem fiscalização, e este facto faz dela instrumento delicado que facilmente se gasta e de que facilmente se pode abusar. Por tal motivo não é bom que a si mesma se proponha a eternidade.

Somos assim chegados à terceira proposição, única, a meu ver, verdadeira: a Ditadura deve resolver o problema político português.

Porque há-de fazê-lo? Porque a experiência demonstrou que as fórmulas políticas que temos empregado, plantas exóticas importadas aqui, não nos dão o governo que precisamos, lançaram-nos uns contra os outros em lutas estéreis, dividiram-nos em ódios, ao mesmo tempo que a Nação na sua melhor parte se mantivera, em face do Estado, indiferente, desgostosa e inerte.

Para que há-de fazê-lo? Para que a sua obra reformadora se não inutilize e se continue, para que o seu espírito de trabalho e de disciplina se consolide e se propague, para que se crie a mentalidade nova que é indispensável à regeneração dos nossos costumes políticos e administrativos, à ordem social e jurídica, à paz pública, à prosperidade da Nação.

Como há-de fazê-lo? Por meio duma obra educativa que modifique os defeitos principais da nossa formação, substitua a organização à desorganização actual e integre a Nação, toda a Nação, no Estado, por meio de novo estatuto constitucional.

Pode fazê-lo? Se todos os portugueses de boa vontade, a quem nos dirigimos, quiserem ajudar-nos, isso pode fazer-se. Quero exprimir-me melhor: isso tem de fazer-se, porque é impossível admitir que este País arraste uma existência miserável entre os dois únicos governos – demagogia e ditadura mais ou menos parlamentar – e em face dos quais a Nação só costuma ter duas atitudes: ou de rojo ou de costas, ambas indignas de si.

Não nos ocultemos que é árdua a tarefa e que vai para o futuro ser mais dura ainda a batalha. Mas quem alguma vez venceu sem que lutasse?»

Oliveira Salazar («Ditadura Administrativa e Revolução Política», in «Discursos, 1928-1934», na Sala do Risco, em 28 de Maio de 1930, onde oficiais do Exército e da Armada se reuniram com o Governo para comemorar o 4.º aniversário da Ditadura Nacional).

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A Abrilada de 1961, Tentativa de Golpe de Estado.


 "O 13 DE ABRIL DE 1961" 



No primeiro semestre de 1960, as relações entre o Ministro da Defesa Nacional, General Botelho Moniz, e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, Coronel Kaúlza de Arriaga, não cessaram de se agravar.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica sentia-se bloqueado e curto-circuitado. Bloqueado pela enorme demora com que o Departamento da Defesa Nacional considerava os assuntos relativos à Força Aérea e pelas muitas dificuldades que o mesmo Departamento punha na solução de tais assuntos. Curto-circuitado pelas directivas que, partindo do Ministro da Defesa Nacional, lhe não eram transmitidas, mas dadas pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, General Beleza Ferraz, ao Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, General Albuquerque de Freitas.

Em Julho de 1960, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica voltou a manifestar pessoalmente ao Presidente do Conselho de Ministros, Prof. Dr. Oliveira Salazar, a suas preocupações sobre a defesa da África Portuguesa.

Em 3 de Agosto, enviou ao Presidente um "memorandum", no qual sintetizava aquelas preocupações e solicitava a convocação do Conselho Superior de Defesa Nacional para análise do assunto e definição de responsabilidades.

Pouco depois, teve efectivamente lugar a reunião daquele Conselho. Nele, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica desenvolveu o constante do referido "memorandum". O Ministro do Exército, Coronel Almeida Fernandes, e o Subsecretário de Estado do Exército, Coronel Costa Gomes, discordaram do exposto e preconizado pelo Subsecretário de Estado da Aeronáutica. O Ministro da Defesa Nacional discordou também e, decorridos alguns dias, enviou à Subsecretaria de Estado da Aeronáutica um documento, no qual confirmava a orientação até então seguida e repudiava as ideias novas do Subsecretário de Estado da Aeronáutica. O Presidente do Conselho de Ministros não se manifestou.

No último trimestre de 1960, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica e o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea decidiram enviar para Angola as primeiras forças aéreas. O Departamento da Defesa Nacional não se opôs e a decisão foi executada.

No final de 1960 e começo de 1961, tiveram lugar os acontecimentos da baixa de Cassanje, em Angola, e logo foi assaltado o paquete Santa Maria.

As forças militares que actuavam na baixa do Cassanje adquiriram a convicção de que a causa fundamental dos acontecimentos era a exploração dos trabalhadores pretos levada a efeito pelas empresas algodoeiras. E verificava-se tendência para se generalizar nas Forças Armadas o conceito errado de que, em África, defendiam não o País mas sobretudo os interesses de alguns capitalistas.

Dado existir realmente, na referida região de Cassanje, injustiça social e dado o perigo daquela tendência, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica focou o assunto no Conselho Superior Militar e pô-lo directamente ao Presidente do Conselho de Ministros. Este, surpreendido, prometeu formalmente que seriam alteradas as condições de trabalho na região em causa, por forma a passar a vigorar um sistema socialmente justo.

Em Fevereiro de 1961, teve lugar o assalto a um posto da Polícia de Luanda.

Em 25 de Fevereiro, os Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, Generais Beleza Ferraz e Câmara Pina, partiram para Angola.

Em 15 de Março do mesmo ano, eclodiu a rebelião terrorista no distrito do Congo. Algumas, pouquíssimas, forças militares brancas existentes - ninguém no momento julgou conveniente o emprego de tropas negras - ajudadas pela população civil branca, tiveram de limitar-se à defesa dos principais centros populacionais, abandonando todo o resto do Congo aos terroristas.

Da Metrópole foram enviados alguns, muito reduzidos, reforços e o Ministério do Exército preparou um plano de envio de mais tropas. Este, dado os seus dilatados prazos, não podia considerar-se adequado.

A gravidade da situação aumentava.

Em 21 de Março, o Ministro do Ultramar, Almirante Lopes Alves, partiu também para Angola.

Pouco depois do regresso de Angola - 27 de Março - dos Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica foi convocado, pelos procedimentos usuais, para uma reunião do Conselho Superior Militar.

Igual convocação recebeu o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.

Quando, porém, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica chegou ao Departamento da Defesa Nacional, o Ministro da Defesa Nacional disse-lhe que devia haver qualquer mal entendido, pois que não era o Conselho Superior Militar mas sim o Conselho Superior do Exército que se reunia, para ouvir exposições dos Chefes do Estado-Maior General e do Estado-Maior do Exército, recém-chegados de África, sobre a situação em Angola.

O Subsecretário manifestou a sua surpresa, mas declarou que, sendo assim, se retirava juntamente com o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea. O Ministro respondeu que este, sim, estava convocado para assistir à reunião como observador, tal como sucedia com o Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Sousa Uva.

No dia seguinte, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea informou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica de que, no final da reunião, tinham sido distribuídas, a todos ou quase todos os presentes, cópias de uma carta, datada de Março de 1961 e dirigida ao Presidente do Conselho de Ministros pelo Ministro da Defesa Nacional, na qual se faziam duras censuras à acção do Governo.

Os Chefes do Estado-Maior General e do Estado-Maior do Exército, em face do que observaram em Angola, consideravam, teimosamente, estar a situação militar praticamente resolvida, havendo apenas que realizar acções de limpeza e de policiamento.

Pelo contrário, o Comandante da 2.ª Região Aérea, Brigadeiro Pinto Resende, vinha enviando à Subsecretaria de Estado da Aeronáutica mensagens nas quais informava que a situação em Angola se agravava constantemente e que, em pouco tempo, atingiria o ponto de irreversibilidade. Enunciou mesmo o mínimo de meios necessários para que tal fosse evitado. Cópias de todas estas mensagens foram enviadas ao Departamento de Defesa Nacional. Também delas foi dado conhecimento ao Presidente do Conselho de Ministros. No Departamento da Defesa Nacional, chegou a pensar-se em tentar forçar o Subsecretário de Estado da Aeronáutica a exonerar o Brigadeiro Pinto Resende do Comando da 2.ª Região Aérea, dado considerar-se, naquele Departamento, que o Brigadeiro era excessivamente pessimista e tratava de assuntos que lhe não diziam respeito.

O Ministro do Ultramar, ainda em Angola, verificou a gravidade da situação, em tudo concordando com o Comandante da 2.ª Região Aérea. Enviou para Lisboa telegramas alarmantes. Em face das informações do Comandante da 2.ª Região Aérea e do Ministro do Ultramar, o Presidente do Conselho de Ministros promoveu uma reunião, para a qual foram convocados, na ausência dos Ministros da Defesa Nacional, descansando no Algarve, e do Ultramar, os Subsecretários de Estado da Administração Ultramarina, Prof. Adriano Moreira, e do Exército, e os Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército. Nesta reunião, o Presidente do Conselho de Ministros deparou com a opinião obstinada, dos Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, de que a situação militar estava resolvida e de que apenas deveriam continuar a ter lugar operações de limpeza e de policiamento.

O Chefe do Estado-Maior da Força Aérea partiu para os Estados Unidos da América em visita oficial.

No aeroporto da Portela e quando o Subsecretário de Estado da Aeronáutica dele se despedia, tomou a iniciativa de aludir às divergências existentes entre o Ministro da Defesa Nacional e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo dito a este último: "V. Ex.ª é que tem razão, estou inteiramente a seu lado".

Constava que o Ministro da Defesa Nacional advogava a ideia de que, a fim de se captarem as boas graças dos Estados Unidos da América, o Governo deveria fazer uma declaração, prometendo a autodeterminação a prazo das Províncias Ultramarinas.

Constava, também, que o Ministro havia nesse sentido contactado as Autoridades Americanas, através da CIA.

Sabia que o Presidente do Conselho de Ministros tinha em preparação uma remodelação ministerial. Contudo, essa remodelação demorava, o que provocava um crescente mal-estar.






Dia 10 de Abril


No dia 10 de Abril de 1961, após o jantar, diversos militares, entre os quais o Brigadeiro Santos Costa, telefonaram ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, informando-o de que o Governador Militar de Lisboa, General Silva Domingues, tinha convocado os comandantes das unidades suas subordinadas e lhes tinha posto a hipótese do Prof. Oliveira Salazar ser exonerado compulsivamente das funções de Presidente de Conselho de Ministros, dado, sobretudo, a sua incapacidade para resolução do problema da África Portuguesa.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica telefonou ao Ministro do Exército, comunicando-lhe o que efectivamente se passava. Este Ministro, recém-chegado de Fátima, respondeu nada saber, mas prometeu pôr-se em contacto com o Governador de Lisboa. Cerca de uma hora depois, o Ministro do Exército telefonou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dizendo-lhe que havia falado com o Governador Militar de Lisboa e que este o informara de que realmente tinha convocado os comandantes das unidades suas subordinadas, embora em pequenos grupos, mas que apenas lhes tinha recomendado a maior coesão, dada a situação difícil que o País atravessava. O Ministro acentuou que assim o Governador Militar de Lisboa tinha agido dentro da sua competência e por forma acertada.

Pouco depois, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica voltou a receber telefonemas pelos quais era informado mais pormenorizada e alarmantemente do que se havia passado no Governo Militar de Lisboa, confirmando-se que tinha sido considerada a hipótese de se forçar a demissão do Prof. Oliveira Salazar.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica tentou telefonar novamente ao Ministro do Exército, mas este revelou-se incontactável.

Durante a noite, voltou a confirmar-se que as reuniões do Governo Militar de Lisboa não tinham sido tão inofensivas quanto o Ministro dissera ao Subsecretário.


Dia 11 de Abril


Na manhã do dia 11 de Abril de 1961, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica dirigiu-se ao Ministério do Exército, tendo-se reunido com o Ministro.

Teve lugar a seguinte conversa:

a. O Subsecretário de Estado da Aeronáutica disse ao Ministro do Exército que, apesar do que este lhe havia afirmado, sabia ter o Governador Militar de Lisboa tido, com os seus comandantes de unidade, conversações de carácter subversivo ou, pelo menos, para-subversivo.

O Ministro respondeu nada mais saber do que dissera na véspera, mas que voltaria a falar com o Governador Militar de Lisboa, que mandou convocar.

b. O Subsecretário insistiu com o Ministro no sentido de saber se alguma coisa mais existia além das conversações no Governo Militar de Lisboa, pois não acreditava que o Governador tivesse agido por sua exclusiva iniciativa.

O Ministro acabou por dizer que realmente o Ministro da Defesa Nacional se encontrava ora muito deprimido ora sobre-excitado e que ele, Ministro do Exército era uma das poucas pessoas capazes de o acalmar.

O Subsecretário perguntou ao que poderia conduzir tal excitação.

O Ministro respondeu que esperava que nada sucedesse, mas que o estado de espírito do Ministro da Defesa Nacional poderia conduzi-lo a tentar um golpe de força contra o Presidente do Conselho de Ministros.

e. O Subsecretário disse que não imaginara que tal possibilidade pudesse ter lugar, mas que, em face dela, se via obrigado a pôr mais algumas questões:

- No caso do Ministro da Defesa Nacional tentar o referido golpe de força, qual a atitude do Ministro do Exército?

O Ministro respondeu que, embora lhe custasse muito, pois tinha o maior respeito e amizade pelo Ministro da Defesa Nacional, não o poderia acompanhar.

- No caso do Ministro da Defesa Nacional tentar o golpe de força e, como muito bem, o Ministro do Exército não o acompanhava, qual a atitude do Exército?

O Ministro respondeu que esperava que o Exército lhe obedecesse mas que não podia assegurá-lo.

- Sendo assim, poderia admitir-se a eclosão de uma guerra civil, seguindo algumas unidades o Ministro da Defesa Nacional e outras o Ministro do Exército?

O Ministro respondeu que assim realmente poderia suceder.

d. O Subsecretário perguntou se o Ministro do Exército estava consciente das suas enormes responsabilidades. Se estava ciente que a mais pequena escaramuça em Lisboa teria em Angola projecção catastrófica, provocando uma diminuição drástica no moral dos poucos defensores e um grande impulso no terrorismo, factos que, quase certamente, conduziriam à perda daquela Província.

O Ministro respondeu que estava plenamente consciente das suas responsabilidades.

Chegou o Governador Militar de Lisboa e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica retirou-se antes deste entrar no gabinete do Ministro.

Durante toda a tarde de 11 de Abril, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica tentou comunicar telefonicamente com o Ministro do Exército, afim de conhecer o resultado da conversa havida com o Governador Militar de Lisboa.

O Ministro do Exército manteve-se, porém, de novo totalmente incomunicável.

No mesmo dia:

a. Após o almoço, o Prof. Costa Leite (Lumbralles) visitou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica em casa deste, tendo ambos analisado a situação.

b. Durante a tarde, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica recebeu a informação de que o Exército estava de prevenção ou vigilância e de que o ajudante de campo do Subsecretário de Estado do Exército tinha ido à Academia Militar onde tivera, com alguns oficiais, conversações análogas às havidas no Governo Militar de Lisboa.

c. Antes do jantar, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República, General Humberto Pais, visitou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica em casa deste, tendo ambos analisado a situação e sido considerado, pelo Subsecretário, a hipótese de, tal como o Exército, a Força Aérea entrar de prevenção ou vigilância.

d. Mais tarde, o Chefe de Estado, Almirante Thomaz, recebeu um pedido de audiência dos Ministros da Defesa Nacional e do Exército, a ter lugar após um desafio internacional de futebol militar, que se realizava no começo da noite. O Presidente da República marcou audiência para o dia seguinte, às 16 horas. Os dois Ministros insistiram, porém, de tal forma, que o Presidente acabou por aceder recebê-los por volta da meia-noite.

e. Após o jantar, o Presidente da República recebeu o Presidente do Conselho de Ministros em sua casa.

f. Pouco depois, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República telefonou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dizendo-lhe, em nome do Chefe do Estado, que talvez fosse conveniente tomarem-se, na Força Aérea, algumas medidas de segurança.

g. O Subsecretário de Estado da Aeronáutica convocou, para sua casa, o General Mira Delgado, que substituía o General Albuquerque de Freitas, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, ainda em missão oficial no estrangeiro, e os Generais da Força Aérea Francisco Chagas e Machado de Barros, expôs-lhes a situação e mandou que a Força Aérea entrasse de prevenção. A ordem foi prontamente executada.

h. O Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, que entretanto chegou a casa do Subsecretário de Estado da Aeronáutica, apoiou fortemente as medidas de segurança tomadas.

Pouco depois da meia-noite, o Presidente da República recebeu os Ministros da Defesa Nacional e do Exército.

Seguidamente, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República informou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica do teor da conversa havida.

Em síntese:

a. O Ministro da Defesa Nacional advogou, durante cerca de 10 minutos, a necessidade, que dizia imposta pelo interesse nacional, particularmente no respeitante ao problema ultramarino, da exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros, e o Ministro do Exército glosou, durante mais de uma hora, as palavras do Ministro da Defesa Nacional.

b. O Presidente da República respondeu que, como era seu dever, ouvia sempre as opiniões dos portugueses responsáveis; que, desde logo, lhe não parecia ser solução adequada para os problemas nacionais a exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros; mas que iria pensar e que, oportunamente, daria a sua resposta definitiva.

c. Nesta conversa entre o Presidente da República e os Ministros da Defesa Nacional e do Exército, ocorreu ainda o seguinte:

- O Ministro da Defesa Nacional afirmou que, no relativo à exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros, tinha o apoio da grande maioria das Unidades do Exército.

- O Presidente da República respondeu que as suas informações eram diferentes e que, segundo elas, o número de Unidades referido era mínimo.

- O Ministro da Defesa Nacional perguntou onde tinha obtido o Presidente da República tais informações.

- O Presidente da República respondeu que se não sentia na obrigação de referir as fontes das suas informações até porque o Ministro da Defesa Nacional também o não fazia, mas poderia adiantar que uma de tais fontes era o Ministro do Exército, ali presente.

- Daqui resultou a discussão agreste entre o Ministro da Defesa Nacional e o Ministro do Exército, tendo o primeiro acusado este último de fornecer informações diferentes ao Presidente da República e a ele próprio.




Dia 12 de Abril


No dia 12 de Abril de 1961 e em consequência de convite anteriormente formulado, o Presidente da República almoçou com o Ministro e oficiais do Exército na Manutenção Militar.

O Ministro brindou com simpatia pelo Chefe do Estado.

Após o almoço, os Ministros da Defesa Nacional e do Exército receberam uma carta, em que o Presidente da República repudiava, por prejudicial ao interesse nacional, a exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros.

A meio da tarde, o Ministro da Defesa Nacional, por intermédio de um dos seus ajudantes de campo, convocou para o seu gabinete o Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Este, imprevidentemente, compareceu no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional, onde também estava o Ministro do Exército.

Teve lugar a seguinte conversa, entre o Ministro da Defesa Nacional e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo-se o Ministro do Exército mantido rigorosamente calado:

a. O Ministro perguntou ao Subsecretário se era verdade estar a Força Aérea de prevenção.

O Subsecretário respondeu afirmativamente.

b. O Ministro perguntou quem dera a ordem de prevenção.

O Subsecretário respondeu ter sido ele próprio, Subsecretário.

O Ministro disse que só ele, Ministro, tinha autoridade para o fazer e que, em consequência, o Subsecretário tinha exorbitado.

O Subsecretário respondeu considerar-se com autoridade para tomar na Força Aérea as medidas de segurança que entendesse, o que de resto tinha sucedido já diversas vezes.

O Ministro repetiu que só ele, Ministro, tinha tal autoridade.

O Subsecretário manteve a sua posição.

c. O Ministro perguntou por que estavam forças pára-quedistas em Lisboa.

O Subsecretário respondeu que a prevenção na Força Aérea abrangia o deslocamento de forças pára-quedistas para as suas unidades de Lisboa.

d. O Ministro perguntou por que tinha o Subsecretário mandado entrar a Força Aérea de prevenção.

O Subsecretário respondeu, que estando o Exército de prevenção ou vigilância, considerava que a Força Aérea devia estar em situação semelhante.

e. O Ministro perguntou quem informara o Subsecretário de que o Exército estava de prevenção ou vigilância.

O Subsecretário respondeu que tal era do conhecimento comum.

O Ministro insistiu, repetindo a pergunta.

O Subsecretário respondeu que sabia ser isso verdade.

O Ministro voltou a insistir.

O Subsecretário deu a mesma resposta.

f. O Ministro pediu ao Subsecretário para sair e, estando este já de pé, descontrolou-se, tendo havido dura troca de palavras.

g. O Ministro disse ainda, em voz bastante alta, que ia pedir uma audiência imediata ao Presidente da República.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica deixou o gabinete do Ministro da Defesa Nacional e seguiu para a Presidência da República, onde relatou ao Chefe do Estado o que acabava de passar-se.

Pouco depois, chegou o pedido telefónico de audiência imediata a conceder pelo Chefe de Estado ao Ministro da Defesa Nacional. O Presidente recusou-se a conceber tal audiência.

A sensação, de que um golpe de força contra o Presidente do Conselho de Ministros, com as suas gravíssimas consequências em Angola, chefiado pelo Ministro da Defesa Nacional, mas tendo como principal promotor o Subsecretário do Exército, estava iminente, tornava-se cada vez mais nítida.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica pôs-se em contacto com o Ministro do Interior, Coronel Arnaldo Schulz, que, apesar de solicitado pelo Ministro do Exército, se mostrou firmemente ao lado do Prof. Oliveira Salazar e da sua política ultramarina. As forças de segurança mantinham a sua fidelidade.

Diligências feitas, nas unidades do Governo Militar de Lisboa, mostraram ser limitado o apoio ao Ministro da Defesa Nacional.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica manteve frequente contacto com o Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, Adriano Moreira, que sempre o apoiou e se manteve decididamente ao lado do Prof. Oliveira Salazar e da sua política ultramarina.

O Embaixador de Portugal em Madrid, General da Força Aérea Venâncio Deslandes, que entretanto se deslocara a Lisboa, procurou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo-lhe expresso o seu apoio e mostrado estar, também decididamente, ao lado do Prof. Oliveira Salazar e da mesma política ultramarina.

Em conversa havida em casa do Subsecretário de Estado da Aeronáutica, entre este, o Prof. Costa Leite (Lumbralles) e o Secretário de Estado do Comércio, Dr. Corrêa de Oliveira, admitiu-se a hipótese de, na remodelação ministerial em preparação, o Prof. Oliveira Salazar substituir o General Botelho Moniz no cargo de Ministro da Defesa Nacional. Mas a este respeito o Subsecretário de Estado da Aeronáutica manteve-se reservado.

Após o jantar, o Prof. Costa Leite telefonou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, pedindo-lhe a sua opinião sobre a designação do Brigadeiro Mário Silva, Tenente-Coronel Jaime da Fonseca e General Gomes de Araújo para o desempenho, respectivamente, dos cargos de Ministro do Exército, Subsecretário de Estado do Exército e do Estado-Maior General das Forças Armadas.

O Subsecretário respondeu nada poder dizer sobre as pessoas do Brigadeiro Mário Silva e do Tenente-Coronel Jaime da Fonseca, dado não as conhecer suficientemente, mas que, no que respeitava ao General Gomes de Araújo, considerava não poder encontrar-se melhor solução.

Nessa mesma noite, o Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha de Mendonça, recém-chegado do estrangeiro, foi recebido pelo Presidente do Conselho de Ministros que o pôs ao corrente da situação que se vivia.

O Ministro da Marinha seguidamente foi buscar o Chefe do Estado-Maior da Armada a casa e ordenou que a Armada entrasse de prevenção.

Cerca da meia-noite, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica foi informado de que o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que só deveria regressar dos Estados Unidos da América dentro de uma semana, chegava a Lisboa na madrugada seguinte, 13 de Abril.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica pediu ao General Mira Delgado que o fosse esperar e lhe dissesse que tinha urgência em lhe falar.

O General Albuquerque de Freitas, que chegou ao aeroporto de Lisboa por volta das 7 horas da manhã, foi desagradável para os Generais Mira Delgado e Francisco Chagas que o esperavam, e, em lugar de se apresentar ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dirigiu-se para a residência do Ministro da Defesa Nacional, acompanhado de um ajudante de campo deste que também o esperava.

O General Albuquerque de Freitas só às 10 horas se apresentou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Interrogado por este sobre a sua atitude, o General Albuquerque de Freitas disse o seguinte:

a. Tinha sido mandado regressar a Lisboa por telegrama do Ministro da Defesa Nacional.

b. Acabava de estar com este Ministro.

c. Às 17 horas, teria lugar uma reunião no Departamento da Defesa Nacional ou em casa do respectivo Ministro, à qual compareceriam, além deste e do Ministro e Subsecretário de Estado do Exército, os Chefes dos Estados-Maiores dos três ramos das Forças Armadas e alguns outros chefes militares.

d. Nesta reunião, se ponderaria se o Prof. Oliveira Salazar deveria ou não ser demitido e, no caso de unanimemente se decidir pela demissão, seria esta imposta ao Presidente da República que a aceitaria ou seria, também, afastado do seu cargo.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica chamou ao seu gabinete, instalado no Aeródromo-Base n.º 1, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República e o Dr. Sollari Allegro, tendo-lhes exposto a situação e pedido que transmitissem urgentemente aos Presidentes da República e do Conselho de Ministros que se tornava imperioso que, no começo da tarde:

a. Fossem exonerados os General Botelho Moniz, Coronéis Almeida Fernandes e Costa Gomes e General Beleza Ferraz dos cargos de Ministro da Defesa Nacional e do Exército, Subsecretário de Estado do Exército e Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.

b. Fossem designados para os mesmos cargos outras entidades.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica disse, ainda, que, caso tal não tivesse lugar, havia a maior probabilidade de, após as 17 horas, estarem presos os Presidentes da República e do Conselho de Ministros ou se estar em guerra civil.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica chamou, igualmente, ao seu gabinete o General Gomes de Araújo, tendo-lhe do mesmo modo exposto a situação e pedido para, logo que designado Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, intervir junto dos chefes militares do Exército no sentido de evitar que estes comparecessem na reunião das 17 horas com o General Botelho Moniz que, então, já não deveria ser Ministro da Defesa Nacional.

Pouco depois das 15 horas, a Emissora Nacional anunciou a exoneração dos General Botelho Moniz, Coronéis Almeida Fernandes e Costa Gomes e General Beleza Ferraz dos seus cargos e a nomeação para os mesmos cargos dos Prof. Oliveira Salazar, Brigadeiro Mário Silva, Tenente-Coronel Jaime da Fonseca e General Gomes de Araújo.

O General Gomes de Araújo logo actuou junto dos chefes militares do Exército, tendo, em consequência, a maioria destes desistido de comparecer na reunião das 17 horas.

O Ministro da Marinha proibiu os chefes militares da Armada de comparecerem na mesma reunião.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica disse ao General Albuquerque de Freitas, único chefe militar da Força Aérea, nesta em serviço, que se prestava a participar na reunião em causa, que lhe permitia a sua comparência na reunião, mas que desta nada poderia resultar, dado já não terem qualquer autoridade as pessoas que a ela presidiam. O General Albuquerque de Freitas mostrou-se muito surpreendido com a remodelação ministerial verificada.

A reunião das 17 horas realizou-se, não tendo a ela comparecido a maioria dos chefes militares do Exército, nenhum chefe militar da Armada e, evidentemente, nenhum chefe militar da Força Aérea, com excepção do General Albuquerque de Freitas. Compareceu, porém, o Marechal Craveiro Lopes.

O General Albuquerque de Freitas, imediatamente após o termo da reunião, entregou directamente no gabinete no novo Ministro da Defesa Nacional um requerimento em que pedia a passagem à situação de reserva.

Em seguida, procurou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo-o informado daquele requerimento e relatado o seguinte:

a. Na reunião das 17 horas, o General Botelho Moniz esperava pelos chefes militares convocados, quando o General Albuquerque de Freitas chegou.

b. Este disse que tinha a informação de que os principais chefes do Exército e todos os da Armada não compareceriam à reunião e pediu ao General Botelho Moniz para se certificar do facto.

c. Um dos ajudantes de campo do General Botelho Moniz confirmou telefonicamente que assim sucedia.

d. Então, o General Albuquerque de Freitas declarou que nenhuma decisão relativa a uma acção de força poderia ser tomada, dado não existir unanimidade nos chefes militares.

e. Após terem falado várias outras pessoas, a opinião do General Albuquerque de Freitas prevaleceu, tendo a reunião terminado.






Estava abortado o golpe de força


O Presidente do Conselho de Ministros e novo Ministro da Defesa Nacional telefonou, pouco depois das 18 horas, ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dizendo-lhe que tinha em seu poder um requerimento de passagem à situação de reserva do General Albuquerque de Freitas e que sobre o assunto gostava de pessoalmente trocar impressões.

O Subsecretário aproveitou o telefonema para lembrar a conveniência do Presidente fazer, ainda nessa tarde ou noite, uma declaração ao País relativa aos acontecimentos verificados.

O Presidente mostrou dúvidas sobre tal conveniência pois considerava que apenas se tinha processado uma substituição de rotina de alguns membros do Governo.

Às 19 horas, o Presidente do Conselho de Ministros recebeu o Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Foi analisado o caso do General Albuquerque de Freitas, tendo-se concluído do acerto de deferir o seu requerimento de passagem à situação de reserva.

Relativamente aos acontecimentos que tiveram lugar, o Presidente apenas considerou que o Subsecretário tinha aspecto de cansado. Este disse que tinha dormido pouco nas noites anteriores, ao que Salazar respondeu: É natural, os senhores andam para aí a conspirar.

Momentos depois, o Presidente, que acabara por reconhecer a necessidade da declaração referida, dirigiu ao País uma curta mas expressiva mensagem.

Durante toda a crise, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica não teve com o Presidente do Conselho de Ministros contacto algum.

Terminada a crise, mas em relação a ela, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica apenas teve com o Presidente do Conselho de Ministros o contacto telefónico e o contacto pessoal atrás citados.

Após ter ouvido a mensagem do Presidente do Conselho de Ministros, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica regressou a sua casa, onde encontrou o recém-nomeado Ministro do Ultramar, Prof. Adriano Moreira, eufórico perante o facto de ter sido abortada a acção de força que tinha estado iminente.

E, logo em seguida, o novo Ministro afirmou... mas meu caro Kaúlza, a sua carreira política vai terminar. O Prof. Oliveira Salazar não lhe poderá perdoar o serviço grande de mais que acaba de lhe prestar.

(in «Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos», Edições Referendo, 1987, pp. 199-215).

domingo, 16 de novembro de 2025

Salazar e a independência dos povos africanos.

 



(...) Naturalmente que a história registará Salazar como um dos maiores estadistas de Portugal... E hoje, à beira do novo século, olha-se para aquele trágico continente africano, não só para as ex-colónias portuguesas, através das notícias e das imagens que nos chegam todos os dias e cada vez mais dramáticas, levando-nos a pensar em quanta razão tinha Salazar ao afirmar numa entrevista publicada no jornal mexicano "Excelsior" em 9 de Abril de 1960:

Todos vêem que, por impulsos exteriores de um lado e abandonos do outro, se estão formando em África, uns atrás dos outros, novos Estados. Estes apresentam-se ao mundo como uma condição de progresso e uma afirmação de liberdade. Se não há no caso precipitação, quero dizer, se estes novos Estados africanos possuem estrutura administrativa, económica e técnica, suficiente para suporte da sua vida independente; se possuem ou estão a pontos de possuir as elites necessárias à condução do Governo, à eficiência da administração, à direcção da economia, à manipulação das finanças; se essa é além disso a vontade real das populações e não só de alguns agitadores políticos, não vejo porque não saudá-los alegremente e não mostrar o nosso contentamento pela formação dos novos Estados.

Mas, se as condições acima não estão realizadas de facto, podemos ser chamados a ver, depois de um período convulso, uma grande parte de África em leilão, e outras soberanias despontarão a substituir, sob várias modalidades, algumas que actualmente têm a responsabilidade daqueles territórios.


Se ao menos os caminhos percorridos conduzissem à formação de um grande espaço económico euro-africano, no mesmo sentido da formação de outros espaços económicos, alguma coisa de muito sério não estaria perdida. Ninguém porém neste preciso momento, em que, pelas portas escancaradas, vemos entrar de roldão interesses contraditórios e ambições não disfarçadas, pode fazer um juízo de futuro. Esperemos que seja o mais próspero, o mais pacífico, o melhor para essas populações negras, alvoraçadas agora de entusiasmo, à procura de uma Pátria que em certos casos lhes não foi dada, mas sem talvez a noção precisa dos problemas que têm de enfrentar.

A guerra que perdemos no Terreiro do Paço!!!

 





«Apesar das dificuldades iniciais, a doutrina de contra-subversão portuguesa acabou por ser uma das melhores, ou a melhor, de quantas se definiram e praticaram nas diversas guerras subversivas verificadas no Mundo».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política»).

sábado, 15 de novembro de 2025

A Vitória Traída - Kaulza de Arriaga.

 




Moçambique




I. ABERTURA



1. A análise da luta em Moçambique, travada na década de 1964 a 1974, implica, por um lado, o conhecimento pleno dos factores inerentes à própria luta e, por outro, a consciência correcta do ambiente que a enquadrava.

Assim, considerei, em primeiro lugar, as causas da luta, a sua natureza, as teorias, estratégias e tácticas aplicadas e aplicáveis e o decorrer das operações.

Depois referirei as crenças, hábitos, tendências, estado de espírito e acção das populações, da Igreja, da Administração Civil e das Forças Armadas.

Finalmente, deduzirei uma conclusão.

2. Durante o período em que fiz parte do Corpo Docente do Instituto de Altos Estudos Militares, dediquei-me ao estudo do Teatro de Operações de Moçambique.

Fui, depois, oito meses Comandante das suas Forças Terrestres e durante mais de três anos, exactamente quarenta meses, seu Comandante-Chefe.

Então, mantive constante contacto, com os meios internacionais, e, naturalmente, relações cerradas com o Governo e as Autoridades Militares de Lisboa; trabalhei intimamente com os Governos de Lourenço Marques e fiz uma condução da luta permanente e directa, processando-a no gabinete, nas salas de operações e, com grande frequência, no próprio campo de acção.

Tudo isto me permite analisar o caso de Moçambique com conhecimento de causa.

Tratá-lo-ei isentamente, de harmonia com os valores morais e éticos em que me fiz homem e militar e aplicando todas as minhas, poucas ou muitas, possibilidades intelectuais. E com serenidade, mas sem prejuízo do vigor de expressão que tamanha questão merece e exige.


II. AS CAUSAS DA LUTA


A causa profunda e primeira


3. Um dos fenómenos que, após a II Grande Guerra, maior projecção tem tido nas relações entre as nações e mais tem incidido na vida dos povos e na actividade dos homens, é, indiscutivelmente, a confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

O primeiro, conduzido, de início, pela Rússia e pela China e, depois, apenas por aquela super-potência, tem assumido uma atitude ofensiva sistemática e impregnada de grande fanatismo. O Ocidente, orientado pelos Estados Unidos da América e pela Europa, embora baseado principalmente na extraordinária capacidade norte-americana, tem-se mantido em posição defensiva, de certo modo tímida e pouco motivada.

Paralelamente afirmou-se - mantendo ainda hoje validade significativa - a dissuasão clássico-nuclear. Esta vem conduzindo a que tal confrontação se processe através de uma estratégia indirecta no espaço e nos métodos e a uma política de pseudo-causas.

A estratégia indirecta no espaço concretiza-se não, ou limitadamente, na incidência sobre os próprios adversários, mas sim, sobretudo, na procura do controle de áreas importantes do Mundo que os afecte ou contribua para o seu isolamento. A estratégia indirecta nos métodos consiste na substituição da guerra clássico-nuclear pela acção psicológica e subversão, pelo terrorismo e guerrilha, pelo golpe de estado e revolução e pelas guerras limitadas.

Esta estratégia indirecta no espaço e nos métodos generalizou-se, manifestando-se em todas as áreas críticas do Mundo, não sob forma paroxística, mas constituindo um conjunto de conflitos locais e menores, coordenado e indefinido no tempo.

Na política de pseudo-causas, age-se por forma a que a confrontação referida, causa profunda e primeira dos conflitos locais e menores, seja minimizada ou mesmo camuflada perante problemas internos, como insuficiências, dificuldades e atritos, sempre existentes e artificialmente utilizados, ampliados e agudizados. E esta política tem-se mostrado eficaz na medida em que a necessidade de evitar perigosas escaladas guerreiras e o princípio da não-intervenção em assuntos internos de outros estados impõem - embora se conheça mas não se reconheça a causa autêntica - a consideração daqueles conflitos como de origem realmente interna e assim insusceptíveis de merecerem atitudes ou acções muito explícitas dos principais interessados.

4. Entre as áreas importantes do Mundo cujo controle permite afectar e contribuir para o isolamento dos grandes adversários, distinguem-se, sem dúvida, a Ásia Marítima, a América do Sul, o Médio Oriente, a África do Norte e a África Austral.

A primeira, cinturão de contenção da China, teve grande significado antes da ruptura soviético-chinesa, deu origem às duas Chinas, conferiu importância capital ao Japão, processou mudanças políticas na Indonésia e está na base das guerras da Coreia e do Vietname.

A América do Sul, grande e naturalmente rica, constituindo o flanco Sul dos Estados Unidos da América, é teatro constante mas não presentemente o principal, da confrontação em causa.

O Médio Oriente e a África do Norte, por um lado, e a África Austral, por outro, também extensos e com zonas naturais muito ricas, constituindo a cobertura sul da Europa e dominando as comunicações marítimas do Índico, no Mediterrâneo e no Atlântico Sul, vêm sendo objectivo actual e prioritário na mesma confrontação. Daqui e em grande parte, os problemas políticos da Síria, Iraque, Jordânia, Líbia e Argélia, as alterações políticas no Egipto, os conflitos no Líbano e as guerras israelo-árabes. E daqui, igualmente em grande parte, as atitudes políticas da Tanzânia e da Zâmbia, as perturbações no Congo, os acontecimentos ocorridos em tempos no Congo Belga e os que agora se verificam no Zaire, as lutas que sustentámos na Guiné, Angola e Moçambique, a posterior descolonização destes territórios e a de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, e os problemas candentes da Rodésia e da República da África do Sul.

5. Está assim definida a causa profunda e primeira da luta em Moçambique.

Esta luta mais não foi, e talvez mais não seja, do que um conflito local e menor na conquista da África Austral, objectivo presentemente prioritário na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

6. Mas, sendo assim, é legítima a pergunta: porque não apoiou o Ocidente Portugal em África e até, pelo menos em certa medida, o hostilizou?

A verdade é que, a par de tal falta de apoio e hostilização explícitas, houve, também, muita simpatia e apoio implícitos.

Contudo e no seu somatório, a atitude e actuação ocidentais foram, em verdade, negativas em relação a Portugal ou, pelo menos, não suficientemente positivas. E, deste modo, a pergunta persiste: porquê?

Em primeiro lugar, na confrontação com o neo-imperalismo comunista o Ocidente, como referi, tem-se mantido em posição defensiva, tímida e pouco motivada. Isto porque uma opinião escrupulosa, sobretudo norte-americana mas também europeia, mal informada, perturbada por propaganda intensíssima e não poucas infiltrações, quer ter a certeza de estar na razão.Também, porque o superior nível de vida ocidental tem como preço o comodismo acentuado e a tendência para a dilação das questões difíceis. E, ainda, porque as preocupações internas dos países ocidentais têm conduzido à preterição de uma política a longo e médio prazo em favor do imediato.

Depois, os mesmos países sentem o peso de um Terceiro Mundo, que reconhecem obcecado, mas cuja população imensa e em estado de sub-desenvolvimento lhes origina complexos, e cujas matérias-primas lhes são indispensáveis.

Finalmente, porque os países em causa nunca entenderam plenamente o caso português, nem acreditaram verdadeiramente nas nossas teses, nem aceitaram completamente a nossa argumentação.

Apesar de tais explicações, a verdade é que o que acabo de referir relativamente a Portugal se integra numa passividade ocidental de carácter, pelo menos, tendencialmente suicida.

Isto na medida em que o comunismo soviético obteve, com a chamada descolonização portuguesa, uma das suas mais significativas vitórias. Vitória tão grande que lhe permite encarar já a hipótese de, numa estratégia mais directa, cercar o coração da Europa, mediante uma ameaça brutal na fronteira da Alemanha Federal, mediante um crescente controlo das comunicações marítimas e áereas no Mediterrâneo e no Oceano Atlântico, conseguido nomeadamente pela aquisição, permanente ou temporária e oportuna, de posições na África do Norte e nos arquipélagos de Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores, e mediante ainda o assentamento de pés, bem firme, nas Penínsulas Itálica e Ibérica.

É provável e desejável que aqueles, que referi, como não entendendo o caso português, não acreditando nas nossas teses e não aceitando a nossa argumentação, comecem a aperceber-se de que afinal a razão estava connosco e que, a continuarem como até aqui, caminharão infalivelmente para a catástrofe.



Samora Machel e um elemento do KGB.


Outras causas



7. Não pode contrariar-se, à luz dos sãos princípios vigentes na actualidade, o desejo de qualquer povo de ser auto-governado, mesmo que de tal decorra para ele menor riqueza espiritual e material, menor nível de vida e maior infelicidade.

A isto veio juntar-se o anticolonialismo, muitas vezes eminentemente justo, na medida em que um mau colonizador, isto é, um colonialista, em lugar de civilizar, explorava.

E estas circunstâncias foram transformadas em factores de tensão, altamente obsessivos, por interesses estranhos que nada tinham a ver com a autodeterminação ou com o acerto do colonizador ou as injustiças do colonialista.

Assim se formou a psicose terceiro-mundista de independência a todo o custo, sob qualquer fórmula, descuidando consequências.

Mas deve considerar-se que a autodeterminação, para ser autêntica, deveria pressupor um estádio político, económico e social dos povos que impedisse que, ao adquirirem, por via dessa própria autodeterminação, a independência, não caíssem logo sob o jugo de estrangeiros. O caso dos antigos Territórios Ultramarinos Portugueses é disso exemplo flagrante.

De qualquer maneira, a psicose referida foi também uma das causas, embora não a principal, da luta em Moçambique.

8. Algumas pessoas nascidas na então Metrópole Portuguesa ou nos então Territórios Ultramarinos Portugueses, umas na observância dos interesses do comunismo internacional, outras apenas na ânsia de derrubarem o regime de Salazar e de Caetano, fizeram tudo o que lhes foi possível para que Portugal e as suas Forças Armadas fossem derrotados em África.

Foi uma atitude de desvario, de apostasia nacional. Nela desprezaram o País e os povos portugueses, quer europeus quer africanos e asiáticos, a sua História construída no suor e no sangue, o seu presente que poderia ser de riqueza e progresso. Nela contribuíram para a desastrosa situação que Portugal e os seus antigos Territórios Ultramarinos viveram recentemente, vivem e viverão ainda por muito tempo. Nela contribuíram para a ruptura do sistema de paridade e harmonia étnicas, em que Portugal era vanguarda no Mundo, e para a ruína de territórios prósperos ou em vias de sê-lo, como Angola e Moçambique. Nela assumiram responsabilidades indeléveis na morte e mutilação de bons e jovens portugueses, brancos, negros e mestiços, que cumpriam honestamente o seu dever militar, e nas centenas de milhares de mortos e milhões de destroçados moral e materialmente, fruto da descolonização.

E hoje, prisioneiros do seu erro, incapazes de um «mea culpa» histórico, limitam-se a uma defesa cega das suas posições e à tentativa de neutralização daqueles que, com seriedade lhes mostram o caminho errado que infelizmente seguiram.

A acção de tais portugueses foi igualmente uma das causas, se bem que factualmente menor, da luta em Moçambique.

9. As teses ultramarinas portuguesas, na sua fórmula actualizada, já então vigente em Moçambique, não só respeitavam o passado português e estavam perfeitamente harmónicas com os conceitos sociais mais avançados, como são aquelas que terão de vigorar generalizadamente no grande futuro de um Mundo viável e harmonioso.

Contudo, havia e houve, quer no plano oficial quer no sector privado, alguns desvios a tais teses. Desvios que vinham sendo progressivamente corrigidos pelas Forças Armadas e pela parte boa da Administração Civil. Desvios que acabariam por desaparecer.

Mas a política das pseudo-causas, como sempre, aproveitou-se de tais desvios, ampliou-os, agudizou-os e fez deles uma bandeira que iludiu muitos portugueses e muitos estrangeiros.

Eis, ainda, uma outra causa menor da luta em Moçambique.


Mário Soares, um dos principais conspiradores contra os interesses
portugueses e dos povos africanos.



III. A NATUREZA DA LUTA EM MOÇAMBIQUE



A guerra destruidora, ofensiva e defensiva



10. A Guerra é na quase totalidade dos casos, por essência, destruidora.

Nela se procura impor uma vontade, destruindo, nos domínios material e espiritual, o adversário. E, em particular, nela se destrói o que de mais sagrado existe - a vida humana.

Por tudo isto, a guerra é condenável. Outras fórmulas deveriam utilizar-se para solução dos diferendos entre os homens. E, embora muitas vezes esquecidas, elas existem efectivamente.

11. Mas há, também, que distinguir a guerra ofensiva, a agressão violenta, que toma a iniciativa da destruição e que deliberadamente sacrifica vidas humanas, da guerra defensiva, do enfrentar da agressão, que só destrói para evitar a destruição e que só admite matar para não morrer.

Em relação à primeira, não parece poderem existir dúvidas sobre a sua ilegitimidade, e sobre a atitude criminosa de quem a promove e pratica.

A guerra defensiva, em contrário, reveste-se de legitimidade inteira e constitui dever maior, para os que sofrem a agressão, o nela participarem e agirem conscientemente e em total entrega.


Kaulza de Arriaga no meio de militares portugueses durante a Operação Nó Górdio.



A luta construtiva de Moçambique


12. Na luta em Moçambique uma característica dominava, em antagonismo com o normal da guerra - a construção. Uma construção apontada ao futuro.

Na realidade, tal luta concretizava-se numa acção imensa de dignificação e promoção das populações e de valorização do território, tendo como objectivos fundamentais, procurados com coragem, tenacidade e fé, a plena paridade e harmonia étnicas, a produção crescente de riqueza e a sua justa distribuição.

Estava a conseguir-se, no plano da verdadeira civilização e no espaço de uma década, aquilo que, ao ritmo normal do progresso dos povos africanos, levaria pelo menos um século e que, após a descolonização, demorará muitíssimo mais tempo.

13. Assim se poderiam ter elevado territórios, não nos anos 60, como alguns com ligeireza ou habilidosamente afirmam, nem nos anos 70, como ficou provado, mas talvez nos anos 80 ou 90, a um nível político, económico e social que lhes permitisse uma autodeterminação livre, consciente e autêntica no seu processamento e nas suas consequências. Isto em contraste com o que efectivamente sucedeu - o ignorar-se a vontade ou simples opinião dos povos e o seu encaminhamento forçado para a submissão a potências estrangeiras.


A guerra defensiva e humana de Moçambique



14. Mas, em Moçambique, houve, também, grandes e intensas operações especificamente militares.

Elas eram, em última análise, defensivas ao enfrentarem a agressão de origem fundamentalmente externa e ao terem como finalidade impedir que o inimigo dificultasse a construção em curso. Isto é, a própria destruição tinha como objectivo defender e permitir a construção.

15. Um outro aspecto não pode deixar de ser recordado. É o da grande humanidade com que as operações especificamente militares eram conduzidas e executadas.

Isto sem prejuízo do sofrimento geral e pontual que tais operações inevitavelmente trazem e sem prejuízo de uma ou outra acção abusiva que, quando conhecida e confirmada, logo foi punida ou enviada para juízo. Neste domínio e considerando todos os casos denunciados, de resto muitos dos quais falsos, o seu volume, face ao conjunto da actividade militar, foi mínimo e conferiu às Tropas Portuguesas de Moçambique o galardão de, pelo menos, se situarem entre as que melhor comportamento tiveram, no Mundo e em todas as épocas, perante as populações.

As operações especificamente militares eram moduladas pelo lema «convencer inteligências e conquistar corações» e, com frequência, foram previamente anunciadas as áreas e as datas onde iam ter lugar acções terrestres ou aéreas, na esperança de que delas se afastassem as populações. E nunca tive conhecimento de um apresentado ou prisioneiro ter sido menos bem tratado pelas Forças Armadas.

Não sei onde se tenha ido mais longe, e como se poderia fazê-lo, em matéria de protecção a civis e de acolhimento de apresentados e prisioneiros. Parece existirem algumas diferenças entre este procedimento e, por exemplo, os bombardeamentos da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, na II Grande Guerra, ou, continuando a exemplificar, o bombardeamento de Nova Lisboa e os massacres e fuzilamentos, a quente e a frio, que se perpetraram na Guiné, em Angola, em Moçambique e em Timor, no passado recente.


Uma coluna militar em acção.



A natureza da luta em Moçambique



16. Em síntese, a luta em Moçambique foi eminentemente construtiva e apontada ao futuro, teve um carácter defensivo e foi conduzida e executada pela forma mais humana.

Tal já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

E aqueles que nela participaram, particularmente quando o fizeram com dedicação e eficácia, são dignos do respeito e da gratidão da Pátria e dos seus povos e podem considerar-se orgulhosos de si mesmos.



IV. AS TEORIAS, ESTRATÉGIAS E TÁCTICAS APLICADAS E APLICÁVEIS E O DECORRER DAS OPERAÇÕES NA LUTA EM MOÇAMBIQUE


As áreas de luta



17. Em 1970, a luta em Moçambique abrangia as seguintes áreas principais:

a) A campanha de dignificação e promoção geral das populações.

b) O ensino.

c) Os estudos e trabalhos de valorização do território.

d) O aldeamento.

e) A acção contra-subversiva, especialmente nos distritos do Niassa, Cabo Delgado e Tete.

Nas três primeiras áreas trabalhava-se intensamente e, se o sucesso nelas conseguido influenciava fortemente o êxito das suas últimas, também aquele sucesso estava dependente dos resultados do aldeamento e da contra-subversão.

É sobre o aldeamento e a contra-subversão, mais da responsabilidade do Comando-Chefe, que vou referir teorias, estratégias, tácticas, operações e seus resultados.


A teoria do aldeamento



18. A promoção das populações só pode ter lugar em sociedades organizadas em cidades, vilas e aldeias e não quando predomina a vida nómada.

Em Moçambique existiam numerosas e magníficas cidades e mesmo as mais modestas foram talhadas com largueza, visando o futuro.

Porém, as vilas e aldeias moçambicanas eram limitadíssimas em quantidade e qualidade, verificando-se acentuado nomadismo.

Impunha-se, pois, um grande trabalho neste capítulo. Daqui a obra-padrão de Nangade. Daqui os aldeamentos.

Nangade era uma vila-tipo, uma vila que seria a primeira de uma série a estabelecer ao longo do rio Rovuma e que seria, também, o modelo de centenas e centenas de vilas a edificar, com o tempo, em todo o Moçambique. Nangade era uma vila planeada e em execução segundo parâmetros modernos. A sua construção começou pelas infraestruturas básicas - electricidade, águas e esgotos -, seguiram-se-lhes os arruamentos e os edifícios de interesse comum e, depois, seguir-se-lhe-iam as habitações normalizadas.

Os aldeamentos constituíam a base da promoção do povo moçambicano. Tinham de ser implantados em grande quantidade e depressa, sacrificando-se inicialmente a qualidade à quantidade. Fizeram-se mais de mil, abrangendo aproximadamente um milhão de pessoas. Faltavam ainda uns quatro mil. Sobre aldeamentos reproduzo um texto que escrevi há algum tempo:

«Realmente aqueles que nos hostilizavam elegiam para os seus ataques físicos, procurando ferir e matar populações, e para os seus ataques propagandísticos pseudo-intelectuais, negando a verdade evidente, o aldeamento ou melhor os aldeamentos.

Estes, ao contrário do que dizia aquela propaganda que os considerava campos de concentração de estilo hitleriano, e diferindo das ideias que os julgavam de necessidade essencialmente militar e de duração efémera, eram pólos e fontes definitivos de civilização.

Em verdade constituíam mesmo a fórmula única de promoção rápida das populações sub-desenvolvidas.

A promoção das populações dispersas era e é, na prática da vida, impossível. O ensino, a assistência sanitária, a assistência técnica agro-pecuária ou industrial, o comércio e, de uma forma geral, a fruição dos benefícios do progresso só podiam e podem incidir nos aglomerados populacionais.

Assim, o aldeamento a que procedíamos e os aldeamentos que construíamos eram obra imensa de promoção e fomento. Talvez a maior obra então em curso em Moçambique e na grande maioria dos territórios africanos.

Naturalmente, muitos dos aldeamentos construídos e em construção e muitos dos que se iriam construir estavam e seriam inicialmente incompletos e imperfeitos, apresentando deficiências mais ou menos pronunciadas.

Tal resultava de certa limitação em meios, mas sobretudo da velocidade de execução.

Daqui o facto do aldeamento não terminar com a construção dos aldeamentos, mas, bem pelo contrário, esta construção ser apenas a fase inicial a que se seguiam outras numa tarefa contínua de melhoramento e aperfeiçoamento.

No relativo a muitas populações e como consequência dos seus hábitos tradicionais, verificava-se, de começo, alguma estranheza ao conceito de aldeamento e alguma dificuldade na vida de comunidade. Mas, após poucos meses de tal vida, ela tornava-se o normal, o natural e ninguém mais pensava em abandoná-la.

Outras populações, porém, de raiz mais evoluída, logo desejavam e solicitavam o aldeamento.

De resto, os aldeamentos eram abertos e quem os quisesse abandonar podia fazê-lo. Este abandono teve efectivamente lugar, mas apenas esporadicamente e somente nas áreas que a subversão tornara instáveis.

Os aldeamentos tinham, também, um papel na contra-subversão.

Um papel indirecto, ao constituírem antídoto do aliciamento subversivo, na medida em que, melhorando o nível de vida das populações, aumentavam o contraste com aquele que a Frelimo lhes podia oferecer.

E um papel directo, ao dificultarem o trabalho dos agentes subversivos e ao limitarem o terrorismo selectivo ou generalizado com que a Frelimo procurava obter coercivamente o apoio das populações».

Espantosamente, porém, as Autoridades Centrais nunca se interessaram decididamente pelo aldeamento.


Um aldeamento em Moçambique.


 A contra-subversão



19. Quando assumi o Comando-Chefe do Teatro de Operações de Moçambique, em fins de Março de 1970, a situação subversiva e contra-subversiva podia sintetizar-se como segue:

Niassa Norte - A subversão tinha sido praticamente derrotada pelos meus antecessores. A população estava na sua grande maioria aldeada, havendo apenas alguns focos subversivos nas altas montanhas e muito a norte.

Niassa Sul - Não existia praticamente subversão e a população estava em condições óptimas para o estabelecimento de um sistema de auto-defesa.

Lago Niassa - Estava inteiramente controlado pela Armada portuguesa em cooperação com as Forças Lacustres malawianas.

Cabo Delgado - O inimigo mostrava-se em plena força, bem enraizado no terreno, considerando as suas bases inexpugnáveis, com grande domínio sobre as comunicações terrestres, e acabava de lançar a sua grande ofensiva que tinha por objectivos o isolamento das nossas unidades, através de um lançamento maciço de minas, e uma profunda progressão para sul. Contudo, a Autoridade portuguesa local havia procedido à construção de uma faixa de aldeamentos a sul do rio Messalo, em verdade notável.

Tete - Verificava-se uma subversão incipiente.

20. A estratégia inimiga tinha nessa época as seguintes finalidades principais:

- formar ou consolidar um «exército de libertação» com base na etnia maconde;

- atingir com tal «exército» o coração de Moçambique (região limitada pelo rio Zambeze, rio Luenha, fronteira com a Rodésia, estrada Vila Pery-Beira e litoral entre a Beira e a foz do rio Zambeze), separando Moçambique em três partes (Tete, o Norte e o Sul) e afectando as ligações Beira-Rodésia;

- para tanto, manter uma acção reduzida no Niassa e exercer o seu grande esforço em Cabo Delgado.

No relativo à táctica, de inspiração soviética, ela assentava mais na força do que na subtileza, admitindo grandes bases, colunas com efectivos avultados e acções maciças.

Aquela estratégia e esta táctica resultaram inicialmente, na medida em que as nossas unidades foram isoladas e o terrorismo progrediu acentuadamente para sul.

21. Deste modo, o Comando-Chefe teve de determinar disposições e acções urgentes e mandou preparar um plano de fundo que neutralizasse e destruísse as intenções e actuações do inimigo e trouxesse a iniciativa para o lado português.

Assim, foi executada uma grande operação de reabastecimento aéreo das unidades isoladas, foi reforçada a faixa de aldeamentos do rio Messalo por forma a impedir a progressão para sul e, seguidamente, foi realizada uma também grande operação de levantamento de minas.

Mais tarde, na sequência do plano de fundo acima referido, lançou-se a maior operação que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português - a operação «Nó Górdio».

A operação, na qual se utilizaram novas tácticas com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia e em tropas especiais de assalto e, por outro, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado e posto em fuga. As suas baixas, se bem que infligidas no menor número possível, foram consideráveis. Não mais alguém pensou no «exército maconde» nem na sua progressão para sul. Restabeleceu-se o domínio português sobre as comunicações terrestres e as nossas forças passaram a ter inteira liberdade de acção e plena iniciativa.

Na exploração do sucesso, levada a efeito sobretudo por forças aero-móveis, o inimigo restante em Cabo Delgado quase desapareceu, refugiando-se na Tanzânia. E esteve à vista a vitória portuguesa total na área e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

A pedido do Presidente do Conselho de Ministros e do Ministro da Defesa Nacional, fiz uma intervenção televisionada em Lisboa, expondo honestamente a situação.

Esta intervenção valeu-me posteriormente muitas críticas, pois tinha dado a entender um triunfo final breve, quando, dois anos depois, em 1973, este ainda se não verificara e, pelo contrário, parecia que a conjuntura havia piorado.

E era verdade. É que não contara, porque o não conhecia, com o erro de Cabora Bassa.

22. Cabora Bassa era e é uma realização de excepcional grandeza e importância no domínio da economia. Poderia ter transformado, no sentido do enriquecimento, todo o enormíssimo vale do médio e baixo Zambeze e poderia ter contribuído, por forma notável, para o progresso global de Moçambique.

Contudo, a construção de Cabora Bassa foi decidida e iniciada levianamente, sem que tivesse sido feita qualquer avaliação da sua projecção nos domínios político e estratégico. E, em consequência, sem que se tivessem tomado, nestes domínios, medidas adequadas. Tal facto constituiu grave erro do Governo de Lisboa.

Depressa Cabora Bassa se transformou no símbolo do sucesso. Ou Cabora Bassa era construída sem perturbações significativas, ou Cabora Bassa não era construída, ou na sua construção se verificavam perturbações sérias, e Portugal estaria derrotado.

Assim, Cabora Bassa - o estaleiro ligado à construção da barragem, a área da sua futura albufeira, os seus acessos de quase um mihar de quilómetros, pelos quais transitavam diariamente centenas de toneladas de cimentos, semanalmente centenas de quilos de explosivos e, com frequência, equipamento num total de 36.000 toneladas que não podia, de modo algum, ser danificado e muito menos destruído, a sua linha de transporte de energia eléctrica de mais de 6.000 postes, etc.  - passou a constituir questão vital e ponto de honra no relativo à sua segurança.

23. A DGS, cuja informação estratégica era magnífica, logo informou da decisão da Organização da Unidade Africana de adopção de nova estratégia para Moçambique. A derrota espectacular da Frelimo em Cabo Delgado e a necessidade de impedir ou dificultar quanto possível a construção de Cabora Bassa foram as causas dessa nova estratégia.

Ela consistia fundamentalmente em:

- continuar com a acção reduzida no Niassa;

- com os restos do «exército maconde» e com os novos terroristas da mesma etnia, que entretanto fora possível recrutar e treinar, manter o esforço possível, embora secundário, em Cabo Delgado, com a finalidade de fixar forças portuguesas;

- exercer o esforço principal em Tete, torneando Cabora Bassa, atingindo o istmo de Tete e seguidamente o coração de Moçambique com as consequências conhecidas;

- incluir neste esforço as acções possíveis contra Cabora Bassa e o ataque intenso aos seus acessos e acessório à estrada Rodésia-Malawi.

Mas não só a estratégia foi alterada, também a táctica. Esta, agora de inspiração chinesa, era extremamente subtil, com bases muito pequenas de vigência curtíssima e empregando grupos dígitos, peritos no aliciar e na realização de pequenas acções de grandes efeitos psicológicos e dotados de capacidade notável de diluição nas populações.

24. A Portugal, conhecedor da futura estratégia inimiga, duas alternativas se punham e por mim foram propostas:

- ou impedir essa estratégia, usando a poderosa arma económica que tinha sobre a Zâmbia, no sentido de não permitir o trânsito de terroristas no seu território e, assim, impossibilitar o acesso destes a Tete;

- ou favorecer ao Comando-Chefe os meios necessários para que, sem prejuízo do ritmo do sucesso em Cabo Delgado, se pudesse enfrentar a situação em Tete.

Contudo, nenhuma destas alternativas foi adoptada. A primeira, talvez porque o Governo de Lisboa não tivesse nem a posição nem a coragem para suportar as complicações que certamente surgiriam na ONU com o corte, em Angola e Moçambique, das vias de comunicação com os Oceanos Atlântico e Índico que serviam a Zâmbia e eram para ela de interesse económico vital. A segunda, certamente porque, nessa época, as Autoridades Centrais não primariam pela clarividência e capacidade de decisão.

Propus então que tropas numerosas, mais ou menos inactivas de Angola, dada a situação muito favorável ali vigente, fossem empregadas em Moçambique. E propus mesmo, para facilitar a sua manobra, que um Comandante-Chefe único fosse designado para os Teatros de Operações de Angola e Moçambique. Tudo foi recusado, tendo a minha proposta sido interpretada, segundo parece, não como uma medida bem intencionada e fecunda, mas apenas como desejo meu de ser o «dono» da guerra na África Austral.

E ficava Cabora Bassa com a sua grande imobilização de efectivos.

Resolvi então produzir mais tropas locais. E mais Companhias de Comandos e as primeiras dezenas de novos Grupos Especiais e de Grupos Especiais Paraquedistas foram mandadas constituir.

De Lisboa surgiram dificuldades, proibições, etc., mas mantive a minha decisão e, quando deixei Moçambique, aquelas Companhias de Comandos estavam em formação e aqueles GE e GEP encontravam-se quase prontos da sua instrução e treino.

25. Enquanto mantinha toda esta polémica com as Autoridades Centrais, defini a nova estratégia portuguesa em Moçambique:

Ela baseava-se nos seguintes parâmetros:


Cabora Bassa em fase de construção.



Numa primeira fase defensiva



- reduzir ao mínimo compatível com o equilíbrio táctico os efectivos no Niassa e em Cabo Delgado;

- organizar em auto-defesa as populações do Niassa Sul;

- procurar consolidar a faixa de aldeamentos do rio Messalo;

- exercer o esforço nos acessos a Cabora Bassa, nas posições que a protegiam e noutras áreas-chave ou importantes do distrito de Tete;

- acelerar o aldeamento das áreas convenientes do mesmo distrito;

- tentar impedir as infiltrações ao longo do istmo de Tete e o acesso inimigo a áreas mais a sul e sudeste;

- Aldear as populações do istmo de Tete e do norte dos distritos de Vila Pery e da Beira.


Numa segunda fase defensiva-ofensiva



- continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

- com tropas vindas eventualmente de Angola, somente com alguns dos novos Comandos, GE e GEP ou com umas e outros, retomar a ofensiva em Cabo Delgado;

- com a maioria dos novos Comandos, GE e GEP, consolidar a segurança do complexo de Cabora Bassa e eliminar as infiltrações que tivessem tido lugar no istmo de Tete e nas áreas mais a sul e sudeste;

- manter e aumentar no possível o esforço de aldeamento.


Numa terceira fase ofensiva



- efectuar com meios navais e aero-navais a interdição da albufeira de Cabora Bassa;

- recuperar as tropas libertadas por tal interdição;

- continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

- com as anteriores tropas, com as recuperadas e com outros novos Comandos, GE e GEP, intensificar a ofensiva em Cabo Delgado e limpar o distrito de Tete e a este da linha albufeira-Cabora Bassa-furancungo.

26. No decurso das operações correspondentes à primeira fase da estratégia referida verificaram-se:

- o equilíbrio no Niassa;

- certo recrudescimento de actividade inimiga em Cabo Delgado, com algumas perturbações sem significado especial na faixa de aldeamentos do rio Messalo;

- a manutenção da invulnerabilidade da área da barragem em construção;

- a manutenção do ritmo desta construção sem o atraso de um segundo sequer;

- a manutenção da invulnerabilidade dos equipamentos transportados e da linha de transporte de energia eléctrica;

- infiltrações inimigas no istmo de Tete e em áreas mais a sul e sudeste.

E, apesar de em relação ao complexo de Cabora Bassa o sucesso português ter sido total e de as infiltrações no istmo de Tete e ao norte dos distritos de Vila Pery e da Beira serem reduzidas, a projecção psicológica destas infiltrações, quer em Moçambique quer na então Metrópole Portuguesa, foi enorme.

27. Contudo, a análise fria da situação mostrava que o inimigo sabia que, com as tropas locais que tínhamos em preparação e que podiam e deviam ser multiplicadas, com a finalização da obra de Cabora Bassa no dia desde início previsto - símbolo do sucesso -, com as decorrentes repercussões psicológicas e políticas e com as vantagens tácticas oferecidas pela albufeira, a sua derrota seria um facto.

E concluiu que a única hipótese positiva, que lhe restava, era uma decisão obtida antes da formação de mais Comandos, GE e GEP e antes do termo da construção de Cabora Bassa. Daqui, o seu esforço desesperado no ano de 1973.

Esforço que, perante as suas extensíssimas linhas de comunicação, desde Dar-es-Salaam ou Nashingwea, atravessando toda ou parte da Tanzânia, a Zâmbia, Tete e o seu istmo, até ao centro de Moçambique, e por exceder as suas possibilidades reais, a mais não poderia conduzir do que ao seu esgotamento.

E assim sucedeu. A Frelimo conseguiu as referidas infiltrações nos distritos de Vila Pery e da Beira e esgotou-se.

Por outro lado, ela não tinha qualquer outra alternativa estratégica.

Estes factos podem ser negados. Porém, nem por isso deixam de corresponder à realidade.


Imagem do Moçambique moderno deixado pelos portugueses.




V. AS POPULAÇÕES, A IGREJA, A ADMINISTRAÇÃO CIVIL E AS FORÇAS ARMADAS


As populações


28. Em guerra subversiva, as populações constituem factor predominante, senão decisivo.

Em Moçambique, elas estavam sujeitas a uma acção inimiga de propaganda intensa que começava em Nova Iorque, na ONU, e terminava em cada tribo e em cada homem. Algumas, localizadas em áreas que contactavam directamente com países adjacentes, suportavam ainda uma acção coerciva, terrorista primária e implacável.

Por outro lado, as populações absorviam também a verdade portuguesa. E muitas delas sabiam da campanha levada a efeito para sua dignificação e promoção e dos estudos e trabalhos de valorização do território, como reconheciam ou acabavam por reconhecer as vantagens do aldeamento.

Mas, talvez acima de tudo, elas mantiveram as suas crenças, hábitos e tendências.

Tudo somado, o facto é que a grande maioria das populações moçambicanas sentia-se portuguesa ou, pelo menos, na luta em curso, opunha-se à Frelimo. Neste aspecto, distinguiam-se a etnia macua, a única inteiramente e só moçambicana, constituindo mais de metade do total demográfico, e os islamizados da orla marítima, também muito numerosos.

Tal fundamentava definitivamente a legitimidade e a moralidade e justiça da contra-subversão.

29. Neste capítulo das populações, merece especial referência o caso dos Grupos Especiais e dos Grupos Especiais Paraquedistas, GE e GEP.

Inicialmente criados com a finalidade de constituírem pequenas boas unidades anti-terroristas e anti-guerrilha, depressa se transformaram em arma de elite na luta global em curso.

Cada GE, cada GEP, formado exclusivamente por voluntários, passou a constituir, na massa populacional de que era emanação e com a qual convivia e agia, centro irradiante de portuguesismo, factor capital de dignificação e promoção, instrumento importante de valorização, exemplo presente do benefício-aldeamento, que usufruía, e unidade de combate eficaz.

Formaram-se mais de uma centena de GE e GEP. Mas a afluência de voluntários era tal que poderiam ter-se constituído alguns milhares de grupos. E aqueles que, nas operações de recrutamento, eram recusados por falta de qualificação ou por excessiva quantidade, afastavam-se sem poderem esconder a sua desolação.

Os GE e GEP estavam em curso de se transformar numa instituição. Instituição que cobriria Moçambique inteiro e que, só por si, seria capaz de lutar e vencer.

Mas, estranhamente, as Autoridades Centrais sempre reagiram mal aos GE e GEP. E, ulteriormente, não se soube ou não se quis aproveitar esta magnífica juventude africana. Magnífica na sua generosidade, na sua pureza, na sua exigência e na sua autenticidade.

Não resisto, ao terminar esta referência, a transcrever a parte final da mensagem de despedida que lhes dirigi:

«GE e GEP!

Muitos têm os olhos postos em vós.

As próprias Forças Armadas a que pertenceis, as populações, o País e numerosos amigos estrangeiros. Todos estes vos olham na expectativa e com esperança e fé na vossa acção e nos vossos feitos.

E o inimigo fala em vós, de Pequim, de Moscovo, de Dar-es-Salaam, de Lusaka, através de constantes emissões radiofónicas ou doutros processos de difusão e propaganda, pela razão única de que vos considera e teme.

GE e GEP tendes já fama a sustentar e dilatar!

Sustentai-a e dilatai-a, pela tenacidade e agressividade no combate contra o inimigo e pelo esforço na ajuda às populações e na justiça e amizade com que as tratais.

Fazei-o para bem de Moçambique e de Portugal, fazei-o como lição ao Mundo».


30. Também neste mesmo capítulo das populações, uma nota particular, esta bem triste, não pode deixar de ser formulada a propósito de certo sector das populações de etnia branca.

Esse sector, ao que se julga auto-denominado de «os democratas de Moçambique», vivia acima de tudo sob o sentimento da hostilidade ao regime de Salazar e de Caetano. E estava ou procedia como se estivesse, não com Portugal, mas sim ao lado da Frelimo.

É quase espantoso como tal sector, vivendo há longo tempo «in loco», conhecendo ou devendo conhecer perfeitamente Moçambique e os seus povos, se não apercebia de que a sua acção apenas contribuía para o drama imenso que foi e é a chamada descolonização.

E, presentemente, ou conseguiram, a tempo, sair de Moçambique com os seus haveres e não podem deixar de classificar-se como colonialistas que ali foram apenas para enriquecer, ou se encontram arruinados, lamentando a sua conduta.


Lourenço Marques em 1970.



A Igreja



31. A Igreja moçambicana, apesar das grandes dificuldades que teve de enfrentar, particularmente nos últimos anos da luta, comportou-se no seu conjunto, como era de esperar, com sabedoria, prudência e acerto.

Do meio milhar de sacerdotes que a constituía, pouco mais de meia centena, muitos dos quais estrangeiros, agiu contra Portugal, inclusivamente colaborando com a Frelimo.

32. Mau grado este diminuto número, o facto impressiona-me, pois ultrapassa o meu entendimento de católico que alguém, religioso, e sejam quais forem as razões, aceite e muito menos apoie actos terroristas.

Igualmente me impressiona que incidentes infelizes, que nunca foi possível evitar em guerra alguma, não tenham sido relatados por certos sacerdotes na sua verdadeira dimensão, mas, bem pelo contrário, surgissem falsamente aumentados, agigantados mesmo, no que tinham de mais negativo, com propósitos de escândalo oportuno a nível internacional.

E, também, não consigo encontrar explicação para o silêncio de alguns poucos elementos da Igreja, quando, na noite de 15 de Março de 1961 e nos dois ou três dias que se lhe seguiram, foram assassinadas com requintes de primitivo barbarismo, em Angola, mais de 7.000 pessoas, ou quando, recentemente e ainda hoje, se verificaram e verificam massacres, a quente e a frio, no ex-Ultramar Português, que atingiram já o quantitativo de centenas de milhares de pessoas.


A Administração Civil



33. Havia, naturalmente, em Moçambique excelentes elementos na Administração Civil.

Contudo e no seu conjunto, tal Administração estava ultrapassada nos conceitos e nos métodos. Enfermava de ideias, sistemas e modos de actuação que haviam feito o seu tempo mas já se não adaptavam, nem ao sentir e saber dos povos, nem às teses ultramarinas portuguesas já então actualizadas.

34. Não poucos foram os diferendos entre as Forças Armadas, que ali lutavam em todas as áreas de acção, e aquela Administração.

Em determinado momento, porém, a situação melhorou muito com um novo Governador-Geral, que, apercebendo-se desde o primeiro momento da situação, tudo procurou corrigir e muito corrigiu efectivamente.

E a plena harmonia de princípios e propósitos existente entre o Comandante-Chefe e o mesmo Governador-Geral permitiu que a luta fosse conduzida com unidade e que as divergências surgidas, aqui e ali, nos escalões de execução, depressa fossem sanadas.


As Forças Armadas


35. Abordo agora uma das questões mais candentes relativas à luta em África - o comportamento das Forças Armadas.

36. Começo por afirmar que uma luta com a natureza que referi, nas áreas de acção que citei, em regra só pode ser ganha pelo conjunto das forças de um País, lideradas pela política, e raramente apenas pelas suas Forças Armadas. O que estas normalmente podem e devem conseguir é impedir a derrota e conceder à política o tempo bastante, pouco ou muito, para que ela construa a vitória.

Mesmo assim, em Moçambique, as Forças Armadas quase terminaram com a luta em 1970/1971 e, de qualquer modo, concederam à política tempo mais do que bastante - e conceder-lhe-iam aquele que fosse necessário. E, ainda no começo do segundo semestre de 1973, as forças metropolitanas, na sua generalidade, mantinham-se firmes e razoavelmente capazes, e as forças locais cresciam quantitativamente e na sua eficácia.

37. No relativo ao valor das Forças Armadas, um caso especial tem de evidenciar-se.

Ele é o das Tropas de Comandos, incluindo as formadas em Moçambique.

Tais Tropas, desde sempre excelentes, foram melhorando ainda e atingiram os mais altos padrões na sua concepção e maneira de serem portuguesas, na sua capacidade física, na sua coragem e bravura, na sua táctica e técnica, em síntese, no seu patriotismo e eficácia.

E os seus efectivos iam crescendo de acordo com as possibilidades de uma preparação apurada.

Elas acabariam por ser a coluna vertebral irredutível das forças militares.

Também aqui estranhamente, as Autoridades Centrais procuraram limitar o seu emprego em Moçambique e contrariaram francamente a formação dos Comandos moçambicanos. E, mais tarde, inconsciente ou deliberadamente, nada se extraiu da sua superior condição militar.

38. Por mais absurdo e apóstata que pareça, foi a política, a que foi concedido tanto tempo para vencer, que acabou por desmoralizar, desagregar e destruir o conjunto das Forças Armadas, impedindo-as de lhe garantirem mais tempo ainda.

A grande responsável pelo desastre ultramarino português é a política e não as Forças Armadas.

Mas a política é feita por políticos e a responsabilidade da política é a responsabilidade dos políticos.

Dos políticos anteriores e posteriores ao 25 de Abril que não souberam ganhar ou evitar a derrota e dos políticos posteriores ao 25 de Abril que quiseram perder. Naturalmente, que os primeiros são passíveis de acusação de incompetência e os segundos da gravíssima acusação de traição.

Simplesmente, antes e depois do 25 de Abril, havia políticos militares, em número pouco mais que dígito, mas havia-os.

Assim, se no campo civil há políticos a responsabilizar e, eventualmente condenar, no sector castrense não estarão em causa as Forças Armadas mas há também, naquele número pouco mais do que dígito, militares a responsabilizar e eventualmente condenar.

39. Contudo, para julgamento pleno das Forças Armadas, resta esclarecer um ponto.

Este é o de saber se, à política desmoralizadora, desagregadora e destruidora, as Forças Armadas opuseram resistência que as dignificasse.

O processo de corrosão das Forças Armadas vem de longe. Denunciei-o pela primeira vez em 1958, em memorandum dirigido ao Presidente do Conselho de Ministros e em carta enviada ao Ministro da Defesa Nacional. Referi-o com frequência ao longo dos anos e, perante a sua intensificação e o desajustamento da orgânica e preparação das Forças Armadas a uma missão já concretizada, exprimi críticas com especial acuidade a partir de 1964, em lições do Instituto de Altos Estudos Militares e em conferências públicas, mas sobretudo em conversações e documentos reservados.

Semelhantes corrosão e desajustamento, em alguns casos provavelmente inconscientes mas noutros inteiramente premeditados, provinham de governos medíocres, de outros orgãos de soberania desinteressados, de cúpulas militares apáticas, de portugueses pouco motivados, egoístas ou renegados e, ainda, de estrangeiros e internacionais mal informados, errados ou representando interesses inconfessáveis.

A luta das Forças Armadas, em todo aquele tempo, foi muito a da sua sobrevivência ou vivência efectiva, em termos de ética e eficácia.

E, ultimamente, a maioria dos que, quase todos militares, se diziam defensores do prestígio das Forças Armadas, apenas contribuiu, ingénua ou criminosamente, para acelerar o seu colapso.

Perante tão prolongada e tamanha agressão, não é de aceitar qualquer acusação e, muito menos, qualquer propósito de condenação da Instituição Militar.


Refugiados das ex-colónias, as vítimas do episódio mais vergonhoso de toda a nos história.



VI. CONCLUSÃO



40. Pode sintetizar-se tudo o que ficou dito como segue:

a) A luta conduzida por Portugal em Moçambique integrava-se na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente, embora tivesse, também, como causa a psicose terceiro-mundista de independência e, ainda, outras causas menores.

À mesma luta pretendia conferir-se um carácter essencialmente de revolta interna, o que, por outro lado, impedia intervenções externas de vulto.

b) A luta conduzida por Portugal em Moçambique era construtiva e defensiva e foi levada a efeito pela forma mais humana, o que já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

Na mesma luta, a grande maioria das populações, sentia-se portuguesa ou, pelo menos, opunha-se à Frelimo, o que fundamentava definitivamente a sua legitimidade, moralidade e justiça.

c) Em 1970/1971, a vitória total, na área então chave que era Cabo Delgado, esteve à vista e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

d) Em meados de 1973, a situação mantinha-se em equilíbrio no Niassa; verificavam-se certo recrudescimento da subversão e algumas perturbações sem significado especial em Cabo Delgado; o sucesso português relativo a Cabora Bassa era total, mantendo-se imutável o ritmo da sua construção; a Frelimo tinha conseguido infiltrações no istmo de Tete e nos distritos de Vila Pery e da Beira, reduzidas mas de grande projecção psicológica; as forças portuguesas metropolitanas, apesar do esforço de desmoralização, desagregação e destruição que sobre elas incidia, mostravam-se na sua generalidade firmes e razoavelmente capazes, os Comandos, incluindo os moçambicanos continuavam excepcionais, e as outras forças portuguesas locais cresciam em quantidade e eficácia; a Frelimo encontrava-se esgotada.

Na mesma época, estavam definidas as novas fases da estratégia portuguesa, a defensiva-ofensiva, baseada nos novos Comandos, GE e GEP e no aldeamento, e a ofensiva, que se seguiria, baseada em mais Comandos, GE e GEP, nos efeitos psicológicos e políticos do termo da construção de Cabora Bassa, nas vantagens tácticas que a sua albufeira ofereceria e, também, no aldeamento; a Frelimo não tinha qualquer alternativa estratégica.

É do acabado de referir que vou deduzir uma conclusão.

41. Após o grave erro de Cabora Bassa e apesar dele, qualquer das duas alternativas referidas no número 24, poderia ter terminado com a luta em Moçambique.

Em particular, se as Autoridades Centrais tivessem procedido com um mínimo de acerto, existiria uma estratégia a nível nacional e a respectiva reserva estratégica de forças. E esta reserva permitiria a adopção da segunda alternativa com a sua aplicação, durante três ou quatro meses, em Cabo Delgado, o que conduziria à consumação do triunfo final português em Moçambique. Mas não existia estratégia nacional, nem reserva nacional.

42. Este outro erro igualmente grave deu lugar à conjuntura já descrita de meados de 1973.

Nesta conjuntura, evidenciavam-se os seguintes factores favoráveis a Portugal:

- nenhuma intervenção de vulto de apoio à Frelimo, consequência do carácter interno que, embora falsamente, se pretendia imprimir à luta;

- apoio da maioria das populações à causa portuguesa;

- nova estratégia perfeitamente definida;

- manutenção do valor dos Comandos e acréscimo quantitativo e melhoria qualitativa das forças portuguesas locais;

- efeitos psicológicos e políticos que resultariam do termo da construção de Cabora Bassa e vantagens tácticas da sua albufeira;

- nenhuma alternativa estratégica para a Frelimo;

- esgotamento da Frelimo.

E verificava-se o seguinte factor favorável à Frelimo:

- pequenas infiltrações, mas de grande projecção psicológica, nos distritos de Vila Pery e da Beira.

A conclusão resultante deste quadro é evidente.

Isto é, apesar dos dois erros capitais citados e de tantos outros importantes, embora de menor projecção, o triunfo final português em Moçambique apenas fora adiado de 1970/1971 para alguns anos depois.

Entretanto, e sobretudo após o 25 de Abril um outro factor favorável ao inimigo se generalizou e intensificou, tudo acabando por dominar -  a política absurda e apóstata que, como disse, desmoralizou, desagregou e destruiu o conjunto das Forças Armadas.

Tal deu lugar à paralisação estratégica e mesmo a desonrosas atitudes de inoperância táctica perante o inimigo.

E tudo se perdeu. 

(in África: A Vitória Traída, Intervenção, 1977, pp. 187-249)



Salazar e as ditaduras.

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