«Importa desmistificar o 25 de Abril, em que os aptos cederam o passo aos incapazes, em que, desiludidos, muitíssimos bons cidadãos preferiram o refúgio no estrangeiro, contribuindo para o desafogo alheio, a sujeitarem-se ao fluxo e ao refluxo das marés dos humores de garotos, de ladrões, ou de bêbados.
Os beirões - os rudes homens da Beira-Baixa - têm um rifão: "Quem parte e reparte e não guarda a melhor parte, ou é parvo ou não tem arte". Desfazendo no adágio, a esmagadora maioria dos "fabricantes" do 25 de Abril foi parva, mas teve arte. A diabólica arte de consumir em cinzas, no espaço de semanas, a obra secular dos Portugueses. Semeando divisões e inimizades, que nem os rudes e honestos homens da Beira-Baixa serão capazes de anular, porque a honestidade e a rectidão de carácter não bastam para apagar incêndios, nem para minorar crises de autoridade, nem para ressuscitar os mortos, nem para convencer ao regresso os que fazem falta (remendões de sapatos estragados) a um país carente de tudo - até do mais singelo bom-senso...
Importa desmistificar o 25 de Abril... por culpa dos que seguravam as rédeas do Poder, o povo português, generoso, equilibrado, trabalhador, imbuído de religiosidade, apegado a antiquíssimas tradições - abertos os diques da opressão - confundiu liberdade com licenciosidade; despolitizado, não sabia - não podia saber -, na sua transbordante alegria, que se transviava nos esconsos da indisciplina, da anarquia e do caos. Portanto, que se afastava da institucionalização da verdadeira democracia.
O histerismo colectivo apresentou aos maus observadores uma falsa imagem dos portugueses. Basta-nos pensar no relançamento de uma economia fraca, ainda mais debilitada pela alta de salários que deslumbrou as camadas laborais (e de que se aproveitaram os espertos, os menos aptos e os preguiçosos), no entanto sem a contrapartida de uma subida de produção). Males agravados pela redução do espaço territorial do País; pela pobreza dos solos; pela quase inexistência de um parque industrial, sobretudo competitivo a nível internacional; pela perda das matérias-primas do Ultramar e dos mercados desses territórios africanos. Produtividade, custos e salários estão intimamente ligados. Desprezar esta realidade é política de insensatos e de loucos.
Apontar nomes dos responsáveis? Para quê? Todos os conhecem... Talvez distinga, apenas, Melo Antunes, que ambicionou ser um filósofo social. É, quando muito, um capitão de Artilharia a ler obras político-sociais entre o arame farpado de São Salvador do Congo.
O 25 de Abril, cópia da Primavera de Praga, não foi, em rigor, uma revolução. Certo é que os oficiais que se abalançaram a derrubar o antigo regime tiveram a decisão e a força das armas para vencer. No entanto, logo, incompetentes e ingénuos, manipulados pelos estrategas comunistas, se deixaram despojar da "sua" revolução. Que admira, em consequência, que tenha aparecido, como de geração espontânea, os chamados progressistas, eufemismo que serviu de capa a desvairados e oportunistas? Que admira, em consequência, que, no mare magnum da nossa sonolência política, tenham surgido, como cogumelos após chuvada em terra fértil, tantas vítimas, muitos torturados, demasiados perseguidos, numerosos envelhecidos pela Polícia política da "deposta senhora"? A procissão dos antifascistas foi tão majestosa, que não pode ter sido verdadeira.
(...) Em Angola, só passadas 24 horas soubemos, em pormenor, o que acontecera na Metrópole.
(...) Em Luanda, como em Lisboa, os progressistas vieram à superfície com espantosa rapidez e abundância. Também lá, os antifascistas, em infindável cortejo, se apressaram a jungir ao carro do triunfo. Anteriormente, não deramos por eles...
Em Angola, como em Portugal, tombámos de humilhação em humilhação. A "revolta dos cravos" foi trampolim para monstruosas injustiças que, ainda hoje, irremediavelmente, fazem milhões de inocentes. É necessário dizer com clareza que o 25 de Abril gerou um rato feroz e insaciável, acarinhado pelos que se pavonearam na evidência nacional, chocalhando, na algibeira, os seus pequenos dinheiros de Judas. Uma revolta cuja efectivação é ponto de partida e nunca de chegada para a autêntica revolução criadora. Os traidores não souberam - e os comunistas não lho permitiram - colher os frutos apodrecidos pelo gelo da inumanidade.
Ali, como aqui, o "saneamento", a autogestão, o desrespeito pelo trabalho e pela propriedade alheios, os direitos inalienáveis individuais, a repartição das riquezas, as ocupações selvagens, as "nacionalizações", ficaram à mercê de meia-dúzia de mentecaptos e fanáticos, acolitados por um Governo sem governo. Os presos por delito comum, assassinos, vigaristas, vadios, liambistas, pelas artes mágicas de uma intrigante democracia, "viraram" presos políticos. Do delírio nos subterrâneos da criminalidade, da insensatez geral nasceram mártires. Exibiram-se mãos defeituosas pelo derrube de árvores no deserto (a angústia secara-nos o sentido do humor e não ríamos), como provas de torturas pidescas. Não foram poucos os criminosos elevados à categoria de heróis antifascistas.
Oito séculos de História foram pó, moídos nas lages da inconsciência e da má-fé. Desmobilizou-se o povo, em cantatas bombásticas, mas ocas para a prática da democracia. Momento a momento, o Programa do MFA se modificou e levedou por quiméricos arranjos (ou desarranjos) de gabinete, que não se estribavam nas tradições, nos costumes, nas aspirações dos portugueses. Ao invés, desprezando-os, prevaleceram o partidarismo desagregador, o desabrochar da inveja, o florescer da incongruência e do arrivismo, que os mesquinhos hortelãos do voto cultivaram como plantas, no jardim da desgraça. Sem que os atormentassem escrúpulos da consciência que não têm; sem se incomodarem a explicar o desrespeito pela primeira proclamação do MFA, em que se garantia a unidade interterritorial da Nação [para enganar os parvos, os tolos e os idiotas].
O processo, trasladado para o Ultramar, teve maior acuidade, de face mais sangrenta e cruel, porque o ódio racial, virulento e perverso, submergiu a obra comum. Campanhas miseráveis acirraram as etnias que se digladiaram como num circo romano. Empurraram-se os negros contra os brancos: que exploravam, que oprimiam, que escravizavam, que eram colonialistas, que eram neocolonialistas, que eram vendilhões às ordens do imperialismo (americano, inútil dizê-lo).
Aos que se arvoraram em paladinos da democracia que não instituíram em Portugal, nós, os ultramarinos, poderíamos ensinar-lhes e provar-lhes (o que não lhes conviria) que trabalhávamos, ombro a ombro, brancos e negros. Nem um Cunhal, nem um Soares, nem um Otelo, nem um Vasco, nem um Antunes, com as suas moradias e piscinas; e automóveis de luxo; e refeições sumptuosas; e clubes privativos; e honras de visitantes ilustres - pagos por nós - pensaram no convívio de raças que se estimavam e respeitavam.
Cunhais, Soares, Otelos, Vascos e Antunes, na comodidade das suas pantufas, negligentemente recostados em almofadas de impunidade, excederam as convenções internacionais e o que preconizava a ONU: o princípio da autodeterminação dos povos [salvo seja!], generosidade gratuita para eles e fatal para milhões de homens, mulheres e crianças. Que lhes custava a eles - alcandorados a postos cimeiros, de mesa farta e colchão convidativo - o sangue de uma revolução que não cumpriu nenhuma das suas promessas? Quem sabe se não aspiram ao Prémio Nobel da Paz? Escasseiam as divisas e as coroas suecas têm alta cotação na Bolsa...
Atendo-me aos factos, o 25 de Abril foi, paradoxalmente, a democracia de uma banda só - em Portugal e no Ultramar. Uma democracia trágica e grotesca para a Metrópole e para as colónias.
Em Angola, como nos demais territórios, o povo foi imolado a ideologias importadas. Sobrava aos angolanos génio para criarem uma força, para ganharem a batalha do futuro, já que os militares, ao executarem o golpe de Estado, sem inteligência e senso político que o continuasse, só reconheciam legitimidade, para quaisquer negociações, aos movimentos que lhes tinham imposto a lei das armas. E, desde logo, os autores do 25 de Abril se hipotecavam a um grupo disciplinado e mentalizado que lhes conhecia os mecanismos e os botões que devia pressionar.
Afirmava Mao Tsé-tung, repetindo os filósofos chineses, que, há mais de dois mil anos, pelas orelhas se apanham os coelhos e pelos ouvidos os homens. Os políticos "apanharam" os militares - pelos ouvidos (?) - na condução de um processo a que a "legalidade revolucionária" sancionou crimes inauditos, cobertos por uma democracia em que o povo não teve voz, salvo para aclamar os que se punham em bicos de pés, a fim de serem vistos e gritarem meias-verdades, que as hostes pró-comunistas ou sociais-imperialistas transformaram em mentiras de que se aproveitaram.
Os condicionalismos que inibiram os portugueses situavam-se muito longe da Metrópole. Tivesse Spínola lido atentamente Lenine, o seu procedimento seria outro. Para os russos, é vital exacerbar os nacionalismos no Mundo. Não o escondem: está publicado em livros que editaram.
Nesse contexto, Paris foi a cidade escolhida para, em Setembro de 1973, os partidos comunista e socialista portugueses talharem e retalharem o Ultramar. Se o moscovita Barreirinhas lutou por sua "dama", Mário Soares foi o cavalo de Tróia, como agente-motor da estratégia global do PC. Ambos são réus de alta-traição ao povo português. Eles e os seus satélites. Os dois partidos melhor organizados no País dispõem - e dispuseram antes do 25 de Abril - de fundos inesgotáveis para minguar Portugal até às dimensões de uma quinta abaixo da pontuação contemplada pela mais benevolente Reforma Agrária.
Turza Ferreira, presidente da Associação dos Agricultores de Angola, que o diga, como assistente anónimo, em Lusaka, de um encontro em que Mário Soares implorou a Samora Machel, "por amor de Deus", que aceitasse a independência de Moçambique. Samora Machel sabia as linhas com que se cosia. Não queria aceitar. Talvez o dorido queixume de Soares o comovesse. Cedeu. Possivelmente estará envergonhado - ou arrependido [nem isso!].
As "liberdades" do 25 de Abril originaram, em Angola, a constituição apressada de partidos políticos, como se fossem cardos ou as flores silvestres que pululam no território. Cerca de trinta partidos, à compita na angariação de adeptos, na organização de quadros, sem atenderem à consciencialização do povo. Mercado de ideias, lota de rebanhos, incoerentes e falhos de escrúpulos, que depois os movimentos de libertação aproveitariam para mobilizar as grandes massas, com vantagem e gáudio do MPLA.
Das três dezenas de partidos - nado-mortos - destaco a UNA (União Democrática Angolana), cujos elementos, principalmente da etnia negra, eram pacifistas e prosseguiam uma sociedade multirracial; e a FUA, não da década de cinquenta, mas "revista e actualizada", moldada às circunstâncias, tão maleável como o eng, Falcão seu eterno dirigente.
Em 4 de Maio, elementos do PPM (drs. Santos e Silva e Paulo de Castro, Francisco Roseira e eu), deslocaram-se a Lisboa, onde, no dia seguinte, mantiveram uma demorada entrevista com o general Spínola, sobre os problemas angolanos, nomeadamente o processo para a autodeterminação.
Spínola foi cortês, gentil e claro. Estava entusiasmado com o rumo da revolução. Afirmou-nos que a sua maior preocupação era encontrar um governador-geral de Angola para ele muito mais importante do que a escolha do Primeiro-Ministro do Governo português. Pediu-nos que o auxiliássemos a procurar alguém que, prestigioso, tivesse um coração africano. Deu-nos directrizes até à autodeterminação, garantiu-nos a via democrática e a ascultação do querer do povo, fossem quais fossem a sua etnia e os seus credos, para definirem o futuro de Angola. Impressionou-nos com o relato da sua acção na Guiné e do carinho que recebera das suas populações. Isso me levou a escrever um artigo intitulado "O Preço de um Homem", pois Spínola nos garantira de que os guinéus teriam perguntado ao Governo português qual o preço que exigiria para o general continuar na Guiné. Conversou connosco, deu-nos alento e acabou por nos solicitar que colaborássemos o mais possível na concretização desse ambicionado fim que seria a autonomia progressiva dos territórios ultramarinos.
Nem de perto nem de longe nos podia passar pela cabeça que o encontro com Spínola não teria resultados práticos, que a sina de Angola viria a ser desgraçadamente oposta às realidades e aos desejos da população.
Brotaram, como plantas daninhas, as tergiversações na condução daquilo que, em alta grita, se chamava a descolonização.
Nunca aceitei e continuo a não aceitar a palavra descolonização. Não aceito, porque a palavra é já de si vergonhosa e pejorativa para as próprias populações autóctones, mas principalmente para os mais evoluídos. Combati, logo de princípio, as directivas que nos eram indicadas para atingir a autonomia, eivada de desvios e alçapões.
Regressados a Angola, começámos imediatamente uma propaganda de tal ordem, que nos apelidaram do partido do bom-senso. Quer dizer, lutávamos e efectuávamos sessões de esclarecimento, convictos de que a via democrática seria realizada e toda a população teria o direito de optar por aquilo que melhor servisse os seus interesses e principalmente servisse o progresso, a paz e o trabalho em Angola [o que vos valeu de muito! Santa ingenuidade!]».
Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).
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