sábado, 5 de junho de 2021

Goa, o jogo de bastidores, a traição.

 


Como sempre mais uma facada nas costas por parte dos nossos "amigos", desta vez os amigos americanos...

«Lisboa, 31 de Maio [de 1962] - Demorada conversa com Jorge Jardim, chegado de Goa. Súmula do que me disse: há em Goa um espírito de resistência ao ocupante; entre a oficialidade portuguesa que esteve em Goa, é hostil ao governo o estado de espírito; entre a população goesa está criado um sebastianismo que anseia por um regresso dos portugueses; os oficiais superiores indianos confessaram o seu espanto perante o carácter não-indiano de Goa e o seu elevado grau de autonomia; e o Patriarca José Alvernaz recusou-se a reconhecer a ocupação indiana, mantendo hasteada no seu paço a bandeira portuguesa e negando-se a cumprimentar as autoridades indianas.

(...) Lisboa, 6 de Março [de 1966] - Domingo. Sol grande, reflectindo no rio e na ponte em construção uma luminosidade quente. Percorri um grosso volume: "Survey of International Affairs", referente a 1961. Debrucei-me sobre o capítulo relativo à política externa indiana e à anexação de Goa. Assunto é tratado de forma desenvolvida, e apresentado sem grande simpatia pelo ponto de vista português; há omissões, e importantes; mas não se revela tão-pouco simpatia pelo ponto de vista indiano. Mais uma vez se suscita no meu espírito esta pergunta: qual foi exactamente o papel dos Estados Unidos no caso de Goa? Deram a luz verde a Nehru, sem dúvida alguma, porque podiam ter travado o indiano se o houvessem querido, e isso sem ofensa de interesses americanos de monta. Mas por que procederam assim? O seu anticolonialismo, o seu fascínio pela Índia, o seu desejo de assegurar o mercado indiano - tudo isto conduziu à atitude assumida por Washington. Passados quase cinco anos, porém, penso que se deveria ajuntar uma outra razão: a Kennedy terá ocorrido que, com a perda de Goa, cairia o governo de Salazar em Lisboa: e como Salazar, na questão de África e na base dos Açores, já se mostrara um aliado muito duro, haverá Kennedy também julgado que daquela maneira se desembaraçaria de um sujeito incómodo. Falhara o golpe de Botelho Moniz de Abril de 1961, inteiramente pró-americano, senão inspirado pelos Estados Unidos; e o que não se conseguira com uma revolução interna, que falhara, poderia acaso obter-se com um desastre externo. Goa era ponto ideal para o tentar. Será isto? De momento, nada disto se pode provar (...).

(...) Lisboa, 10 de Abril [de 1966] - (...) Parece que há em Salazar uma tendência inata que o leva a não ver o mal, a não acreditar no pior, e não prever actos imorais ou torpes dos outros. Lembro-me de que, perante os preparativos da agressão contra Goa, Salazar nunca acreditou que Nehru avançasse: só viu essa realidade dois ou três dias antes de o facto se produzir. E em princípio Salazar tinha razão: na lógica pacifista de Nehru, foi um erro a anexação violenta de Goa, como aliás o admitiu depois.

(...) Lisboa, 19 de Janeiro [de 1967] - Fui de manhã à Assembleia Nacional fazer longa exposição aos deputados, com um longo período de respostas. Sensacional: Goa, Damão e Diu rejeitaram, por substancial maioria, a integração na União Indiana. E disse-se, e ainda se diz, que não havia portuguesismo em Goa.

(...) Lisboa, 13 de Abril [de 1968] - Levo ao chefe do governo o II volume do Livro Branco sobre Goa. Ficou satisfeito sem ambages. Goa permanece, de todas as questões que tem tratado, nos seus quarenta anos de governo, a que mais tocou e afectou, e que mais o feriu, e a chaga mantém-se, como mortificação constante. Salazar folheou o volume, com interesse e pormenor, e releu imediatamente muitos documentos de há anos. Incuráveis permanecem o desespero e a angústia que sente por não se haverem batido as nossas tropas. "Quanto à campanha diplomática", e Salazar lançou-se numa evocação que ainda o agita, "fomos brilhantes, fomos primorosos, e não se podia ter trabalhado mais nem trabalhado melhor. Mas o governo aqui tem uma culpa gravíssima, uma responsabilidade histórica: a de não ter substituído a tempo o general Vassalo e Silva, reconhecendo que não estava à altura dos seus antepassados, um Albuquerque, um D. João de Castro". Salazar repassa de mal contida emoção as suas palavras, e revive os momentos dramáticos de há seis e sete anos: está sendo obviamente sincero e leal perante si mesmo. Continua: "O ministério do Ultramar devia ter visto isso, e o ministério do Exército devia ter avisado o Ultramar. Com meses de antecedência soubemos que Goa ia ser invadida. Tivemos imenso tempo para substituir aquele homem, e mandar para Goa alguém que soubesse bater-se e morrer se necessário. Assim foi uma desgraça, e o Vassalo e Silva cometeu um crime histórico. Quando mandei o telegrama impondo o sacrifício supremo, pensei que me dirigia a um homem da estirpe dos antigos. Mas não: era um simples, um tipo que gostava de passar a vida a indicar como se faziam telhados. Não estava à altura do meu telegrama". Depois, Salazar torna-se sardónico: "Mas que quer o senhor? A Defesa escolhe os nossos guerreiros pela escala de antiguidade, como se fazer a guerra fosse uma simples actividade burocrática ou académica! Assim nada feito". E remata com saudade, desespero, amargura: "E eu estou convencido de que se as nossas tropas tivessem resistido oito ou dez dias, ainda hoje tínhamos Goa". Ao dizer tudo isto - e sou rigoroso nos termos - Salazar tinha o rosto transtornado, os olhos embaciados e vidrados, a voz quase roufenha. Será possível que consiga isto por simples acto de vontade, e estivesse a representar? Para quê? Para quem?».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).

6 comentários:

  1. Cometeu o erro de subestimar o aparelho militar que o reino unido deixou na India. Sabia que Goa era indefensável, se queria uma resistência de 8 dias para a comunidade internacional actuar, tinha que ter preparado o território para resistir. Estavam lá 3500 soldados, mal armados...Foi realmente trágico

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  2. Guilherme de Souza-Girão6 de junho de 2021 às 00:49

    Portugal foi brilhante no ponto de vista jurídico no Tribunal Internacional da Haia, com o Prof Galvão Teles, o Embaixador na Haia, Fernandes da Fonseca, e o Assistente de Direito de Coimbra, Vaz Pinto.
    Mas falhou nas realidades, com a obsessão de que o Império era eterno.
    E nem se apercebeu que a invasão se daria por uma força enorme e nem sei quantas vezes mais poderosa que as nossas.
    A teimosia de Salazar

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  3. Meses antes da invasão iminente tinhamos que preparar tropas com mentalidade para resistir mais tempo.
    Mas temos que ter noção que seria uma carnificina e sem a garantia de preservar Goa Damão e Diu.
    Infelizmente com a comunidade Internacional de interesses poderosos contra nós.

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  4. Meses antes da invasão iminente tinhamos que preparar tropas com mentalidade para resistir mais tempo.
    Mas temos que ter noção que seria uma carnificina e sem a garantia de preservar Goa Damão e Diu.
    Infelizmente com a comunidade Internacional de interesses poderosos contra nós.

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  5. Estive na India em 2010, 1 ano de projecto, com muitos Indianos da provincia de Goa, é com orgulho que deparei com alguns dessa zona com nomes Portugueses, e com um dialecto cheio de palavras portuguesas, deixamos saudades por onde passamos...

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  6. Salazar que nunca saiu de S. BENTO PARA CONHECER A REALIDADE DAS SITUAÇÕES NAS SUAS EX COLONIAS, SEMPRE EXIGIU ENORMES SACRIFIÍCIOS ÁS TROPAS QUE LÁ MANTEVE SEM O MINIMO DE CONDIÇÕES, ESQUECENDO O PODERIO CADA VEZ MAIOR DAS FORÇAS OPOSITORAS, NUNCA RECONHECEU QUE,UMA REVOLÇÃO ERA A UNICA SOLUÇÃO PARA UMA GUERRA COM TRÊS FRENTES QUE TEIMOSAMENTE ALIMENTOU DURANTE MAIS DE 13 ANOS!!!

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