quinta-feira, 18 de julho de 2024

O Elogio da Ignorância.




«Infelizmente, não há fome de saber como há fome de alimentos, e ao contrário do esfomeado que até ao último alento ainda procura a nutrição, o ignorante contenta-se a si mesmo com a sua ignorância, revê-se nela, ostenta-a vazio e orgulhoso e impõe-na a todo o mundo. Transitando imediatamente do estado natural em que nasce para o estado teocrático em que vive, o homem está já arriscado, se não já condenado, a não mais encontrar motivo para abandonar a ignorância.

Com o repúdio do saber, repudia-se a verdade, pois o saber é sempre saber a verdade. E perdida a relação com a verdade, perde-se a relação com todos os princípios. Impedido do exercício da liberdade e do reconhecimento da justiça, o homem ainda pode manter-se incólume na individuação que directamente radica no absoluto. Mas perdida a verdade, nada se mantém: nem “as mais elevadas e nobres propriedades do homem”, nem as virtudes éticas, nem a capacidade de pensar. Como na desolação de um campo que as fúrias saturninas devastaram, tudo são vias abertas aos “vícios do homem”, de que fala Malthus, à “sedição e ao crime”, de que fala Aristóteles, à “tirania dos homens demasiado envilecidos”, que é a teocracia sem Deus. E os vestígios que ainda restam do direito, apenas estarão sendo, agora, os contentores da catástrofe final.

Assim atingirá o homem o abismo até onde o levaram uma certa concepção da vontade, que negou o primado do pensamento, uma certa concepção da matéria, que repudiou a transcendência, e uma certa concepção da verdade, que negou a realidade do espírito.»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).

Refutação do colectivismo.




«A ausência de regras formais absolutas na moral colectivista não significa decerto que não haja hábitos individuais que uma comunidade colectivista encorajará e outros que desencorajará. E mostrará até muito maior interesse do que uma sociedade individualista pelos hábitos de vida dos indivíduos. Para se ser membro útil de uma sociedade colectivista é necessário possuir qualidades bem definidas que devem fortalecer-se por uma prática constante. Se lhes chamamos “hábitos úteis” e não as podemos definir como “virtudes morais” é porque o indivíduo nunca os poderá tomar como regras que coloca acima das ordens estritas que recebe nem deixar que eles se tornem um obstáculo à realização de qualquer objectivo que a sua comunidade se proponha. Apenas servem, portanto, para preencher os intervalos entre o cumprimento das ordens recebidas ou entre os esforços para alcançar as finalidades determinadas e nunca podem justificar um conflito com a vontade da autoridade superior.

A diferença entre as virtudes que num sistema colectivista continuarão a ser bem vistas e aquelas que terão de desaparecer fica bem ilustrada com a comparação entre as virtudes que até os seus piores inimigos reconhecem aos alemães, ou, antes, aos “prussianos típicos”, e aquelas que geralmente se lhes negam e são as que os ingleses justificadamente se orgulham de possuir. Poucas pessoas poderão negar que os alemães são, de um modo geral, trabalhadores disciplinados, íntegros até ao fanatismo e enérgicos até à crueldade, conscienciosos e responsáveis em todas as tarefas que empreendem, possuidores de um forte sentido da ordem, do dever e da obediência à autoridade e se mostram muitas vezes dispostos a fazer sacrifícios pessoais e correrem sérios perigos físicos. Tais predicados fizeram dos alemães um instrumento eficaz para o desempenho das tarefas que lhes eram destinadas e assim foram cuidadosamente educados no velho estado prussiano e no novo Reich dominado pelos prussianos. O que geralmente se nega ao alemão típico são as virtudes individualistas da tolerância e do respeito pelos outros e suas opiniões, a independência de espírito, a rectidão de carácter e a coragem de defender as suas convicções pessoais diante de um superior, virtude que os alemães, conscientes de as não possuírem, designam por Zivilcourage; e ainda a consideração pelos fracos e enfermos e aquele saudável desdém pelo poder que só uma velha tradição sabe criar. Faltam-lhes também aquelas pequenas qualidades, mas bem importantes, que facilitam as relações entre os homens numa sociedade livre: a amabilidade, o sentido do humor, a modéstia pessoal, o respeito pela intimidade dos outros e a confiança nas boas intenções dos que lhes são próximos.

Tais virtudes, ao mesmo tempo que individualistas, são também eminentemente sociais, virtudes que amenizam o convívio social e tornam menos necessário, e mais difícil de impor, o controlo vindo de cima. Virtudes que só florescem onde predomina o tipo da sociedade individualista ou comercial, não existem onde prevalece o tipo da sociedade colectivista ou militarista, diferença que é, ou era, tão visível entre as diversas regiões da Alemanha como a existente agora entre as concepções que governam toda a Alemanha e aquelas que são características do mundo ocidental. Até há pouco tempo, pelos menos nas regiões alemãs que mais influenciadas foram pelas forças civilizadoras do comércio – as velhas cidades comerciais do sul e oeste e as da Liga Hanseática –, as concepções morais eram muito mais semelhantes às dos povos ocidentais do que aquelas que hoje predominam em toda a Alemanha.

Seria todavia profundamente injusto considerar as massas desse povo dominado pelo totalitarismo como desprovidas de sentido ético só porque dão o seu apoio incondicional a um sistema que nos aparece como a negação da maior parte dos valores morais. Para a maioria dos alemães, o contrário é que, provavelmente, será verdadeiro: a intensidade das emoções morais que estão por detrás de um movimento como o nazismo ou o comunismo só pode talvez ser comparável às dos grandes movimentos religiosos da história. Uma vez que se aceite que o indivíduo é apenas um instrumento destinado a servir as finalidades determinadas por uma entidade superior que se apresenta com o nome de sociedade ou nação, grande parte daquelas características dos regimes totalitários que nos horrorizam, aparecem como um corolário inevitável. Do ponto de vista colectivista, a intolerância e supressão brutal dos dissidentes, o total desprezo pela vida e pela felicidade dos indivíduos são consequências fundamentais e iniludíveis daquela premissa. O colectivista é capaz de reconhecer o que acabamos de mostrar mas não deixará de, ao mesmo tempo, afirmar que o seu sistema é superior àquele em que os interesses, a que chama “egoístas”, dos indivíduos podem impedir a completa realização dos fins que a comunidade se propôs. Quando os filósofos alemães repetidamente nos apresentam como sendo em si mesma imoral a luta pela felicidade individual e como digno de todos os louvores o cumprimento de um dever que nos é imposto, fazem-no com total sinceridade embora isso seja incompreensível para quem formou a sua personalidade segundo diferentes concepções.

Sempre que há um fim comum que ultrapassa tudo e tudo domina, deixa de haver lugar para quaisquer valores éticos ou quaisquer regras de carácter geral. Até certo ponto, todos nós temos a experiência disso quando, como agora acontece, nos encontramos em guerra. Mas até quando assim nos encontramos em guerra, e correndo aqui, em Inglaterra, os maiores perigos, a experiência é apenas uma aproximação ainda distante do totalitarismo pois apenas uma reduzida parte dos nossos valores foram sacrificados ao serviço da finalidade única. Sempre que umas tantas finalidades específicas dominem a totalidade da sociedade, é inevitável que a crueldade se torne em certos casos um dever, que se considerem meras questões de expediente coisas que revoltam todos os nossos sentimentos como fuzilarem-se reféns e abaterem-se velhos e doentes, que desalojar e desterrar pessoas constitua um recurso da política que toda a gente, à excepção das vítimas, aprova, que se tomem a sério sugestões como a do “serviço militar obrigatório com fins educativos para as mulheres”. Aos olhos do colectivista, actos como estes servem sempre uma finalidade que, só por si, os justifica pois não há quaisquer direitos ou valores do indivíduo que possam constituir obstáculos à realização do objectivo comum da sociedade.

Se para as “massas” de cidadãos dos Estados totalitários é a dedicação desinteressada por um ideal, seja-nos ele embora repugnante, que as leva a aprovar e até a executar actos como esses, o mesmo se não poderá dizer dos homens que orientam tal política. Para ser um colaborador útil de um governo totalitarista, não basta que um homem esteja preparado para aceitar as justificações mais artificiosas das acções mais vis; é preciso que também esteja activisticamente disposto para quebrar todas as regras morais a que sempre obedeceu caso isso seja necessário ao fim que é imposto. E como é o chefe supremo quem determina sozinho todos os fins, os seus instrumentos, os homens que são seus instrumentos, não podem ter convicções morais próprias. Acima de tudo, devem eles entregar-se sem reservas à pessoa do chefe; e para isso, é essencial que sejam totalmente destituídos de princípios e literalmente capazes de tudo. Não podem ter ideais que visem realizar, nem ideias sobre o que é certo ou errado que possam interferir nas determinações do chefe. Assim se vê como, nos lugares de poder, pouco há que possa atrair aqueles que tenham ainda as convicções morais que noutros tempos guiaram os povos europeus, poucas são as compensações para os aspectos desagradáveis das tarefas que é preciso cumprir, poucas oportunidades existem para a realização das ambições mais idealistas, poucas recompensas se oferecem pelos riscos que, sem dúvida, se correm e pelo sacrifício da maior parte dos prazeres da vida privada e da independência pessoal que os cargos de responsabilidade sempre implicam. Os únicos gostos satisfeitos são o gosto pelo poder em si, o prazer de ser obedecido e o orgulho de fazer parte de uma máquina eficaz e imensamente poderosa que assegura sempre um lugar na primeira fila.

Para os homens bons – segundo os nossos padrões – pouca sedução podem pois exercer os lugares de chefia na máquina totalitária. Mas aos homens cruéis e sem escrúpulos oferece ela óptimas oportunidades. Haverá sempre tarefas, em si mesmas repugnantemente vis, mas cuja execução é posta ao serviço de um fim mais elevado e que exigem a mesma perícia e eficácia de quaisquer outras. E como quem estiver ainda ligado à moral tradicional terá repugnância em as aceitar, quem se prontificar a fazê-lo tem assegurado o caminho da promoção e do poder. São inúmeras as situações oferecidas por uma sociedade totalitária que exigem a prática da crueldade e da intimidação, da mentira propositada e da espionagem ou vigilância denunciadora. Nem a Gestapo, nem a administração de um campo de concentração, nem o Ministério da Propaganda, nem os S. A. e os S. S ou seus equivalentes italianos e russos, são lugares adequados à expressão de sentimentos humanitários. São essas, todavia, as instituições que se encontram na estrada que conduz aos lugares mais elevados nos Estados totalitários.»

Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).


O Elogio da Ignorância.

«Infelizmente, não há fome de saber como há fome de alimentos, e ao contrário do esfomeado que até ao último alento ainda procura a nutrição...