segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Portugueses...

 


Uma bela descrição daquilo que somos, um texto longo mas bem elucidativo daquilo que nos tornou grandes.

«Tem-se usado e abusado da expressão "tolerância" para marcar e demarcar a atitude dos portugueses primeiros em relação aos restantes povos da Comunidade, no sentido de justificar a presença do povo que deu movimento à missão comum nas terras ultramarinas. Aceita-se, é claro, que foram esses portugueses os autores do movimento em que frutificou a missão, mas para que ela tenha no futuro a validade de uma presença nobre é preciso compreender que não foram eles só que lhe deram expressão. A expressão é comum, porque a missão não constituiu nem constitui dádiva unilateral aos que primeiro se chamaram portugueses. Se assim não fora, seria vazia a expressão Raça e periclitantes as forças que convergem no futuro, equiparadas. Este é exactamente um dos argumentos que mais valida a Comunidade, pois de contrário não seria possível sair do atrofiante colonialismo em que um equívoco de alguns séculos lançou o homem encontrado além. Mas porque de missão se tratava e porque os que primeiro usaram tal nome de portugueses não eram todos os que poderiam usá-lo, não ficaram sufocados nos novos que haveriam de sê-lo para sempre as ansiedades fecundas que se multiplicam em esforços cívicos futurantes. O equívoco foi por isso rectificado e a missão recomeçada em plenitude.


Colocados, pois, em igualdade, por missão que a filosofia explicará, todos os povos da Comunidade, como plenos dessa mesma Comunidade, não podem aceitar existir e viver nela senão no mesmo nível. Consentir que um dos povos, neste caso o metropolitano, conceda ter permitido a apreensão comunitária por tolerância, é aceitar o baixo sentido pejorativo dessa expressão e aniquilar todas as possibilidades de uma digna igualdade entre os grupos rácicos que constituem Portugal.

O termo tolerante, usado para justificar ou definir a atitude dos portugueses primeiros em relação aos povos do Ultramar é contrário à noção do Direito e à função de todos. Na Comunidade Portuguesa não há tolerados, mas sim povos e indivíduos que a despeito de diferenças civilizacionais ocupam lugares coordenantes na gesta nacional. O emprego de tal expressão pejorativa só pode partir de quem não tenha sido capaz de entender o movimento e acção que consubstanciam o empréstimo de pensamento, alma, sangue e força que todos instintivamente fazem a Portugal, por exigência de Portugal, para que Pátria seja de povos espalhados por quatro continentes. É que Portugal, que começou por ser apenas o território europeu dos portugueses primeiros, tornou-se síntese evolutiva e mítica de todos aonde aqueles chegaram. Portugal não é já somente os dois palmos de Europa que germinaram no coração de D. Teresa. Aonde quer que os portugueses primeiros chegaram, aí também encontraram, em ansiedade secular, pedaços de Portugal esperado.


Os portugueses são o povo que habita e tem habitado Portugal, ou seja a parte europeia da Comunidade Portuguesa. Mas o Português, quer dizer, o Homem Português, o arquétipo, não é só esse, ou, talvez melhor ainda, não é nunca só esse. O Português é o Homem ideal, o que se conhece como resultante de Pátria Portuguesa una e indivisível e aquele que tem em si, potenciados, os imperativos desta concepção. Não pode recusar-se a forma genérica de portugueses para todos os grupos, uma vez que na aparência histórica e cronológica foram os portugueses os autores em missão do abraço universalista. Mas é indispensável a destrinça, porque sem isso não poderá haver personificação e responsabilização de cada grupo, e não é na amálgama que se fortalecem as razões superiores que podem enformar o arquétipo dos portugueses, isto é, o Português. O Português não tem, pois, forma antropológica. O Português é o ideal, dos portugueses primeiros e dos outros.

Se assim não pudesse ser tornar-se-ia conflituosa a existência nacional de tantas raças, e dar-se-ia justificada cisão à medida que cada povo desejasse o abrigo de uma pátria futurante. E a morada pluri-racial perderia sentido, quando, afinal, é ela a única que pode dar explicação a uma Comunidade. Os elementos ou indivíduos de povos diferentes podem fundir-se em cruzamentos sucessivos, e daí resultar o dessoramento de alguns grupos e o aparecimento de novos padrões humanos. Mas tal se não concebe como norma política de sujeitar uns grupos a outros, uma vez que os cruzamentos tendem, como seu último fim, a uma completa aglutinação. Ora os cruzamentos, quando conduzidos, portanto intensificados por um plano alheio à vontade individual dos que neles interferem perdem a grandeza que deve coroar o mais importante dos actos humanos.


Não sendo, pois, de admitir uma aglutinação forçada, só pode prevalecer o desejo de respeitar a estrutura de cada uma das raças. Evidentemente que podem séculos sobre séculos de convívio e vizinhança provocar o dessoramento de grupos étnicos coexistentes e dar como resultante novos tipos físicos, mentais e morais e, portanto, também, um novo tipo de civilização em que o melhor de cada grupo prevalece e fica como padrão. Mas prever o que deve prevalecer é concorrer para um erro gravíssimo, porque o prever não é mais do que tentar prever, e não é possível saber-se ao certo, num determinado presente, quais são os valores relativos que, potenciados, venham a ser infalivelmente os valores convenientes. Esses valores convenientes hão-de surgir do choque e do convívio pacífico.

Admitir como ponto certo a proeminência dos metropolitanos, que em si próprios são já a resultante de um exercício de choque e de convívio, é partir de uma premissa falsa. Nos espaços contínuos, tal é possível e facilitado por um natural emparedamento. Mas nos espaços descontínuos, não. Assim, o que se dará como se deu na metrópole entre os invasores bárbaros e não bárbaros, dar-se-á nas regiões ultramarinas, mas entre vizinhos, ou seja entre os grupos étnicos situados em regiões contínuas. E como não é de admitir a prepotência violenta, dada a participação levada a efeito no período colonial, e a posterior vigilância dos poderes constituídos, verificar-se-á, com certeza, do choque e do convívio pacífico, a afirmação dos tais valores convenientes em novos grupos resultantes.

A mestiçagem, comummente o cruzamento entre o homem metropolitano e a mulher africana, não pode ficar apenas neste entendimento. Tomará o aspecto voluntário e nobre de busca individual emotiva entre muitos outros grupos étnicos e fornecerá novos padrões rácicos.


Os portugueses jamais, por si sós, poderiam produzir o Português tipo ideal universalista, mas empreenderam a missão de o buscar dando-o. Os portugueses e os outros povos de si distantes que estavam cercados de segredos e de mistério deram de si mesmos pedaços de alma e de sangue para a formação ideal do Português.

A diferença entre uns e outros está apenas em que nos portugueses havia movimento e nos outros passividade, mas um e outros se completam na contribuição dada ao Português. Quer dizer que não é possível admitir-se, em face da conclusão futurante, o primado dos metropolitanos. Eles apenas foram os primeiros a iniciar uma acção, mas o alto significado de tal gesto só permanecerá se renunciarem a qualquer disputa de posições, pois não se trata de ordená-las, mas de conjugá-las. A permanência de Portugal no mundo não depende do que os portugueses fizerem, mas sim do comportamento de todos os povos do globo que portugueses são. Aceitar o contrário, é aceitar cindindo. Ora aceitar assim é revelar incompreensão. Mas se aceitar assim é incompreender, pior será actuar assim, porque isso será mostrar e demonstrar haver de facto uma dificuldade conjugadora interna, ou seja uma dificuldade contra a unidade necessária. Todos os povos portugueses têm de capacitar-se para dispender esforços contínuos, identificados com as suas aspirações comuns, além de realizarem o exercício que lhes é devido como grupos étnicos individualizados. Assim, cada grupo étnico garante-se no exercício individual; e a Comunidade garante-se no exercício colectivo.

Na compreensão da missão de todos reforça-se o sentido comunitário, tão forte que liberta sem desprender, sinal que coroa a insistência com que os portugueses primeiros sempre se desprenderam da Europa, o que bem indica que Portugal não era europeu, apesar da correspondência de níveis civilizacionais com os demais países da Europa. Tal facto serve para demonstrar não serem os tipos ou níveis civilizacionais por si só justificativos de alianças. Os vários grupos étnicos portugueses dos continentes exóticos não estão mais próximos dos seus vizinhos que dos portugueses metropolitanos, porque são principalmente as aspirações que aproximam os homens e não os seus estados civilizacionais. Os portugueses primeiros, quando chegaram aos pontos geográficos colocados além-mar fundamentaram a existência de um novo Homem, concreto por abstracção, futurante por não ter passado, de vivência por nunca ter existido, ideal por ser completo. É esse o Português, ou seja o arquétipo.


A compreensão deste fenómeno por parte de todos os compartimentos rácicos portugueses em todos criará a compreensão do consentimento coexistente que será o fundamento da Comunidade. A Comunidade será a única forma digna de coexistência, porque ela não implica para uns sujeição, mas pelo contrário a todos liberta da sujeição. O sentido actual de assimilação deixará de ter de discutir-se, porque a coexistência não implica assimilação; o sentido incompleto de integração deixará também de interessar, porque outro caminho mais amplo se encontrou, o da Comunidade, mais livre e mais nobre. Na Comunidade, ninguém ou nenhum povo terá de sujeitar-se ou alterar-se. Basta saber caminhar de mãos dadas.

Considero que houve um equívoco entre missão e missionar. E por isso a missionação avulta na acção colonizadora e em certos aspectos e regiões ocupa o único lugar no historial da acção dos portugueses. Não se trata de um erro, mas de uma insuficiência, e, assim, em vez de ter-se actuado também intelectualmente, como cumpria à amplitude de uma missão, evangelizou-se, como finalidade da missionação. Para muitos, colonizar queria exactamente ou substancialmente dizer evangelizar, e os autóctones, postos diante desse único caminho pelos que invadiram as suas regiões edénicas, eram convidados para um novo modo de buscar a Deus. Mas ficava de lado, como coisa menor, o ensinamento e a aprendizagem de processo necessário à confraternização dos homens. O desenvolvimento de uma consciência cívica, o interesse por tudo aquilo que compõe a vida, a percepção verdadeira do cosmos dominado no futuro pelo homem, isso, não podia ser entendido por um homem a quem não fora dado encontrar-se. E não havia, aparentemente, o entendimento do interesse em que ele se encontrasse, porque, de quantos o foram buscar e despertar dos seus fundos silêncios quase todos estavam alheios da missão de que iam investidos.

A missionação, realizando-se como se realizou, em potência e extensão, salvou os Descobrimentos e Conquistas do completo malogro, pois fez da sua missão a missão de Portugal, e invocou-o insistentemente como pátria terrena daqueles a quem oferecia uma pátria celestial. A Administração aproveitou na totalidade o chão que a Igreja preparou e passou a entender que deveria impulsionar a missionação, tornando-a como sua missão, para impor a soberania. Mas o que de mais alto se esperava não era apenas impor soberania. E não é ainda.


Com este equívoco foi possível equacionar menos do que se devia a função da conjugação de um pensamento e também considerar menos do que convinha os vários aspectos intrínsecos dos autóctones de cada grupo, incluído o sentido religioso particular de cada um. Não foi possível, por isso, levar suficientemente em conta que no interior de cada homem há o seu anterior, isto é, o ancestral, a linha infinita mas nunca indefinida dos avoengos que nele são garantia de autenticidade.

O homem brutalmente despegado dos hábitos dos seus maiores e esquecido da sua religião primitiva antes de entendê-la no possível, fica um ser não-cósmico ou anti-cósmico e a sua individualidade demorará a personalizar-se. O indivíduo que não é pessoa é um desentendido e não poderá lutar por sê-lo com o necessário vigor, porque tem dificuldade em permanecer com antecedência no seu destino. A missão dos portugueses primeiros junto aos novos povos portugueses era exactamente fazer-lhes entender o sentido cósmico do homem e da vida na antecedência de Deus. Essa é a razão que explica, decorridos cinco séculos de colonização, não estarem esses povos em condições de dar uma colaboração mais activa a si próprios e aos outros.

Evidentemente que este equívoco não foi exclusivo dos portugueses primeiros. Os outros povos europeus que também colonizadores se tornaram não foram capazes de fazer melhor. Fizeram sem dúvida pior. Mas os primeiros navegadores e conquistadores tinham plena consciência da missão que os levava a romper o mistério dos mares. Quase pode aceitar-se que o entendimento da missão cessou quando os propósitos de um encontro universal de todos os homens deixaram de ser exclusivamente lusíadas para ser, como depois foram, europeus».

Fernando Sylvan («O Ideal Português no Mundo», in O que é o ideal português). 

domingo, 26 de dezembro de 2021

Contra o socialismo...

 

«Os portugueses já têm todos os elementos para não se deixarem iludir. O nó do problema é a propriedade. O nó do problema, o gatilho da pistola, o que une e divide as forças que neste momento e nestes últimos decénios, em Portugal e no mundo, disputam o poder político. Do que se trata, tudo de que se trata, é de decidir entre o reconhecimento da propriedade e a abolição da propriedade.
Socialismo e capitalismo, colectivização, estatização, nacionalização, socialização, autogestão, cooperativismo, iniciativa privada, empresa privada, etc., tudo isso são palavras que, em si mesmas, pouco ou nenhum sentido têm e que, verdadeiramente, só designam uma de duas coisas: ou se quer continuar a reconhecer a propriedade ou se quer a abolição da propriedade.
De um lado e do outro há, todavia, má consciência. Má consciência que se revela no receio de empregar a palavra propriedade. Os que, de um lado, querem que se reconheça a propriedade, receando-se esmagados pelo socialismo triunfalista que não sabem refutar, substituem a palavra certa por eufemismos como "iniciativa privada". Os que, do outro lado, querem abolir a propriedade, vendo-se incapazes de pensar essa abolição em todas as suas consequências, substituem a palavra certa por outros eufemismos: colectivização, estatização, etc. No meio, ficam ainda os mais hesitantes e impotentes, misturando, em suas estreitas cabeças, todo o género de combinações inviáveis na esperança de conciliarem a existência "reaccionária" da propriedade com a abolição "progressista" da propriedade: são os que, sempre sem dizerem a palavra própria, falam do socialismo que ainda não é comunismo e se entontecem a fazer institutos António Sérgio para explicarem a si mesmos o que sejam coisas como colectivização, cooperativismo, autogestão, etc.
Com tantos e tais receios, com tantas e tais combinações vazias, com tantas e tais palavras sem sentido, nunca mais nos entendemos. Deixem-se, pois, de recorrer a palavras que pouco ou nada significam, deixem-se de utilizar eufemismos enganadores e hipócritas, deixem-se de ser gente que não sabe o que diz e quer dizer o que não sabe. Encarem a realidade de frente, encarem-se a vós mesmos de frente e empreguem as palavras próprias. Não tenham medo de dizer que tudo consiste em ser a favor ou contra a propriedade.


[...] A abolição da propriedade é o que sempre definiu o antiquíssimo comunismo. Poderão os comunistas falar de meios de produção, de lutas de classes, de proletariado escravizado, de burgueses e de mais-valia. Poderão até recorrer a metáforas de origem homossexual como a da "exploração do homem pelo homem". Do que exclusivamente se trata é de abolir a propriedade. Abolida a propriedade, o comunismo atinge a única finalidade que lhe é própria, e que é também, simultaneamente, o seu ponto de partida. Ponto de partida para quê, para onde, ninguém sabe. O seu patrono moderno, Karl Marx, encolerizava-se quando lhe perguntavam o que se iria fazer depois de abolida a propriedade. Não sabia. Encolerizava-se e respondia: "Eu não faço receitas de cozinha".

É fácil organizar o combate pela abolição da propriedade. Ao longo da história, muitas vezes o combate se travou e muitas vezes, até, saiu vitorioso: na Esparta de Licurgo, na Morávia dos anabaptistas, no Paraguai dos Jesuítas, na Rússia dos bolchevistas... Mas, abolida a propriedade, os homens continuam a estar no mundo; continua a haver, de um lado, os homens e, de outro lado, as coisas de que é feito o mundo. Os homens não podem viver sem o mundo e a existência no mundo é uma existência de relação com as coisas. A propriedade é, precisamente, esta relação. Abolida a propriedade, que acontece? Deixa de haver homens? Impossível. Passam os homens a viver separados do mundo? Não podem. Qual a receita que Marx se recusava a fazer? A única que os diversos cozinheiros conseguiram fazer - e a única que os comunistas, antes e depois de Marx conseguiram fazer - foi a de passarem para o Estado a posse (com a qual confundem a propriedade) das coisas. Ora o próprio Marx já havia prevenido que essa não era a solução, e claramente afirmou que transferir a propriedade para o Estado seria um mal pior do que manter a propriedade nos indivíduos. Com efeito, os resultados da estatização sempre estiveram longe de ser risonhos: massacre de milhões de homens, escravidão generalizada e até instituída, etc. E se não se pode dizer que, em rigor, tenham sido uma "estatização da propriedade" todos os diversos regimes comunistas que houve ao longo da história - alguns deles bem mais duradouros do que os marxistas actuais - também de nenhum deles se pode dizer que foi risonho: o dos espartanos foi a vergonha do "milagre grego"; o dos anabaptistas evanesceu-se no caos; o de Münster evanesceu-se na sangueira; o do Paraguai, levou, em duzentos anos, um pobre povo à idiotia...».
Orlando Vitorino («Manual de Teoria Política Aplicada»).

sábado, 18 de dezembro de 2021

O Ideal Português no Mundo

 

«Tem-se usado e abusado da expressão "tolerância" para marcar e demarcar a atitude dos portugueses primeiros em relação aos restantes povos da Comunidade, no sentido de justificar a presença do povo que deu movimento à missão comum nas terras ultramarinas. Aceita-se, é claro, que foram esses portugueses os autores do movimento em que frutificou a missão, mas para que ela tenha no futuro a validade de uma presença nobre é preciso compreender que não foram eles só que lhe deram expressão. A expressão é comum, porque a missão não constituiu nem constitui dádiva unilateral aos que primeiro se chamaram portugueses. Se assim não fora, seria vazia a expressão Raça e periclitantes as forças que convergem no futuro, equiparadas. Este é exactamente um dos argumentos que mais valida a Comunidade, pois de contrário não seria possível sair do atrofiante colonialismo em que um equívoco de alguns séculos lançou o homem encontrado além. Mas porque de missão se tratava e porque os que primeiro usaram tal nome de portugueses não eram todos os que poderiam usá-lo, não ficaram sufocados nos novos que haveriam de sê-lo para sempre as ansiedades fecundas que se multiplicam em esforços cívicos futurantes. O equívoco foi por isso rectificado e a missão recomeçada em plenitude.

Colocados, pois, em igualdade, por missão que a filosofia explicará, todos os povos da Comunidade, como plenos dessa mesma Comunidade, não podem aceitar existir e viver nela senão no mesmo nível. Consentir que um dos povos, neste caso o metropolitano, conceda ter permitido a apreensão comunitária por tolerância, é aceitar o baixo sentido pejorativo dessa expressão e aniquilar todas as possibilidades de uma digna igualdade entre os grupos rácicos que constituem Portugal.

O termo tolerante, usado para justificar ou definir a atitude dos portugueses primeiros em relação aos povos do Ultramar é contrário à noção do Direito e à função de todos. Na Comunidade Portuguesa não há tolerados, mas sim povos e indivíduos que a despeito de diferenças civilizacionais ocupam lugares coordenantes na gesta nacional. O emprego de tal expressão pejorativa só pode partir de quem não tenha sido capaz de entender o movimento e acção que consubstanciam o empréstimo de pensamento, alma, sangue e força que todos instintivamente fazem a Portugal, por exigência de Portugal, para que Pátria seja de povos espalhados por quatro continentes. É que Portugal, que começou por ser apenas o território europeu dos portugueses primeiros, tornou-se síntese evolutiva e mítica de todos aonde aqueles chegaram. Portugal não é já somente os dois palmos de Europa que germinaram no coração de D. Teresa. Aonde quer que os portugueses primeiros chegaram, aí também encontraram, em ansiedade secular, pedaços de Portugal esperado.

Os portugueses são o povo que habita e tem habitado Portugal, ou seja a parte europeia da Comunidade Portuguesa. Mas o Português, quer dizer, o Homem Português, o arquétipo, não é só esse, ou, talvez melhor ainda, não é nunca só esse. O Português é o Homem ideal, o que se conhece como resultante de Pátria Portuguesa una e indivisível e aquele que tem em si, potenciados, os imperativos desta concepção. Não pode recusar-se a forma genérica de portugueses para todos os grupos, uma vez que na aparência histórica e cronológica foram os portugueses os autores em missão do abraço universalista. Mas é indispensável a destrinça, porque sem isso não poderá haver personificação e responsabilização de cada grupo, e não é na amálgama que se fortalecem as razões superiores que podem enformar o arquétipo dos portugueses, isto é, o Português. O Português não tem, pois, forma antropológica. O Português é o ideal, dos portugueses primeiros e dos outros.


Se assim não pudesse ser tornar-se-ia conflituosa a existência nacional de tantas raças, e dar-se-ia justificada cisão à medida que cada povo desejasse o abrigo de uma pátria futurante. E a morada pluri-racial perderia sentido, quando, afinal, é ela a única que pode dar explicação a uma Comunidade. Os elementos ou indivíduos de povos diferentes podem fundir-se em cruzamentos sucessivos, e daí resultar o dessoramento de alguns grupos e o aparecimento de novos padrões humanos. Mas tal se não concebe como norma política de sujeitar uns grupos a outros, uma vez que os cruzamentos tendem, como seu último fim, a uma completa aglutinação. Ora os cruzamentos, quando conduzidos, portanto intensificados por um plano alheio à vontade individual dos que neles interferem perdem a grandeza que deve coroar o mais importante dos actos humanos.

Não sendo, pois, de admitir uma aglutinação forçada, só pode prevalecer o desejo de respeitar a estrutura de cada uma das raças. Evidentemente que podem séculos sobre séculos de convívio e vizinhança provocar o dessoramento de grupos étnicos coexistentes e dar como resultante novos tipos físicos, mentais e morais e, portanto, também, um novo tipo de civilização em que o melhor de cada grupo prevalece e fica como padrão. Mas prever o que deve prevalecer é concorrer para um erro gravíssimo, porque o prever não é mais do que tentar prever, e não é possível saber-se ao certo, num determinado presente, quais são os valores relativos que, potenciados, venham a ser infalivelmente os valores convenientes. Esses valores convenientes hão-de surgir do choque e do convívio pacífico.


Admitir como ponto certo a proeminência dos metropolitanos, que em si próprios são já a resultante de um exercício de choque e de convívio, é partir de uma premissa falsa. Nos espaços contínuos, tal é possível e facilitado por um natural emparedamento. Mas nos espaços descontínuos, não. Assim, o que se dará como se deu na metrópole entre os invasores bárbaros e não bárbaros, dar-se-á nas regiões ultramarinas, mas entre vizinhos, ou seja entre os grupos étnicos situados em regiões contínuas. E como não é de admitir a prepotência violenta, dada a participação levada a efeito no período colonial, e a posterior vigilância dos poderes constituídos, verificar-se-á, com certeza, do choque e do convívio pacífico, a afirmação dos tais valores convenientes em novos grupos resultantes.

A mestiçagem, comummente o cruzamento entre o homem metropolitano e a mulher africana, não pode ficar apenas neste entendimento. Tomará o aspecto voluntário e nobre de busca individual emotiva entre muitos outros grupos étnicos e fornecerá novos padrões rácicos.

Os portugueses jamais, por si sós, poderiam produzir o Português tipo ideal universalista, mas empreenderam a missão de o buscar dando-o. Os portugueses e os outros povos de si distantes que estavam cercados de segredos e de mistério deram de si mesmos pedaços de alma e de sangue para a formação ideal do Português.


A diferença entre uns e outros está apenas em que nos portugueses havia movimento e nos outros passividade, mas um e outros se completam na contribuição dada ao Português. Quer dizer que não é possível admitir-se, em face da conclusão futurante, o primado dos metropolitanos. Eles apenas foram os primeiros a iniciar uma acção, mas o alto significado de tal gesto só permanecerá se renunciarem a qualquer disputa de posições, pois não se trata de ordená-las, mas de conjugá-las. A permanência de Portugal no mundo não depende do que os portugueses fizerem, mas sim do comportamento de todos os povos do globo que portugueses são. Aceitar o contrário, é aceitar cindindo. Ora aceitar assim é revelar incompreensão. Mas se aceitar assim é incompreender, pior será actuar assim, porque isso será mostrar e demonstrar haver de facto uma dificuldade conjugadora interna, ou seja uma dificuldade contra a unidade necessária. Todos os povos portugueses têm de capacitar-se para dispender esforços contínuos, identificados com as suas aspirações comuns, além de realizarem o exercício que lhes é devido como grupos étnicos individualizados. Assim, cada grupo étnico garante-se no exercício individual; e a Comunidade garante-se no exercício colectivo.

Na compreensão da missão de todos reforça-se o sentido comunitário, tão forte que liberta sem desprender, sinal que coroa a insistência com que os portugueses primeiros sempre se desprenderam da Europa, o que bem indica que Portugal não era europeu, apesar da correspondência de níveis civilizacionais com os demais países da Europa. Tal facto serve para demonstrar não serem os tipos ou níveis civilizacionais por si só justificativos de alianças. Os vários grupos étnicos portugueses dos continentes exóticos não estão mais próximos dos seus vizinhos que dos portugueses metropolitanos, porque são principalmente as aspirações que aproximam os homens e não os seus estados civilizacionais. Os portugueses primeiros, quando chegaram aos pontos geográficos colocados além-mar fundamentaram a existência de um novo Homem, concreto por abstracção, futurante por não ter passado, de vivência por nunca ter existido, ideal por ser completo. É esse o Português, ou seja o arquétipo.



A compreensão deste fenómeno por parte de todos os compartimentos rácicos portugueses em todos criará a compreensão do consentimento coexistente que será o fundamento da Comunidade. A Comunidade será a única forma digna de coexistência, porque ela não implica para uns sujeição, mas pelo contrário a todos liberta da sujeição. O sentido actual de assimilação deixará de ter de discutir-se, porque a coexistência não implica assimilação; o sentido incompleto de integração deixará também de interessar, porque outro caminho mais amplo se encontrou, o da Comunidade, mais livre e mais nobre. Na Comunidade, ninguém ou nenhum povo terá de sujeitar-se ou alterar-se. Basta saber caminhar de mãos dadas.


Considero que houve um equívoco entre missão e missionar. E por isso a missionação avulta na acção colonizadora e em certos aspectos e regiões ocupa o único lugar no historial da acção dos portugueses. Não se trata de um erro, mas de uma insuficiência, e, assim, em vez de ter-se actuado também intelectualmente, como cumpria à amplitude de uma missão, evangelizou-se, como finalidade da missionação. Para muitos, colonizar queria exactamente ou substancialmente dizer evangelizar, e os autóctones, postos diante desse único caminho pelos que invadiram as suas regiões edénicas, eram convidados para um novo modo de buscar a Deus. Mas ficava de lado, como coisa menor, o ensinamento e a aprendizagem de processo necessário à confraternização dos homens. O desenvolvimento de uma consciência cívica, o interesse por tudo aquilo que compõe a vida, a percepção verdadeira do cosmos dominado no futuro pelo homem, isso, não podia ser entendido por um homem a quem não fora dado encontrar-se. E não havia, aparentemente, o entendimento do interesse em que ele se encontrasse, porque, de quantos o foram buscar e despertar dos seus fundos silêncios quase todos estavam alheios da missão de que iam investidos.

A missionação, realizando-se como se realizou, em potência e extensão, salvou os Descobrimentos e Conquistas do completo malogro, pois fez da sua missão a missão de Portugal, e invocou-o insistentemente como pátria terrena daqueles a quem oferecia uma pátria celestial. A Administração aproveitou na totalidade o chão que a Igreja preparou e passou a entender que deveria impulsionar a missionação, tornando-a como sua missão, para impor a soberania. Mas o que de mais alto se esperava não era apenas impor soberania. E não é ainda.

Com este equívoco foi possível equacionar menos do que se devia a função da conjugação de um pensamento e também considerar menos do que convinha os vários aspectos intrínsecos dos autóctones de cada grupo, incluído o sentido religioso particular de cada um. Não foi possível, por isso, levar suficientemente em conta que no interior de cada homem há o seu anterior, isto é, o ancestral, a linha infinita mas nunca indefinida dos avoengos que nele são garantia de autenticidade.

O homem brutalmente despegado dos hábitos dos seus maiores e esquecido da sua religião primitiva antes de entendê-la no possível, fica um ser não-cósmico ou anti-cósmico e a sua individualidade demorará a personalizar-se. O indivíduo que não é pessoa é um desentendido e não poderá lutar por sê-lo com o necessário vigor, porque tem dificuldade em permanecer com antecedência no seu destino. A missão dos portugueses primeiros junto aos novos povos portugueses era exactamente fazer-lhes entender o sentido cósmico do homem e da vida na antecedência de Deus. Essa é a razão que explica, decorridos cinco séculos de colonização, não estarem esses povos em condições de dar uma colaboração mais activa a si próprios e aos outros.


Evidentemente que este equívoco não foi exclusivo dos portugueses primeiros. Os outros povos europeus que também colonizadores se tornaram não foram capazes de fazer melhor. Fizeram sem dúvida pior. Mas os primeiros navegadores e conquistadores tinham plena consciência da missão que os levava a romper o mistério dos mares. Quase pode aceitar-se que o entendimento da missão cessou quando os propósitos de um encontro universal de todos os homens deixaram de ser exclusivamente lusíadas para ser, como depois foram, europeus».

Fernando Sylvan («O Ideal Português no Mundo», in O que é o ideal português). 

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Natal

 



Natal

Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!

Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.

Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.

À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.

Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infane.

Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.

Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.

Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Aquecer-nos ao lume
Que do teu frio e solidão nos dês.

Como é que ainda tens a infinita paciência
De voltar, — e te esqueces
De que a nossa indigência
Recusa Tudo que lhe ofereces?

Mas, se um ano tu deixas de nascer,
Se de vez se nos cala a tua voz,
Se enfim por nós desistes de morrer,
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?!

José Régio, in 'Obra Completa' 

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Mais um travesti de Abril!!!

 


Infelizmente teremos que dar a mão à palmatória, na verdade vivemos numa ditadura socialista desde o 25 de Abril, a realidade é que nunca houve desde a data de uma coisa a que chamaram de revolução, uma direita em Portugal, pelo menos por parte de partidos com assento parlamentar.

O que tivemos foi algo a que poderemos chamar de "oposição controlada", uma farsa para ir cativando e entreter os portugueses, enquanto tal se vai eternizando, vamos caminhando para um regime marxista travestido de democracia, essa é a verdade, hoje começamos a dar conta do castrar das liberdades individuais e colectivas, podendo destacar muitas dessas liberdades, mas basta citar uma, a liberdade de expressão, tão cara aos heróis que nos salvaram da sangrenta e opressora/repressora ditadura! O mais caricato é ao olhar em volta, ver que a grande maioria continua tanto ou mais ignorante do que há 50 anos, falam do que não sabem e votam em partidos ou pessoas que desconhecem, votam porque sim, nada mais.

Sem dúvida temos o eleitorado mais ignorante e facilmente manipulável de toda a Europa, votam em siglas, cores e desconhecem ideologias, programas ou sequer têm a noção daquilo que é uma constituição...

Já me alonguei um pouco, tudo isto para dizer que alguém nos bastidores se encarregou de fabricar um pseudo-sistema democrático, um teatro de fantoches para entreter as massas, depois de terem amputado o país dos seus territórios ultramarinos, foram-nos ao bolso e acabaram com a propriedade privada, portanto, palavras para quê, este povo tal como no tempo do império romano continua a adorar a novela, querem é pão e circo, e alguém percebe do assunto e manobra a seu bel prazer, é Portugal no seu melhor, em estado de quanto pior, melhor!!!

Resta-nos uma satisfação, ainda temos o futebol.

Aproveito para recomendar o excerto abaixo e recomendar que votem nas próximas eleições, o sistema agradece, anda por aí muito boa gente a tratar da sua vidinha, boas vidas sem nada produzir, a viver de esquemas e o povo paga, um povo pobre mas feliz...até tem direito a voto, pasme-se!!!

Entretanto a culpa vai sendo repartida pelo Salazar, pelo Passos ou quiçá pelo malvado Afonso Henriques!!!

Verdades inconvenientes e ocultadas!!!

Mais um episódio da traição e da vergonhosa descolonização, desta feita por parte de um dos maiores traidores, ao nível de Mário Soares, o homem da "direita", Diogo Freitas do Amaral, um facínora, um hipócrita, um traidor!!!

«... tive a honra de conhecer e de contactar numerosas vezes com o Senhor Contra-Almirante Pinheiro de Azevedo. Tive então ocasião de perguntar ao Senhor Contra-Almirante a que tinha obedecido a alteração do programa das FA e da legislação então publicada, em relação ao Ultramar, isto é, porque não se tinha aguardado uma nova Constituição para então dar cumprimento às resoluções da ONU.

O Senhor Contra-Almirante informou-me então que o que levou a alterar o compromisso assumido pelo MFA perante a Nação, tinha sido uma resolução tomada em reunião do Conselho de Estado. Disse-me que estivera várias vezes para denunciar publicamente este facto, mas que sempre hesitara com o receio de aumentar ainda mais, com a sua revelação, a grande confusão então existente.

Que se passara em tão importante reunião do Conselho de Estado, mantida tão secreta pelos seus membros num País onde não é possível guardar segredos?

Logo me assaltou a suspeita de que só a má consciência dos seus membros poderia conseguir um tal milagre neste País de linguareiros.

O Senhor Contra-Almirante confirmou-me essa suspeita! Na verdade informou-me que em determinada reunião daquele órgão de soberania, o Prof. Freitas do Amaral defendera, numa extensa exposição, que não seria necessário esperar por uma nova Constituição para se dar início ao processo de descolonização, pois que a legislação em vigor permitia que se lhe desse início.

O Senhor Contra-Almirante, ainda a propósito do Prof. Freitas do Amaral, disse-me que após a sua exposição, os militares, embaraçados, se entreolharam, surpreendidos, mas naturalmente sem argumentos para combater os da tese apresentada e que, os restantes membros do Conselho que poderiam ter argumentado dada a sua formação académica, logo se manifestaram em calorosos elogios à proposta apresentada, tendo ficado desde logo decidido dar-se início à descolonização.

Estava dado o primeiro passo de uma grande tragédia.

Tendo, mais tarde, procurado informar-me de quem tinha acesso às actas do Conselho de Estado, para me certificar da exactidão da informação que o Senhor Contra-Almirante me tinha dado, constou-me que o Senhor General Eanes, logo após a tomada de posse da Presidência da República, tendo querido chamar a si aquelas actas e as da Comissão da Descolonização foi informado do seu desaparecimento. Será verdade? Não me surpreende que o seja. Haverá alguém que se surpreenda?».

Fernando Pacheco de Amorim («25 de Abril. Episódio do Projecto Global»).

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Identidade e sentido de pátria...

 

O verdadeiro problema não é pois quanto a mim o de saber se ainda há pátria. Parece-me cada vez mais evidente - contra a opinião, bem o sei, de certas formas de ideologismo superficiais e mal fundamentadas -, que onde haja uma língua própria, uma estrutura cultural, uma actividade filosófica, um complexo social específico, um sistema de educação, a pátria é uma realidade a tonalizar necessariamente as ideias, os valores, os movimentos, as instituições. O que sucede muitas vezes é haver pessoas, frequentemente as que se formaram culturalmente na Universidade, que rejeitam consciente ou inconscientemente a sua pátria, julgando-se afastadas de tal ideia anacrónica, quando na realidade se tornaram cidadãos de outras pátrias. São os que desprezando e ignorando por exemplo a literatura portuguesa, a filosofia portuguesa, a cultura portuguesa e a língua portuguesa, se integraram por completo nos sistemas de outras culturas nacionais. A sua posição é a de um snobismo provinciano estéril, irremediavelmente distanciado da cultura emulada e ao mesmo tempo desenraízado da cultura circundante. Alienação cultural completa, incapacidade de abordar os problemas reais do seu povo, uma vez que constantemente se lhes querem vestir soluções ou figurinos concebidos para outros sistemas e formas psico-sociológicas da vida.

Os supostos apátridas deveriam perguntar a si próprios «onde está a minha pátria?». Serão a França ou a Alemanha? (opções universitárias). Será a América? (opção capitalista-tecnocrática). Será a Rússia? (opção ideológica). Será a China ou Cuba»? (opções políticas-nova vaga).

António Quadros 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

O caminho para a servidão...



Hayek Anti-socialismo e Democracia Liberal | PÚBLICO

A maneira mais eficaz de levar toda a gente a servir o sistema único das finalidades que a planificação social tem em vista, é fazer que toda a gente acredite nessas finalidades. Para que um sistema totalitário funcione eficazmente, não basta que todos sejam forçados a trabalhar para os mesmos fins; é também preciso, é essencial, conseguir que as pessoas considerem esses fins como seus. Embora a escolha de tais fins seja alheia às pessoas a quem são impostos, é necessário que elas os adoptem como convicções próprias, como uma crença geralmente aceite que leva os indivíduos a fazerem espontaneamente aquilo que os planificadores querem que eles façam. Se nos países totalitários o sentimento da opressão é, em geral, muito menos vivo do que se imagina nos países liberais, é porque os governos totalitários conseguiram, com grande êxito, pôr as pessoas a pensar como eles pretendem.

RS Notícias: Frase do dia - Friedrich Hayek


E conseguem-no, evidentemente, através das várias formas de publicidade e propaganda. A técnica é já tão conhecida que pouco é preciso dizer dela. Um só aspecto há a sublinhar: o de que nem a propaganda em si mesma nem os meios que ela utiliza são exclusivos do totalitarismo, e se sua natureza e seus efeitos aparecem tão profundamente modificados nos Estados totalitários é só porque, neles, toda a propaganda serve o mesmo único objectivo e todos os meios são coordenados para influenciarem os indivíduos num único sentido e produzirem a característica Gleichschaltung (uniformidade) de todos os espíritos. O efeito da publicidade e da propaganda nos países totalitários é, por isso, muito diferente, tanto na extensão como na qualidade, do da propaganda que, dirigida para diversas finalidades, é feita por agências entre si independentes e concorrentes. Se todas as fontes de informação estiverem sujeitas a um controlo único, deixa de haver grande dificuldade em persuadir as pessoas disto ou daquilo. Qualquer propagandista hábil ficará, então, com o poder de encaminhar os espíritos para onde quiser e nem as pessoas mais inteligentes e senhoras de si escaparão totalmente a essa manipulação caso se mantenham isoladas de outras fontes de informação.

Quando o curso da civilização toma um rumo inesperado quan... (Friedrich  Hayek)

(...) O modo mais eficaz de levar as pessoas a aceitarem os valores que têm de servir consiste em persuadi-las de que são precisamente esses os valores que elas, ou as melhores dentre elas, sempre defenderam mas sempre se viram impedidas de fazer compreender ou reconhecer. As pessoas são assim levadas a transferir a sua fidelidade aos velhos deuses para os novos ídolos, na persuasão de que estes últimos é que efectivamente são aquilo que o secreto instinto sempre lhes segredara mas que só vagamente haviam podido vislumbrar. E a técnica que melhor resulta para atingir este objectivo é a de continuar a empregar as velhas palavras mas dando-lhes um novo significado. A um observador superficial, poucos aspectos dos regimes totalitários serão tão perturbantes e, ao mesmo tempo, tão caracterizadores do ambiente intelectual, como a total perversão da linguagem que cobre a alteração do significado das palavras que esses regimes utilizam para exprimir os seus ideais.

Quase por uma lei da natureza humana,... Friedrich Hayek - Pensador

Neste aspecto, a palavra que mais sofre é, evidentemente, a palavra liberdade. É ela usada com total desembaraço em qualquer regime totalitário. Pode de facto dizer-se - e que isso nos sirva de aviso e precaução contra todos os tentadores que nos prometem New Liberties for Old, que sempre que se destrói a liberdade no sentido em que nós a entendemos, tal destruição é feita em nome de uma nova liberdade que se promete ao povo. (...) Como para estes políticos [os totalitários], também para eles [os planificadores] a liberdade que nos oferecem, a «liberdade colectiva», não é a dos membros da sociedade mas a liberdade sem limites do planificador para fazer da sociedade o que lhe apetecer. É a confusão entre a liberdade e o poder levado ao extremo.

Neste caso específico, a perversão do significado da palavra foi preparada por uma longa linha de filósofos alemães a que não deixaram de dar o seu apoio muitos teorizadores socialistas. O significado da palavra liberdade transferiu-se para o contrário do que era a fim de servir de instrumento à propaganda totalitária. Já verificámos como o mesmo aconteceu com a justiça e a lei, o direito e a igualdade. E a lista alarga-se mais pois podem incluir-se nela quase todos os termos políticos e morais de uso corrente.

Quem não tiver tido a experiência do fenómeno, dificilmente pode avaliar a confusão que a alteração do significado das palavras provoca e as barreiras que levanta a toda a discussão racional. É preciso ver para acreditar como entre dois irmãos se torna impossível qualquer comunicação autêntica quando um deles segue a nova doutrina e aparece, em pouco tempo, a falar uma linguagem diferente. E a confusão é ainda mais grave porque a alteração do significado das palavras não é um fenómeno isolado mas constitui um processo ininterrupto, uma técnica que, consciente e inconscientemente, se destina a dominar o povo. Pouco a pouco, à medida que o processo avança, toda a linguagem vai ficando despojada de sentido, as palavras tornam-se conchas vazias sem qualquer significado, tanto designam uma coisa como o seu contrário e, se continuam a ser utilizadas, é apenas para provocar os reflexos emotivos a que ainda estão ligadas.

Friedrich Hayek - frases.Tube

Não é difícil privar a maioria das pessoas de um pensamento independente. Mas a minoria que se mantém atenta e crítica, não pode deixar de ser silenciada.

(...) Tanto como as ideias acerca dos valores, os factos e as teorias constituem matéria da doutrina oficial. E todo o aparelho de comunicação e ensino, as escolas e a imprensa, a rádio e o cinema, serão exclusivamente destinados à difusão das opiniões que, verdadeiras ou falsas, fortificam a confiança nas decisões do Estado; e toda a informação que possa suscitar dúvidas será escondida. O único critério para decidir se uma informação deve ser publicada ou escondida, é o do efeito que ela possa ter na fidelidade do povo ao regime. A situação em que se vive num estado totalitário é, permanentemente e em todos os sectores, idêntica àquela em que, nos Estados não totalitários, só se vive, durante os períodos de guerra, em alguns sectores. Tudo o que possa suscitar dúvidas sobre a competência do governo ou criar descontentamento, será escondido do povo. Serão suprimidas todas as informações que forneçam meios de comparação com a situação noutros países, que dêem indicações sobre possíveis alternativas para o caminho agora empreendido, que sugiram falhas por parte do governo, não ter ele cumprido as promessas que fez, não ter sabido aproveitar as oportunidades para melhorar a situação. Com este condicionalismo, não haverá nenhum sector que não esteja sujeito ao controlo sistemático da informação e onde não seja obrigatória a uniformidade de opiniões.

Hayek Frases - Labrego

Tudo isto se aplica a tudo, até a campos aparentemente muitos afastados dos interesses políticos, designadamente a todas as ciências, mesmo as mais abstractas. Compreende-se com facilidade, e a experiência só o tem confirmado, que, num sistema totalitário, não seja permitida a busca desinteressada da verdade nas disciplinas que, mais directamente ligadas aos problemas humanos, mais directamente podem afectar as opiniões políticas: a história, o direito, a economia. Nestas disciplinas, a defesa das doutrinas oficiais terá de constituir o objectivo único. E na realidade, tornaram-se elas, nos países sujeitos ao totalitarismo, as fábricas mais produtivas de mitos oficiais que os chefes utilizam para guiarem os espíritos e as vontades de seus súbditos. Nada admira que se chegue a pôr de lado, até como pretexto, a busca da verdade e sejam as autoridades que decidem quais as doutrinas a ser ensinadas e publicadas.

Friedrich A. von Hayek - NOVO

O controle autoritário da opinião estende-se também a domínios que, à primeira vista, parece não terem significado político. É muitas vezes difícil explicar porque é que certas doutrinas são oficialmente proscritas e outras incentivadas, e é curioso observar como estas preferências são semelhantes nos vários regimes totalitários. A todos eles parece comum uma forte aversão pelas formas mais abstractas do pensamento, aversão de que também participam, significativamente, muitos dos colectivistas que há entre os nossos cientistas. Seja, por exemplo, a teoria da relatividade apresentada como «um ataque semita à física cristã e nórdica» ou seja ela atacada por estar «em conflito com o materialismo dialéctico e o dogma marxista», o resultado é o mesmo. Também não faz grande diferença que certos teoremas de estatística matemática sejam repudiados porque «fazem parte da luta de classes na frente ideológica e são um produto do papel histórico da matemática como lacaia da burguesia» ou porque «não dão garantias de servirem os interesses do povo». Parece que nem as matemáticas puras escapam, e até a defesa de determinadas opiniões sobre a natureza da continuidade pode ser considerada «um preconceito burguês». Segundo os Webbs, o Journal for Marxist-Leninist Natural Sciences contém os seguintes slogans: «Pelo Partido na Matemática», «Pela pureza da teoria marxista-leninista na cirurgia». A situação é semelhante na Alemanha. O Journal of the National-Socialist Association of Mathematicians está cheio de expressões como «o Partido da matemática», e um dos físicos alemães mais conhecidos, o Prémio Nobel Lennard, resumiu o trabalho de toda a sua vida no título A Física Alemã em Quatro Volumes!

Frederico Hayek in, "O Caminho Para a Servidão".

Nota:

Friedrich August von Hayek (alemão: [ˈfʁiːdʁɪç ˈaʊ̯ɡʊst ˈhaɪɛk]Viena8 de maio de 1899 — Friburgo em Brisgóvia23 de março de 1992) foi um economista e filósofo austríaco, posteriormente naturalizado britânico. É considerado um dos maiores representantes da Escola Austríaca de pensamento econômico. Foi defensor do liberalismo clássico e procurou sistematizar o pensamento liberal clássico para o século XX, época em que viveu. Realizou contribuições para a filosofia do direitoeconomiaepistemologiahistória das ideiashistória econômicapsicologia, entre outras áreas. Recebeu o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1974, "por seu trabalho pioneiro na teoria da moeda e flutuações econômicas e pela análise penetrante da interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais", que dividiu com seu rival ideológico Gunnar Myrdal.[1]

Nasceu em Viena, em uma família de cientistas e professores. Seu pai era professor de Botânica na Universidade de Viena. Quando jovem, escolheu a carreira de economista. Serviu na Primeira Guerra Mundial, e disse que a experiência da guerra e seu desejo de evitar que ressurgissem os erros que levaram ao conflito tiveram grande influência na sua carreira. Morou na Áustria, na Grã-Bretanha, nos EUA e na Alemanha, tornando-se cidadão britânico em 1938. Passou o maior tempo de sua carreira na London School of Economics (LSE), na Universidade de Chicago e na Universidade de Freiburg.

Em 1984, tornou-se membro da Order of the Companions of Honour (Ordem dos Companheiros de Honra), por indicação da Rainha Elizabeth II, no conselho da Primeira Ministra Margaret Thatcher, por seus "serviços no estudo da economia". Ele foi a primeira pessoa a receber o Prêmio Hanns Martin Schleyer, em 1984.[2] Recebeu também a US Presidential Medal of Freedom (Medalha Presidencial da Liberdade dos EUA) do presidente George H. W. Bush, em 1991. Em 2011, seu artigo O Uso do Conhecimento na Sociedade foi selecionado como um dos 20 principais artigos publicados pela The American Economic Review (A Revisão Economica Americana) durante seus primeiros 100 anos.[3]

Foi um importante teórico social e filósofo político do século XX,[4][5] e sua consideração sobre como a mudança dos preços comunica conhecimento, o que permite aos indivíduos coordenarem seus planos, é amplamente considerada como uma das grandes proezas da ciência econômica.[6] Na psicologia, propôs uma teoria da mente humana segundo a qual a mente é um sistema adaptativo.[7] Em Economia, defendeu os méritos da ordem espontânea. Fez trabalhos importantes sobre a evolução social, sobre os fenômenos complexos e a metodologia das ciências sociais. Fundou a Mont Pèlerim Society com outros liberais para propagar o liberalismo no pós-guerra, entre os quais estavam Michael PolanyiLudwig von MisesBertrand de JouvenelWilhelm RöpkeMilton FriedmanFrank KnightLionel RobbinsKarl Popper e outros pensadores de relevo.[(fonte Wikipedia)

A esta terra que sofre.

  A esta terra que sofre, Diminuída, mutilada, À procura de si própria, Perdida, abandonada. Mas ouvi, ó portugueses, Corruptos ou estrangei...