«Tem-se usado e abusado da expressão "tolerância" para marcar e demarcar a atitude dos portugueses primeiros em relação aos restantes povos da Comunidade, no sentido de justificar a presença do povo que deu movimento à missão comum nas terras ultramarinas. Aceita-se, é claro, que foram esses portugueses os autores do movimento em que frutificou a missão, mas para que ela tenha no futuro a validade de uma presença nobre é preciso compreender que não foram eles só que lhe deram expressão. A expressão é comum, porque a missão não constituiu nem constitui dádiva unilateral aos que primeiro se chamaram portugueses. Se assim não fora, seria vazia a expressão Raça e periclitantes as forças que convergem no futuro, equiparadas. Este é exactamente um dos argumentos que mais valida a Comunidade, pois de contrário não seria possível sair do atrofiante colonialismo em que um equívoco de alguns séculos lançou o homem encontrado além. Mas porque de missão se tratava e porque os que primeiro usaram tal nome de portugueses não eram todos os que poderiam usá-lo, não ficaram sufocados nos novos que haveriam de sê-lo para sempre as ansiedades fecundas que se multiplicam em esforços cívicos futurantes. O equívoco foi por isso rectificado e a missão recomeçada em plenitude.
Colocados, pois, em igualdade, por missão que a filosofia explicará, todos os povos da Comunidade, como plenos dessa mesma Comunidade, não podem aceitar existir e viver nela senão no mesmo nível. Consentir que um dos povos, neste caso o metropolitano, conceda ter permitido a apreensão comunitária por tolerância, é aceitar o baixo sentido pejorativo dessa expressão e aniquilar todas as possibilidades de uma digna igualdade entre os grupos rácicos que constituem Portugal.
O termo tolerante, usado para justificar ou definir a atitude dos portugueses primeiros em relação aos povos do Ultramar é contrário à noção do Direito e à função de todos. Na Comunidade Portuguesa não há tolerados, mas sim povos e indivíduos que a despeito de diferenças civilizacionais ocupam lugares coordenantes na gesta nacional. O emprego de tal expressão pejorativa só pode partir de quem não tenha sido capaz de entender o movimento e acção que consubstanciam o empréstimo de pensamento, alma, sangue e força que todos instintivamente fazem a Portugal, por exigência de Portugal, para que Pátria seja de povos espalhados por quatro continentes. É que Portugal, que começou por ser apenas o território europeu dos portugueses primeiros, tornou-se síntese evolutiva e mítica de todos aonde aqueles chegaram. Portugal não é já somente os dois palmos de Europa que germinaram no coração de D. Teresa. Aonde quer que os portugueses primeiros chegaram, aí também encontraram, em ansiedade secular, pedaços de Portugal esperado.
Os portugueses são o povo que habita e tem habitado Portugal, ou seja a parte europeia da Comunidade Portuguesa. Mas o Português, quer dizer, o Homem Português, o arquétipo, não é só esse, ou, talvez melhor ainda, não é nunca só esse. O Português é o Homem ideal, o que se conhece como resultante de Pátria Portuguesa una e indivisível e aquele que tem em si, potenciados, os imperativos desta concepção. Não pode recusar-se a forma genérica de portugueses para todos os grupos, uma vez que na aparência histórica e cronológica foram os portugueses os autores em missão do abraço universalista. Mas é indispensável a destrinça, porque sem isso não poderá haver personificação e responsabilização de cada grupo, e não é na amálgama que se fortalecem as razões superiores que podem enformar o arquétipo dos portugueses, isto é, o Português. O Português não tem, pois, forma antropológica. O Português é o ideal, dos portugueses primeiros e dos outros.
Se assim não pudesse ser tornar-se-ia conflituosa a existência nacional de tantas raças, e dar-se-ia justificada cisão à medida que cada povo desejasse o abrigo de uma pátria futurante. E a morada pluri-racial perderia sentido, quando, afinal, é ela a única que pode dar explicação a uma Comunidade. Os elementos ou indivíduos de povos diferentes podem fundir-se em cruzamentos sucessivos, e daí resultar o dessoramento de alguns grupos e o aparecimento de novos padrões humanos. Mas tal se não concebe como norma política de sujeitar uns grupos a outros, uma vez que os cruzamentos tendem, como seu último fim, a uma completa aglutinação. Ora os cruzamentos, quando conduzidos, portanto intensificados por um plano alheio à vontade individual dos que neles interferem perdem a grandeza que deve coroar o mais importante dos actos humanos.
Não sendo, pois, de admitir uma aglutinação forçada, só pode prevalecer o desejo de respeitar a estrutura de cada uma das raças. Evidentemente que podem séculos sobre séculos de convívio e vizinhança provocar o dessoramento de grupos étnicos coexistentes e dar como resultante novos tipos físicos, mentais e morais e, portanto, também, um novo tipo de civilização em que o melhor de cada grupo prevalece e fica como padrão. Mas prever o que deve prevalecer é concorrer para um erro gravíssimo, porque o prever não é mais do que tentar prever, e não é possível saber-se ao certo, num determinado presente, quais são os valores relativos que, potenciados, venham a ser infalivelmente os valores convenientes. Esses valores convenientes hão-de surgir do choque e do convívio pacífico.
Admitir como ponto certo a proeminência dos metropolitanos, que em si próprios são já a resultante de um exercício de choque e de convívio, é partir de uma premissa falsa. Nos espaços contínuos, tal é possível e facilitado por um natural emparedamento. Mas nos espaços descontínuos, não. Assim, o que se dará como se deu na metrópole entre os invasores bárbaros e não bárbaros, dar-se-á nas regiões ultramarinas, mas entre vizinhos, ou seja entre os grupos étnicos situados em regiões contínuas. E como não é de admitir a prepotência violenta, dada a participação levada a efeito no período colonial, e a posterior vigilância dos poderes constituídos, verificar-se-á, com certeza, do choque e do convívio pacífico, a afirmação dos tais valores convenientes em novos grupos resultantes.
A mestiçagem, comummente o cruzamento entre o homem metropolitano e a mulher africana, não pode ficar apenas neste entendimento. Tomará o aspecto voluntário e nobre de busca individual emotiva entre muitos outros grupos étnicos e fornecerá novos padrões rácicos.
Os portugueses jamais, por si sós, poderiam produzir o Português tipo ideal universalista, mas empreenderam a missão de o buscar dando-o. Os portugueses e os outros povos de si distantes que estavam cercados de segredos e de mistério deram de si mesmos pedaços de alma e de sangue para a formação ideal do Português.
A diferença entre uns e outros está apenas em que nos portugueses havia movimento e nos outros passividade, mas um e outros se completam na contribuição dada ao Português. Quer dizer que não é possível admitir-se, em face da conclusão futurante, o primado dos metropolitanos. Eles apenas foram os primeiros a iniciar uma acção, mas o alto significado de tal gesto só permanecerá se renunciarem a qualquer disputa de posições, pois não se trata de ordená-las, mas de conjugá-las. A permanência de Portugal no mundo não depende do que os portugueses fizerem, mas sim do comportamento de todos os povos do globo que portugueses são. Aceitar o contrário, é aceitar cindindo. Ora aceitar assim é revelar incompreensão. Mas se aceitar assim é incompreender, pior será actuar assim, porque isso será mostrar e demonstrar haver de facto uma dificuldade conjugadora interna, ou seja uma dificuldade contra a unidade necessária. Todos os povos portugueses têm de capacitar-se para dispender esforços contínuos, identificados com as suas aspirações comuns, além de realizarem o exercício que lhes é devido como grupos étnicos individualizados. Assim, cada grupo étnico garante-se no exercício individual; e a Comunidade garante-se no exercício colectivo.
Na compreensão da missão de todos reforça-se o sentido comunitário, tão forte que liberta sem desprender, sinal que coroa a insistência com que os portugueses primeiros sempre se desprenderam da Europa, o que bem indica que Portugal não era europeu, apesar da correspondência de níveis civilizacionais com os demais países da Europa. Tal facto serve para demonstrar não serem os tipos ou níveis civilizacionais por si só justificativos de alianças. Os vários grupos étnicos portugueses dos continentes exóticos não estão mais próximos dos seus vizinhos que dos portugueses metropolitanos, porque são principalmente as aspirações que aproximam os homens e não os seus estados civilizacionais. Os portugueses primeiros, quando chegaram aos pontos geográficos colocados além-mar fundamentaram a existência de um novo Homem, concreto por abstracção, futurante por não ter passado, de vivência por nunca ter existido, ideal por ser completo. É esse o Português, ou seja o arquétipo.
A compreensão deste fenómeno por parte de todos os compartimentos rácicos portugueses em todos criará a compreensão do consentimento coexistente que será o fundamento da Comunidade. A Comunidade será a única forma digna de coexistência, porque ela não implica para uns sujeição, mas pelo contrário a todos liberta da sujeição. O sentido actual de assimilação deixará de ter de discutir-se, porque a coexistência não implica assimilação; o sentido incompleto de integração deixará também de interessar, porque outro caminho mais amplo se encontrou, o da Comunidade, mais livre e mais nobre. Na Comunidade, ninguém ou nenhum povo terá de sujeitar-se ou alterar-se. Basta saber caminhar de mãos dadas.
Considero que houve um equívoco entre missão e missionar. E por isso a missionação avulta na acção colonizadora e em certos aspectos e regiões ocupa o único lugar no historial da acção dos portugueses. Não se trata de um erro, mas de uma insuficiência, e, assim, em vez de ter-se actuado também intelectualmente, como cumpria à amplitude de uma missão, evangelizou-se, como finalidade da missionação. Para muitos, colonizar queria exactamente ou substancialmente dizer evangelizar, e os autóctones, postos diante desse único caminho pelos que invadiram as suas regiões edénicas, eram convidados para um novo modo de buscar a Deus. Mas ficava de lado, como coisa menor, o ensinamento e a aprendizagem de processo necessário à confraternização dos homens. O desenvolvimento de uma consciência cívica, o interesse por tudo aquilo que compõe a vida, a percepção verdadeira do cosmos dominado no futuro pelo homem, isso, não podia ser entendido por um homem a quem não fora dado encontrar-se. E não havia, aparentemente, o entendimento do interesse em que ele se encontrasse, porque, de quantos o foram buscar e despertar dos seus fundos silêncios quase todos estavam alheios da missão de que iam investidos.
A missionação, realizando-se como se realizou, em potência e extensão, salvou os Descobrimentos e Conquistas do completo malogro, pois fez da sua missão a missão de Portugal, e invocou-o insistentemente como pátria terrena daqueles a quem oferecia uma pátria celestial. A Administração aproveitou na totalidade o chão que a Igreja preparou e passou a entender que deveria impulsionar a missionação, tornando-a como sua missão, para impor a soberania. Mas o que de mais alto se esperava não era apenas impor soberania. E não é ainda.
Com este equívoco foi possível equacionar menos do que se devia a função da conjugação de um pensamento e também considerar menos do que convinha os vários aspectos intrínsecos dos autóctones de cada grupo, incluído o sentido religioso particular de cada um. Não foi possível, por isso, levar suficientemente em conta que no interior de cada homem há o seu anterior, isto é, o ancestral, a linha infinita mas nunca indefinida dos avoengos que nele são garantia de autenticidade.
O homem brutalmente despegado dos hábitos dos seus maiores e esquecido da sua religião primitiva antes de entendê-la no possível, fica um ser não-cósmico ou anti-cósmico e a sua individualidade demorará a personalizar-se. O indivíduo que não é pessoa é um desentendido e não poderá lutar por sê-lo com o necessário vigor, porque tem dificuldade em permanecer com antecedência no seu destino. A missão dos portugueses primeiros junto aos novos povos portugueses era exactamente fazer-lhes entender o sentido cósmico do homem e da vida na antecedência de Deus. Essa é a razão que explica, decorridos cinco séculos de colonização, não estarem esses povos em condições de dar uma colaboração mais activa a si próprios e aos outros.
Evidentemente que este equívoco não foi exclusivo dos portugueses primeiros. Os outros povos europeus que também colonizadores se tornaram não foram capazes de fazer melhor. Fizeram sem dúvida pior. Mas os primeiros navegadores e conquistadores tinham plena consciência da missão que os levava a romper o mistério dos mares. Quase pode aceitar-se que o entendimento da missão cessou quando os propósitos de um encontro universal de todos os homens deixaram de ser exclusivamente lusíadas para ser, como depois foram, europeus».
Fernando Sylvan («O Ideal Português no Mundo», in O que é o ideal português).