sexta-feira, 4 de julho de 2025

Discurso de Salazar sobre a invasão e ocupação de Goa pela União Indiana.

 

Senhor Presidente da Assembleia Nacional

Senhores Deputados

Não costumo escrever para a História e sinto ter de fazê-lo hoje, mas a Nação tem pleno direito de saber como e porque se encontra despojada do Estado Português da Índia. Goa portuguesa há 450 anos e agora ocupada pela União Indiana representa um dos maiores desastres da nossa História e golpe muito fundo na vida moral da Nação. Para esta, o Estado Português da Índia, sem expressão sensível na economia ou na força política portuguesa, contava sobretudo como padrão de um dos maiores acontecimentos da história do mundo e da comunicação do Oriente com a vida ocidental. Deixá-lo à guarda de um pequeno país que foi com sacrifícios ingentes o fautor das grandes descobertas devia ser ponto de honra de todas as Nações civilizadas e das que beneficiaram da acção portuguesa no mundo. Que este conceito se tenha chocado com outro de simples ambição expansionista é mais uma prova - e esta flagrante - nos nossos tempos da decadência da legalidade e da depreciação dos valores morais. Esta explicação não é no entanto satisfatória para os Portugueses que podem ter esquecido não ser a União Indiana sensível a razões históricas, jurídicas ou simplesmente humanas, mas confiavam em influências que no jogo da política mundial pudessem opor-se com eficácia às ambições de que foi vítima Goa. Temos assim de descer mais fundo no exame da questão e explicar com algum pormenor como tudo foi possível.

I. O caso de Goa pode dizer-se que nasceu no momento em que a União Indiana se tornou independente. Apesar de o Império das Índias se haver cindido em vários Estados, a União Indiana que muito contrariadamente teve de conformar-se com a cisão passou a considerar-se a si própria como verdadeira sucessora da Inglaterra e no fundo como o Estado que aglutinaria mais tarde ou mais cedo os outros Estados do Indostão. União Indiana, Índia, Indostão são termos que, confundindo a geografia e a ambição política, passaram a representar uma identidade na mente dos dirigentes de Nova Delhi.

Nesta orientação e tomando partido da confusão dos primeiros anos, a União Indiana fez um vasto trabalho de unificação por meio de acordos, de pressões e de conquistas, e detém a posse de outros territórios, como Caxemira, mesmo contra os repetidos votos e a condenação formal das Nações Unidas. O Primeiro-Ministro da União Indiana, Pandita Nehru, é o representante máximo desta ideia imperialista contra a qual se esboroam todas as outras que também diz professar - pacifismo, não violência, boa vizinhança. Não o embaraçam as contradições nem do pensamento nem da acção, que aliás alguns benevolamente atribuem às variações da opinião pública. Abusa do ilogismo ou pelo menos a sua lógica é diferente da nossa. Os anos de Londres podem ter-lhe facultado traços de cultura europeia mas não tocaram a sua formação de origem. À procura de alguma coisa que cimente, para garantia da mais que precária unidade política, o embrenhado dos povos e raças que habitam o subcontinente, julga encontrá-la no substracto hindu. E por mais estranho que pareça a quem escuta as suas prédicas, o Primeiro-Ministro da União Indiana é no fundo um racista e um antiocidental, pacifista em teoria e agressor na prática. E não só na Ásia. A braços com a sobrepopulação e a miséria, tem também os seus planos de África, da África deserta, onde espera que o indiano pode vir a substituir o branco.

Quem não tiver bem presentes estes pontos de referência não compreenderá a acção indiana que em anos não muito distantes se desenrolará naquelas partes do mundo, nem entenderá o que se passou com Goa.

O Estado Português da Índia foi sempre, como não podia deixar de ser, respeitado pelos ingleses, na soberania de Portugal. A incorporação destes minúsculos territórios não interessava e estava vedada a uma Nação como a Inglaterra, ali chegada dois séculos depois de nós, mas com os arrivistas do poder as coisas não seriam assim; o maquinismo da unificação continuaria a funcionar e mesmo em prejuízo das soberanias estranhas ao Império Britânico.

O caso de Goa foi sucessivamente mudando de aspecto na política e nos discursos do Primeiro-Ministro: começou-se pela reclamação de uma larga autonomia, aliás já existente, passou-se à independência e acabou-se na anexação que era o fim a atingir. Neste processo a União Indiana ora se apresentou como detentora do direito de protecção de etnias iguais ou afins, onde quer que vivessem, ora como grande potência abrasada pelo ideal da luta anticolonialista, para libertar os povos escravizados. Apesar da insistência da campanha movida ao longo dos anos contra Portugal em Goa ou contra Goa portuguesa, os indianos não puderam convencer o mundo de terem razão; muito menos puderam demonstrar que nós a não tivéssemos.

Quanto a nós, a descoberta, os acordos com autoridades locais, a posse incontestada de séculos, a paz, a coesão espiritual e o progresso dos povos não podem ser contraditados no mundo ocidental como fundamentando a legitimidade da soberania. Mas ao contrário do que se pensa entre nós a antiguidade destes títulos e a continuidade do exercício do poder era para a União Indiana razão a mais para se extinguirem e não para se manterem.

As acusações contra a administração portuguesa e a falta de liberdade em Goa e as pretensas aspirações dos goeses a desligarem-se da pátria comum, e o apodo de colonialismo eram tão contra a evidência que não se poderiam com seriedade manter, e foram geralmente considerados simples arma de propaganda política. O facto de todos os goeses serem desde sempre cidadãos portugueses de pleno direito, de possuírem o seu colégio legislativo, de terem representação desde 1822 na Câmara dos Deputados, de ascenderem aos mais altos postos na burocracia e no Governo da Nação, de poderem exercer as suas profissões em todos os territórios portugueses, metropolitanos ou ultramarinos, tudo isso destrói pela base a acusação de que o Estado da Índia, mascarado de província, era uma simples colónia. E menos ainda que outros os goeses puderam ser convencidos.

Depois de estabelecidas relações diplomáticas entre a União Indiana e Portugal, foi apresentada ao Governo em Fevereiro de 1950 uma proposta para imediatas negociações sobre o futuro de Goa, ou mais claramente para se definirem os termos em que o Estado Português da Índia seria integrado na União Indiana. Nós não podemos negociar, sem nos negarmos e sem trairmos os nossos, a cedência de territórios nacionais nem a transferência das populações que os habitam para soberanias estranhas: legitimamente apenas podíamos negociar a resolução dos múltiplos problemas que surgem da vida corrente de Estados vizinhos. Mantivemos de começo a fim esta atitude, mas a única negociação que interessava à União Indiana e ela compreendia não era esta, e a que propunha era uma negociação para nós sem objecto possível.

Sobre esta nossa atitude assenta a sequência das providências tomadas pela União Indiana contra Goa e os goeses, para os convencer ou para os dominar. É um imenso rol de violências sobre as pessoas e os bens, as convicções e a vida, que nos países civilizados nascem do estado de guerra e na União Indiana se consideravam oficialmente manifestações de política pacifista. Não vou referi-las neste momento, seria impossível. Direi apenas que a posição portuguesa foi em todas as ocasiões não responder aos agravos e tentar vencer as dificuldades que nos foram criadas. A proibição do tráfego de pessoas e mercadorias por terra e por mar, o corte do caminho de ferro, a interrupção de comunicações, o encerramento dos portos, o congelamento de depósitos, a suspensão de transferências, as provocações dos satiagrais, os ataques aos postos fronteiriços, sob protecção das autoridades indianas, os atentados terroristas e a acção de agentes subversivos no interior de Goa, tinham por fim tornar insegura ou impossível a vida e fazer recair sobre Portugal a responsabilidade pelo sofrimento das populações. Mas a União Indiana que tinha podido asfixiar os estabelecimentos franceses esqueceu as circunstâncias que a nós, com um pouco de imaginação, boa vontade e alguns recursos, nos permitiram vencer as dificuldades: era o mar largo em frente de Goa, Damão e Diu; era o espaço aéreo que sem violação abusiva não podia ser perturbado.

Com estes elementos moldou-se nova vida para o Estado da Índia: intensificaram-se as comunicações com a África Portuguesa, com a Metrópole e com o resto do mundo; desenvolveu-se a economia da terra e a produção das minas; apetrechou-se o porto de Mormugão como talvez não se encontrem muitos outros na Ásia e seguramente não na União Indiana; aumentaram-se as exportações, o caminho de ferro deixou de dar prejuízos - e Goa pôde respirar e viver, como se a União Indiana não existisse e não fizesse pesar sobre as fronteiras a sua hostilidade.

Os sucessivos fracassos da política indiana, em face de uma decisão firme que pôde com dignidade aparar todos os golpes e sarar todas as feridas, fez exasperar os inspiradores do Primeiro-Ministro que entretanto permitia a diversão de Dadrá e Nagar Aveli. Aí era mais favorável a posição da União Indiana e desvantajosa a de Goa: os territórios constituíam enclaves, rodeados inteiramente de território inimigo, e o governo indiano, dentro do respeito sempre apregoado pela legalidade e pela paz, não permitiu mais as ligações. Não as permitiu mesmo depois de o Tribunal Internacional de Haia, a cujo julgamento a União Indiana não pôde esquivar-se, ter reconhecido em acordão de 12 de Abril de 1960 os direitos de Portugal. Para selar o completo desrespeito pela soberania portuguesa e os desprezo pelo veredicto da mais alta Magistratura internacional, o Parlamento de Nova Delhi acabou por aprovar em decreto a anexação dos referidos territórios.

Podemos concluir que nem na ordem dos factos, nem das razões expendidas, nem no terreno do direito e nas salas dos Tribunais, nem nas mais altas instâncias políticas, como daqui a pouco veremos, a União Indiana, embora servida pelos poderosos meios da sua influência, pôde ganhar a Portugal. O nosso direito opunha-se às suas ambições, e era tão simples, tão claro, tão inocente que todos se viam forçados a reconhecê-lo e muitos a reconhecer-lhe as vantagens para as populações, em paz entre si e no seio da Nação Portuguesa. Era de mais.

Batida em todos campos, o único recurso que restava à União Indiana, visto não se libertar da sua obsessão em relação a Goa, era o emprego da força, e a única possibilidade nossa de o evitar era obrigá-lo a montar uma operação em grande escala, com completo desprestígio do seu pacifismo e escândalo do mundo. Muito tempo se pensou na União Indiana que um simulacro de levantamento em Goa podia prestar-se a uma intervenção de simples polícia que o Primeiro-Ministro apresentaria ainda como serviço gratuito à paz. Era desconhecer as circunstâncias locais: de um lado, o moral da população, a ausência absoluta de conflitos raciais ou religiosos, o nível de vida, embora modesto, muito superior ao da União Indiana, a liberdade de que gozava no seu pequeno país, como se lhe referia, e finalmente a união de séculos com Portugal não convidavam à aventura de mergulhar, com interesses, com tradições, com a nobreza da história, no pandemónio de lutas e miséria da União Indiana; de outro lado, a vigilância das autoridades fazia fracassar todos os planos. Tal método não se afigurou viável, embora só tivesse sido abandonado no último momento.

António de Oliveira Salazar

União Nacional-Salazar 

Discurso de Salazar sobre a invasão e ocupação de Goa pela União Indiana.

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