Acerca de um cidadão que foi o primeiro responsável pelo Governo de um estado durante quase meio século, milagre ou fenómeno seria que só houvesse motivos de regozijo, e idêntico fenómeno seria se houvesse apenas motivos de compunção, de indignação e de justa revolta. Quanto a Salazar, e segundo o que lemos e ouvimos, parece não dispormos de qualquer razão justa para o isentar seja de que culpa for. E, ainda quando o dedo lhe seja apontado à custa de anacronismo, ou de falta de rigor cronológico, dizem-me que ninguém leva a mal, isto é, se não teve culpa é como se a tivesse, de onde a injusta acusação carecer de relevo. Ocorre à mente o chamado sofisma absurdo, em que se confunde a categoria de tempo com a categoria de acção, a modos de quem diz: morreu quando bebia água; logo, morreu por beber água. Também havia o silogismo chamado «cornudo», com o qual a rapaziada se divertia a partir das aulas de Lógica, efectuando múltiplas variações, as mais inusitadas como seja: perdeste os cornos; ora, não tinhas cornos: logo, não perdeste os cornos. Ou seja, convocando o enigma peculiar ao falso silogismo: preso por ter cão, preso por não ter cão.
Em diversos lugares, os mais prestigiados, tem-se afirmado que a primeira Faculdade de Letras do Porto, criada em 1919, pelo então ministro da Instrução, o filósofo Leonardo Coimbra (que para tanto extinguiu a venerável faculdade coimbrã), foi extinta por Salazar em 1928. No 4º volume do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, 1998, a páginas 360-361, na biografia do Poeta Adolfo Casais Monteiro, lá se escreve: «Frequentou a antiga e famosa Faculdade de Letras do Porto, que a ditadura de Salazar extinguiu» (sic). Ora, o que se considera um erro cronológico sem importância, torna-se um juízo ideológico condenável do ponto de vista do conhecimento histórico, e ainda mais grave, do ponto de vista ético, porque: a) se atribui a um sujeito um predicado que lhe não inere, como se afirmássemos que a água é vinho; b) se ensina, a leitores não necessariamente informados, um erro como se verdade fosse. Não me incumbe a defesa de Salazar, nem disponho de poder e de saber para refutar as exegeses que o situam no palco, como principal actor de todos os malefícios. E também, ele, decerto, não precisará de testemunhos exógenos, porque os documentos de chancelaria testificam a verdade. Julgo eu!
Basta prestar atenção à cronologia oficial, documentada pelo Diário do Governo e pela história, para se verificar que, entre os malefícios de que o Porto se pode queixar, o relativo à Faculdade de Letras não se confirma, a saber:
O decreto que extingue a Faculdade de Letras tem o n.º 15 365, a data de 12 de Abril de 1928, e foi publicado no Diário do Governo, n.º 85, 1.ª série, no dia 14 do mesmo mês e do mesmo ano, a páginas 922-923. O Governo tinha tomado posse dias antes, sob a presidência do general José Vicente de Freitas (falecido, 1952). O Ministério da Instrução fora entregue ao médico minhoto, portuense adoptivo, Alfredo Mendes de Magalhães (falecido, 1957), que chegou a presidente da Câmara do Porto em 1933. Salazar não fez parte deste governo, porque, e caminhando à retaguarda: Em 1 de Junho de 1926, Salazar é indigitado para o Governo. Vai a Lisboa, e, no dia 3, o seu nome aparece no Diário do Governo como nomeado ministro das Finanças. Recusa a nomeação e, no dia 4, regressa a Coimbra. Após diversas tentativas de Mendes Cabeçadas, que chegou a deslocar-se a Coimbra, para obter de Salazar um «sim», consegue o que desejava, e Salazar tomou posse do Ministério das Finanças no dia 12 de Junho, mas, no dia 17 desse mês de 1926, solidário com os demais membros civis do Governo, que estavam descontentes com o filme governativo, renunciou e regressou de novo a Coimbra. Lá viveu, com pouco frequentes deslocações a Lisboa, na qualidade de presidente da Comissão de Contribuintes e Impostos, cargo que aceitara e lhe deu, sem dúvida, prática na análise das contas do Estado. E a situação de Salazar manteve-se até 27 de Abril de 1928, data em que, no seguimento de um processo cujos aspectos são irrelevantes para o caso, o Presidente Carmona, tendo obtido o «sim» de Salazar, o nomeou ministro das Finanças (Decreto n.º 15 409, de 27 de Abril de 1928, no Diário do Governo, n.º 95, 1.ª Série de 28.4.1928, a páginas 1075).
A ditadura de Salazar demorou um pouco mais a implantar-se.
Esclarecidas as datas, importa citar três factos:
O primeiro, que a criação da Faculdade de Letras do Porto, por Leonardo Coimbra, foi uma espinha atravessada na corporação universitária do Mondego. Professor na Faculdade de Direito, Salazar não foi pessoalmente afectado pelo decreto leonardino, mas, enquanto membro da universidade, cremos que foi solidário. O segundo: face ao radicalismo de decreto de Mendes de Magalhães, o Governo do qual Salazar já fazia parte, e apesar da miséria financeira, emite uma lei correctiva, o Decreto n.º 15 856 (Diário do Governo, n.º 186, 1.ª Série, 15.8.1928, a páginas 18-19), pela qual se permitiu o funcionamento da faculdade até à licenciatura do último aluno! Que foi o já falecido Dr. António Alvim, da freguesia lisboeta do Sacramento, que obteve a nota de dezasseis valores (1933).
Terceiro e último aspecto. Em 17 de Agosto de 1961, sendo ministro da Educação o ilustre professor Manuel Lopes de Almeida, o Governo atribuiu ao Porto uma nova faculdade. Talvez pelo desejo de uma colagem à fausta história da primeira. Impossível: se o decreto da fundação quisesse restaurar, seria como dar o ámen à faculdade leonardina, de que, enquanto coimbrão, Salazar teria algum pejo; e, corolário do que nos aparece, é o articulado do Decreto n.º 45 864 (Diário do Governo, n.º 190, 1.ª Série, 17.8.1961). Esse articulado não diz restaurar, antes reza «... criando a Faculdade de Letras do Porto...». Salazar não restaura; cria, como se antes nada tivesse havido. Esperemos então que, por força d'O Diabo, já que outros seres não o conseguiram, não se volte a repetir, em escritos de pessoas responsáveis, o que não passa de um ostensivo erro de cronologia, suspeitável de intencionalidade...
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