Augusto da Costa Dias, recentemente falecido, descreve-nos, num livro editado em 1975 com o título de Literatura e Luta de Classes, a história deste neo-realismo. Logo em 1930, "à nascença - diz-nos Costa Dias - o neo-realismo é contemporâneo dos primeiros esforços para a reorganização do partido comunista e destina-se a ser a sua expressão na batalha cultural e ideológica" (p. 65). É neste sentido que actua e se desenvolve. Faz da "sua imprensa uma via de difusão das consignas políticas" (p. 73), "combateu as ideologias e filosofias burguesas (que se situavam) à margem do fascismo, sem compromissos mas também sem conflitos com ele" (p. 66); "difundiu as ideias marxistas na universidade de Coimbra numa data que podemos calcular entre fins da década de 30 e os dois primeiros anos da seguinte" (p. 79); "desenvolveu um imenso labor de animação cultural-política em múltiplos planos: imprensa regional, organização de bibliotecas, trabalhos em clubes, palestras, cursos, exposições"; "controlava e dirigia colaboração para variadíssimos jornais da província" e "em comissões, discutia, planeava os temas dos artigos a enviar, notícias sobre os livros recentes do neo-realismo [...], debatia o tipo de linguagem mais adequado e acessível [...] recrutava, entre jovens, divulgadores, escritores que balbuciavam os primeiros passos, para um trabalho de anonimato, escondido em pseudónimos" (p. 80/81); combateu, entre as "ideologias e filosofias burguesas", os escritores e artistas "sem qualquer identidade com a luta de classes" (p. 66), escritores e artistas que Costa Dias não nomeia mas que são, ou porque são, os que compõem a teoria da nossa autêntica cultura: os modernistas do Orfeu, como Pessoa, Sá-Carneiro e Almada, os epígonos da Renascença Portuguesa e os próprios Leonardo Coimbra e Pascoaes, os poetas e romancistas da Presença, então em pleno vigor especulativo, como Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões e, sobretudo, José Régio, finalmente os pensadores da "filosofia portuguesa" tendo à frente José Marinho e Álvaro Ribeiro. Sobre os três primeiros grupos, a sanha da organização obedecia a uma consigna, durante todos esses anos extensiva a qualquer escritor ou obra independente, que Costa Dias exprime nestes termos grosseiros: "As suas interrogações (as desses escritores e artistas) dirigiam-se às cisternas da vida íntima (individual, em todas as suas fermentações e decomposições onde explodiam e bufavam apenas angústias, impotências, rebeldias privadas sem qualquer identidade com o pesadelo da luta de classes" (p. 66). Sobre o último daqueles grupos, a vesânia junta-se à sanha e Costa Dias orgulha-se de ter sido o bloco marxista do neo-realismo que impediu os pensadores da "filosofia portuguesa" de exercerem o magistério, ou apenas a influência, que, a avaliar pelas obras de Álvaro Ribeiro e José Marinho, o leitor verificará como teria sido libertador. Deles diz Costa Dias: "Aos homens do neo-realismo se deve o não passarão às filosofias fascistas. Nunca excederam as fronteiras das suas ilhotas. A sua última tentativa - "a filosofia portuguesa" de Álvaro Ribeiro, António Quadros, Orlando Vitorino e consortes [sic] - não chegou a escapulir-se da sua lura de traficantes de mercado negro ideológico" (p. 85).
Pois bem: todo este trabalho de deturpação era realizado, desde 1930, em pleno domínio "fascista", com censuras, polícias, perseguições de que Costa Dias faz mais uma vez, e muitas vezes, o aparatoso rol e que deveriam, naturalmente, impedir que as suas vítimas, os neo-realistas, tivessem qualquer possibilidade de acção. Ora não foi isto o que aconteceu. O trabalho fez-se durante 44 anos, ininterruptamente, espectacularmente, como Costa Dias descreve e nós sabemos que foi. Durante 44 anos o bloco marxista pesou, omnipotente e esmagador, sobre a cultura portuguesa, e Eduardo Lourenço não podia deixar de ter razão e razões para denunciar, como também Costa Dias nos informa, que "os neo-realistas eram terroristas" (p. 84). Não passará de uma suspeita justificada ou será uma conclusão necessária que um acordo, talvez tácito, mas comprovadamente eficaz se estabeleceu entre os governantes ou o establishment fascista e a organização marxista para a deturpação da cultura? Como, de outro modo, será possível explicar tudo o que Costa Dias orgulhosamente descreve e o mais esconde ou cala e nós ainda não esquecemos? Como sem esse acordo, explicar, por exemplo, que as "filosofias fascistas", como C. Dias diz, pudessem, em tempo de fascismo, serem fechadas "na sua lura" pelos marxistas enquanto estes se exprimiam, expandiam e dominavam com a amplitude que também C. Dias nos descreve? Não era a "filosofia portuguesa" e a liberdade de pensamento da literatura e da arte o temeroso inimigo comum a marxistas e salazaristas? Aliás, o próprio Costa Dias confirma, de algum modo, a existência desse acordo quando se indigna com o facto de "prolongando-se o neo-realismo em manifestações ricas" [sic] desde 1930, os governantes fascistas tenham, nos anos 60, "facilitado a liberdade de imprensa [...] para se declarar [como Eduardo Lourenço fez] que os neo-realistas eram terroristas" (p. 84), o que claramente significa que sem liberdade de imprensa que os governantes "fascistas" controlavam não seria possível declarar o que o neo-realismo era.»
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