segunda-feira, 1 de junho de 2020

Marcello Caetano, culpado ou vítima?



Marcello, o Mestre da contradição - Jornal O DIABO


«Correu auspiciosa a tomada de posse de Marcello Caetano como presidente do Conselho de Ministros, envolta numa atmosfera de destendimento e esperança. Durante largos anos, Caetano tinha tecido a sua teia de apoios e ia começar a dispô-los nos principais lugares. Tentou liberalizar o país, embora com passos comedidos e seguros - a tal "evolução na continuidade" - e tentou desenvolver a economia do país de forma a reflectir-se numa melhoria das condições sociais da população (o "Estado Social"), o que conseguiu.

Liberalizou o regime dando ordens para que houvesse uma maior tolerância na censura, cujo nome acabou por mudar para "exame prévio"; permitiu o despontar de formações políticas, como a SEDES e a "Ala Liberal", tentou revitalizar e modernizar a União Nacional, que crismou de Acção Nacional Popular; permitiu o regresso do exílio ao bispo do Porto e a Mário Soares, ainda antes das eleições de 1969, e "suavizou" a actuação da PIDE, que rebaptizou de DGS.

No entanto, relativamente ao problema maior que o país tinha em mãos, a defesa do Ultramar, nunca se conseguiu perceber muito bem aquilo que pretendia ou que desejava fazer. Tentou criar uma via intermédia entre os ortodoxos do regime - conhecidos na gíria popular como "ultras" - e a oposição dita democrática, com óbvia exclusão do PCP.

Porém, não conseguiu consolidar uma força autónoma e acabou por ir desagradando a todos, o que, numa escalada dolorosa para o próprio e dramática para o país, acabou por o deixar quase isolado e sem saber o que fazer. Algumas "ingenuidades", quase inverosímeis, marcaram também o seu percurso. Eis, em síntese, as principais etapas deste "calvário".

Começou por reabilitar o grupo de personalidades que tinham entrado na "Abrilada" de 1961, a quem, aliás, tinha estado ligado. Deste modo, Costa Gomes foi logo promovido a general e Almeida Fernandes foi para presidente do Conselho de Administração da CP.

Outra das medidas tomadas por Marcello Caetano foi proibir a PIDE, quando mudou o seu nome para DGS, de desenvolver qualquer acção contra o PCP. [Dados obtidos em entrevista ao inspector António Capela, da DGS, em Março de 2008]. Não por acaso, foi precisamente nessa altura que ocorreram vários atentados e sabotagens de certa gravidade, como foi o atentado à bomba contra o navio Cunene, no porto de Lisboa (Outubro de 1970); o triplo atentado no mês seguinte, em Lisboa, contra a Escola Técnica da DGS, ao Centro Cultural Americano e aos armazéns do Cais da Fundição; em Março de 1971, destruição de cerca de uma dezena de aviões e helicópteros na Base Aérea de Tancos; no mês seguinte, desapareceu o navio Angoche, ao largo de Moçambique, o que causou 23 desaparecidos. Estas acções foram desencadeadas pela Acção Revolucionária Armada, embora também se tenham verificado muitos atentados provocados por outros grupos e focos de agitação social. Ao fim de oito meses, a ordem foi revogada.

No seu primeiro discurso, a 17 de Novembro de 1968, na Assembleia Nacional, Marcello Caetano introduziu alterações de semântica e usou de ambiguidades que fizeram nascer dúvidas no ideário da defesa ultramarina e na justeza das razões até então defendidas.

Durante a campanha eleitoral de 1969, Marcello referiu-se à "progressiva autonomia" das províncias ultramarinas, o que abriu fissuras no seio do regime e, na sequência disso, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, demitiu-se. Com efeito, o discurso onde essa ideia foi avançada, proferido a 27 de Setembro de 1970, caiu mal entre os indefectíveis do Estado Novo. A sua análise da situação em África mostrava que o novo chefe do Governo estava disposto a abandonar um conjunto de valores que eram precisamente os pilares que sustentavam a defesa do Ultramar. Não surpreende por isso que os conservadores se tenham afastado definitivamente e que não tenha agradado aos "progressistas" e liberais, que o acusavam constantemente de ficar aquém das expectativas.

Durante a revisão constitucional de 1971, que fixou a autonomia progressiva das províncias, Angola e Moçambique subiram à categoria de Estados e todos os territórios passaram a dispor de orgãos electivos de governo próprio, o que convenceu os meios internacionais de que o governo português pretendia mudar a sua política ultramarina. No entanto, estas medidas foram mal recebidas nos meios conservadores, o que obrigou Marcello Caetano a inflectir à direita no discurso comemorativo dos 45 anos do 28 de Maio, em Braga.

Entretanto, começaram os equívocos com Spínola. Em 1972, era necessário eleger o Presidente da República. Houve discussão, mas ninguém parecia ter coragem de substituir o almirante Tomás, que já levava 14 anos no cargo. Chegou a pensar-se em Spínola (isso talvez tivesse evitado o 25 de Abril), embora sem grande convicção, o que a avaliar por aquilo que se passou mais tarde não teria sido muito prudente. Ainda assim, consideramos um erro grave de avaliação não se ter sentado outra pessoa em Belém. Do mesmo modo, dever-se-ia ter preparado as coisas - se bem que isso fosse um gesto arriscado para os defensores do regime - para que a eleição do Presidente da República voltasse a ser feita por sufrágio directo e universal.

As eleições legislativas realizaram-se em 1973. A oposição reuniu em Aveiro, onde a política ultramarina foi atacada sem piedade. Houve distúrbios. Os liberais, por sua vez, também se reuniram e fizeram uma viragem à esquerda. Pela mesma época, o Congresso dos Combatentes reuniu no Porto, com o objectivo de insuflar novo ânimo e levar a cabo novas acções tendo em conta a luta que estava a ser travada, um encontro que foi mal recebido pelo governo. Marcello Caetano estava cada vez mais isolado.

A partir de 1973, a agitação nas Forças Armadas começou a aumentar e as relações político-militares complicaram-se. Para o agravamento da situação nos quartéis contribuíram decisivamente duas questões: numa conversa entre Marcello Caetano e António de Spínola, à data governador da província da Guiné, onde a situação militar se tinha agravado (em resultado da transferência do esforço da acção socioeconómica da área do Chão Manjaco para sul, mas agora para bater militarmente o PAIGC), este último terá aventado a hipótese de se encetarem negociações com o PAIGC. O chefe do Governo recusou formalmente a proposta, dizendo-lhe que "para defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho a outras negociações".

Spínola não terá digerido bem a resposta de Marcello Caetano e uma vez mais começou a circular nas Forças Armadas o "fantasma" de Goa, Damão e Diu, cuja derrocada militar provocara um grande mal-estar em 1961.


11 de Março 1975. A casca de banana que tramou Spínola

A segunda questão teve que ver com a falta de candidatos às academias militares, na verdade as instituições que alimentavam as fileiras dos quadros permanentes, sobretudo nas armas combatentes. Essa situação obrigou a uma multiplicação de comissões nos teatros de operações, por parte dos oficiais do quadro permanente, o que originava, naturalmente, um grande cansaço físico e psíquico (embora fizesse parte das vicissitudes da profissão), mas também um deficiente enquadramento das tropas (o número de unidades aumentava desproporcionalmente aos quadros), o que obrigou a recorrer mais frequentemente aos oficiais milicianos. Com o tempo pensou-se inclusivamente em facultar o acesso de milicianos com o curso liceal e com experiência de campanha às escolas militares e assim reforçar os efectivos do quadro permanente. No início, estes oficiais faziam o curso normal da Academia Militar e entravam na escala hierárquica à esquerda dos oficiais oriundos de cadetes do mesmo ano. No entanto, como este artifício não resolveu o problema da falta de efectivos, foi criado um curso especial, mais acelerado, e permitiu-se que os oficiais que o concluíssem fossem integrados no quadro permanente com a antiguidade de miliciano, ultrapassando assim muitos oficiais oriundos de cadetes. Esta medida estava contemplada, em termos sintéticos, no decreto 353/73, de 13 de Julho. O diploma foi imediatamente criticado por uma grande parte dos oficiais de carreira, sobretudo capitães, tendo muitos deles enviado exposições através da cadeia hierárquica. Ao mesmo tempo que o governo tentava corrigir a matéria através do decreto 409/73, foi redigida contra o decretos uma exposição colectiva de oficiais em serviço na Guiné. O governo convenceu-se que se tratava de uma manobra concertada e começaram a circular rumores de um movimento de capitães. Resultado: as regras da disciplina começaram a ser desafiadas. No fim do ano, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general Costa Gomes, apresentou ao chefe do governo as reclamações que lhe tinham feito chegar.

A opinião pública pouco se apercebeu do que se estava a passar. No entanto, os acontecimentos precipitaram-se. O "movimento dos capitães" transformou-se rapidamente e as reivindicações corporativas assumiram um pendor político, onde pontificavam as ideias-mito que assaltavam a sociedade da altura e que foram inoculadas e espalhadas nos meios castrenses através dos oficiais milicianos oriundos dos meios académicos, onde tais ideias estavam mais arreigadas e que iam ao arrepio da permanência portuguesa em África e dos princípios em que se baseava o Estado Novo. Viviam-se os ideais da fraternidade, do amor livre, da paz mundial, da sociedade da abundância e do bem-estar para todos; as ideias progressistas na Igreja estavam na moda, que muitos associavam, ao Concílio Vaticano II; fala-se na necessidade do diálogo, do pacifismo, do desarmamento e da ilicitude de qualquer guerra, etc.

Juntamente com o movimento dos capitães, havia novidades nas forças políticas hostis ao governo. Segundo algumas informações, tinha sido assinado um pacto entre socialistas e comunistas, no sentido de condenar em conjunto a permanência de Portugal fora da Europa. Foi então que surgiu a exigência da "solução política" para o problema ultramarino, o que, obviamente, significava entregar o poder aos movimentos independentistas, e no mais curto espaço de tempo. É de crer que muitos dos oficiais envolvidos nas conspirações que levariam ao derrube do governo e do regime não se apercebessem destas movimentações e muito menos das consequências que resultariam da sua acção.

Marcello Caetano estava cansado e desgostoso dos homens e da vida. A 11 de Março de 74 pediu a demissão ao Presidente da República. Este demorou três dias a responder-lhe, mas a verdade é que não procurou alternativa (tendo morrido o prof. Salazar, o velho almirante - pessoa, aliás, de excelente compleição moral - não estava preparado para ser o "número um"). Limitou-se a convidar o presidente do Conselho de Ministros para um café, na sua residência, onde lhe disse que estavam os dois juntos naquilo e que agora era tarde para mudar. Outro erro.

Marcello Caetano, aparentemente sem saber o que fazer, concebeu um plano em que iria inventar uma crise para sair da crise: um conflito entre o ministro do Ultramar e um governo de uma província (Angola), que seria agravado artificialmente e que resultaria numa declaração unilateral de independência! Tinha-se entrado no desvario! Em seguida, apareceu o livro de Spínola, que terá recebido mais inputs de outros do que do próprio, com ideias requentadas, que jamais seriam aceites por quem nos combatia -, e, por isso, não resolveria nada - e cuja autorização para publicação foi dada sem aparentemente ninguém o ter lido, baseado num parecer do general Costa Gomes, que há mais de 20 anos ia passando entre os intervalos das crises que cruzava, dando uma no cravo e outra na ferradura. Uma história que parece muito mal contada.

Enfim, o resto é conhecido: intentona frustrada nas Caldas, a 16 de Março; convocação dos oficiais-generais para uma sessão de apoio ao chefe do Governo e da política ultramarina; demissão dos generais Costa Gomes e Spínola (que se recusaram a estar presentes); Grândola Vila Morena a 25 de Abril. Entre as Caldas e Abril foram presos três oficiais. Outra história incompreensível. A explicação (não exaustiva) encontra-se num artigo intitulado "Uma missão (quase) impossível". [Publicado na revista Macau, II série, n.º 56, de Dezembro de 1996]. O tenente-coronel Mariano Tamagnini Barbosa foi encarregado de uma missão secreta em Macau, em Fevereiro de 1974. Como precisava de um passaporte diplomático especial foi levantá-lo à sede da DGS, em Lisboa. O subdirector da polícia, Barbieri Cardoso, estranhou o caso e quis saber o que se passava. A certa altura da conversa, o subdirector disse o seguinte: "Já que o senhor coronel me parece boa pessoa e pertence à Força Aérea onde o meu irmão é médico, deixe-me dar-lhe um conselho: vá para onde for, não volte tão cedo a Portugal, fique por lá, se regressar encontrará o seu país irreconhecível, dominado por comunistas". Depois, prosseguindo num tom de voz cada vez mais exaltado, declarou: "O responsável por essa desgraça é esse f. da p. do Marcello Caetano, que não permite que metamos na linha esses seus colegas capitãezinhos, que andam para aí a conspirar e a fazer reuniões para derrubarem o regime. Nós estamos a par de tudo, sabemos o que dizem, o que planeiam e onde se reúnem, mas esse canalha do Marcello é que nos dá ordem para não actuarmos.

"É preciso ter paciência e compreensão para com essa juventude", diz-nos. Nós estamos manietados, não podemos fazer nada. Com o doutor Salazar era diferente, ordenava-nos logo "dêem uns abanõezitos nesses garotos e ponham-nos na ordem".

Note-se que este episódio se passou no dia 2 de Março de 1974, a menos de dois meses do 25 de Abril, o que mostra bem como a DGS estava por dentro do "movimento dos capitães" e Marcello Caetano devidamente informado.

Malomil: As primeiras dissensões entre Spínola e Marcelo Caetano ...

Aquelas palavras foram premonitórias e se juntarmos a todas as peças deste puzzle ainda mal ajustado o facto de Marcello Caetano se ter recusado a seguir para Monsanto no 25 de Abril, como estava previsto, obrigando o agente da DGS que o foi buscar a casa a levá-lo para o Quartel do Carmo, onde recusou a fuga (que era possível e que lhe foi proposta) e se obstinou em receber Spínola; de se saber (por exemplo) que este não iria acabar com a DGS, apenas substituir o director pelo inspector Coelho Dias, seu condiscípulo do Colégio Militar; o facto ainda de ninguém ter dado ordens e assumido a condução das operações para conter o golpe em curso, etc., tendo tudo isto em conta, pode concluir-se, sem grande margem para erros, que o então chefe do Governo "desejaria" o golpe ou que, no mínimo, não estava disposto a anulá-lo e, nesse caso, teria havido alguma forma de entendimento com Spínola (ficaria Marcello Caetano como Presidente da República e Spínola como presidente do Conselho de Ministros?). [Marcello estava, aliás, preocupado com um possível golpe de "ultras", encabeçado pelo general Kaúlza de Arriaga (uma das principais figuras que fizera abortar a "Abrilada" em 1961!), tendo chegado a dar instruções à DGS para o vigiar. De facto, houve algumas movimentações na área mais conservadora do regime, que foi habilmente esvaziada após uma denúncia pública do então major Fabião, numa reunião no Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, em 17 de Dezembro de 1973].

No entanto, a vaidade de Spínola, que só encontrava paralelo na sua falta de preparação política, como aliás se viu na longa série de equívocos e desencontros que nos últimos anos marcaram as suas relações com Marcello Caetano e as pressões e contradições existentes no Movimento das Forças Armadas, que o general do monóculo nunca dominou ou influenciou maioritariamente, a sua vaidade, dizia, ditaram a saída rápida do presidente do Conselho de Ministros para o Funchal e dali para o Brasil. Fim de história e início de outra».


João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).

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