Reportando-nos, contudo, à cronologia dos factos mais salientes do 25 de Abril da traição, não deixa de ser curioso referir que o PC evitava hostilizar, na fase quente de Julho-Agosto de 1974, os agrupamentos políticos de centro e de centro direita, já por essa altura com certa implantação a nível nacional, como era o caso dos Partidos da Democracia Cristã, Centro Democrático Social, Liberal e do Progresso. No entanto, não deixava de afirmar posições e uma atitude crítica em relação ao PPD, apontando-o como cúmplice da iniciativa contra-revolucionária que teria sido assumida pelo Prof. Adelino da Palma Carlos.
A popularidade e o prestígio do general Spínola (interna e externamente), e bem assim o seu «peso político», obstavam à conveniência de uma confrontação prematura. Por isso, o PC, continuando a aparentar propósitos francamente cooperantes com o presidente da República e com as demais forças políticas, passou a empenhar-se num processo subterrâneo de actuação que visava a criação de condições propícias ao desencadeamento de uma nova crise que pudesse provocar a ruptura entre o presidente Spínola e o «sector progressista» do MFA, já por então directamente controlado pelos comunistas. Nessa acção solapada, desempenharia papel proeminente o CDE, que se achava afastado da coligação governamental por exigência expressa do general, embora constituído como «organização satélite» do PC, visto ter sido entretanto abandonada pelos socialistas e outras facções de esquerda e do centro.
A aceleração do processo de descolonização, acentuada especialmente a partir da «comunicação» do presidente Spínola, no final de Julho, reforçaria, naturalmente, as tensões potencialmente existentes e cristalizadas à volta da crise Palma Carlos. O mês de Agosto, viria assim a ser para o Partido Comunista um período de angústia e de receios - já que o facto de o presidente da República ser o efectivo detentor da força política e militar, lhe possibilitaria, a todo o tempo, o uso da iniciativa num campo e noutro. E esta só não veio a produzir efeitos, a despeito de sinais que a chegaram a dar como próxima em diversas oportunidades, pela acção retardadora exercida pelo controverso general Costa Gomes, que logrou, sempre, fazer adiar a eclosão de confrontos no meio militar, como única forma de clarificar a situação e de repor a autoridade do Estado. Por outro lado, a confrangedora inexperiência política dos mais próximos colaboradores do presidente Spínola e as hesitações deste, favoreciam os desígnios da chamada «facção progressista» que, desse modo, conseguiu ganhar o tempo necessário à montagem da sua própria conspiração de caserna - reservando-se a altura oportuna para actuar.
Enquanto isto, e na sequência de visitas a unidades militares de certa importância operacional, onde improvisava discursos dramáticos e patéticos, chamando os portugueses à razão, no meio da desordem institucional que ia pouco a pouco subvertendo a Nação portuguesa - o presidente Spínola teve ocasião de tomar posições muito firmes no Regimento de Pára-Quedistas, em Tancos, em 2 de Agosto, na comunicação ao País no dia da Independência da Guiné, em 11 de Setembro (do mais alto significado quanto ao seu «estado de espírito»); no improviso proferido no Quartel do Carmo, no dia seguinte, e, ainda, antes da sua mensagem de renúncia, em 30 desse mesmo mês, nas palavras proferidas no acto de posse do Governador de Cabo Verde, em 21 e no discurso proferido na abertura da reunião de trabalho com as Forças Vivas de Angola, em 27, a que se seguiria a «montagem» do 28 de Setembro e o acto de renúncia, e, com este, o fim do consulado Spinolista, de pouco mais de cinco meses, e o início da «galopada» para o desfazer da Pátria...
O «28 de Setembro» viria a ser, assim, o «magistral» aproveitamento, pelo Partido Comunista e forças suas aliadas, de uma longa crise que vinha preparando (dentro e fora das Forças Armadas), em estrita obediência às instruções de Ponomarev, com a «passividade colaborante» de militares e civis mais estreitamente ligados ao general Spínola os quais, por algumas horas, na noite de 28 para 29 de Setembro, apesar da sua incapacidade de resolução, chegaram a ter nas mãos a possibilidade de fazer regressar o 25 de Abril da Esperança à sua pureza original [???] e salvo desse modo o País das mutilações e das desgraças que tão duramente depois experimentaria em plena ditadura anarquista de Vasco Gonçalves e seus sequazes.
A «maioria silenciosa» e a eventual conspiração de um «golpe» reaccionário, para um regresso ao passado - mais não foram que uma trapaça idiota, habilmente «montada» pelo Partido Comunista... A renúncia do presidente Spínola, na manhã de 30 de Setembro, lida perante o Conselho de Estado e a designação do general Costa Gomes para a Presidência da República, marcaram o termo dramático de um primeiro capítulo da história do movimento militar do 25 de Abril e o início de uma escalada que conduziria à apropriação da «revolução dos cravos» pelo Partido Comunista e seus aliados naturais. De notar, que, entre estes, não se contavam apenas quantos ideologicamente se identificavam com ele, mas também todos aqueles (militares e civis) a quem a nova situação política permitiria um acesso fácil a orgãos de poder ou a posições de mando, ou de simples destaque na cena nacional e internacional - e que, naturalmente, por mero instinto de defesa, passaram a temer que qualquer recuo ou esmorecimento na marcha do processo impulsionado pela «esquerda activa» viesse a originar a perda dos privilégios acabados de alcançar de mão beijada... Exemplo expressivo, a este respeito, o do almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional, quando chamado a desempenhar as funções de presidente da República durante a ausência, nos Estados Unidos (em Outubro de 1974), do presidente Costa Gomes. Em declarações a um semanário pró-comunista de Lisboa, e referindo-se à potencial ameaça contra-revolucionária, afirmaria não ter dúvidas de que a sua cabeça e a dos restantes responsáveis do MFA estavam em jogo e, por isso, nem ele nem os outros se dispunham a perder...».
Ao apodo de «fascista», que já se aplicava, por tudo e por nada, a quantos não se mostravam dispostos a pactuar mais abertamente com actuações declaradamente esquerdizantes, somou-se, a partir do começo de Outubro, outro epíteto «infamante» - o de reaccionário, equivalente, no léxico comunista-internacionalista, a agrário, a patrão, a simples proprietário...
Por iniciativa selvagem, de um revolucionarismo primário e lorpa, dos empregados bancários (desde logo organizados num Sindicato de obediência comunista), foram «congeladas» dezenas e dezenas de contas de depósito, impedindo-se desse modo que os seus respectivos titulares movimentassem os seus dinheiros. Esta medida discricionária e irresponsável, começou por impedir que os titulares nessas condições, exercendo actividades comerciais ou industriais, pudessem proceder, a tempo e horas, ao pagamento de salários e ordenados aos trabalhadores das empresas ou firmas a que se achavam ligados.
Fazendo por ignorar as situações de facto consumado, assim criadas, a máquina de propaganda movida dinamicamente pelo Partido Comunista, pelo CDE, que voltara de novo ao primeiro plano no enquadramento governativo, no pós-28 de Setembro, e ao serviço de uma parte do Governo e do MFA, passou a acusar sistematicamente de «sabotadores económicos» aqueles mesmos reaccionários que praticamente colocara na situação de insolventes e de falidos - e isto relativamente aos sectores industrial e comercial assim como ao agrícola. Efectivamente, e sobretudo nas regiões rurais do Baixo e Alto Alentejo, como em parte do Ribatejo, as células locais do PC, depois da imposição da prática de salários que exorbitavam da realidade da própria exploração da terra, obrigaram, sem possibilidades de recurso, aos agrários, mesmo pequenos e médios agricultores, grande parte dos quais rendeiros e seareiros, a admitir ao seu serviço um número excessivo e desnecessário de trabalhadores rurais, com o claro objectivo de os exaurir financeiramente. Com idêntico objectivo, promoveram (em fins de Janeiro de 1975, e nos dois meses seguintes), a ocupação arbitrária das chamadas grandes propriedades agrícolas, especialmente aquelas que pelo apuro e esmero da sua exploração foram as primeiras a ser cobiçadas... Num grande comício em Beja, em Fevereiro de 1975, o Secretário de Estado da Agricultura, Dr. Esteves Belo, anunciara a «expropriação de terras e seu arrendamento compulsivo», medidas essas que então classificou como «um grande passo no caminho da reforma agrária», que viriam afinal a encontrar a sua consagração, num clima de violência e de atropelo a que o Decreto-Lei 406-A/75, pouco depois publicado, daria cobertura legal. Não era decididamente a «Reforma Agrária» mas um processo monstruoso de latrocínios e de confisco da propriedade fundiária alentejana.
Em documento distribuído à imprensa, em 9 de Janeiro de 1976, o Engenheiro Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura e Pescas, dizia que «o processo da reforma agrária se desenvolvera até esta data praticamente sem controle, nem enquadramento por parte dos organismos estatais a quem cabia justamente a sua condução». Mais: «O Decreto-Lei 406/75, impropriamente designado por lei da reforma agrária, longe de ter servido para disciplinar e orientar as expropriações que deviam constituir o ponto de partida para a reforma agrária, tem servido apenas para a legalização de situações de facto. É assim que enquanto se estima em cerca de um milhão de hectares a área actualmente ocupada, a área que foi objecto de expropriações nos termos da lei não excede os 300 mil hectares»...
Sabe-se quanto a economia da terra condiciona todas as outras actividades, por ser a base fundamental da vida de nações como a nossa, que não dispõem de grandes parques industriais. O Partido Comunista não resistiu neste ponto a aplicar no Alentejo uma política de terra queimada, explorando a situação de atraso das suas populações rurais, acenando-lhe com um falso «eldorado» e uma falsa ideia da entrega das terras a quem a trabalha. A trágica experiência da colectivização da terra, que só na Rússia sacrificou mais de seis milhões de camponeses à fúria bolchevique, pouco importava aos burocratas comunistas. O que interessava era a subversão pela opressão e miséria das classes trabalhadoras, como forma de atingir o tão cobiçado totalitarismo de Estado.
A luta anti-capitalista, contra todas as formas de monopólio, incluindo o ataque frontal a algumas empresas multinacionais a operar com os seus capitais e com a sua tecnologia no arranque do desenvolvimento económico, em franco processamento a partir dos anos 70, - luta essa acelerada desde os primeiros dias de Outubro, a seguir à renúncia do presidente Spínola - deveria vir a incrementar-se, brutalmente, a partir da madrugada de 13 de Dezembro de 1974, com a prisão, sancionada pelo Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, de numerosos banqueiros e de outras conhecidas figuras do nosso meio social, de algum modo ligadas aos meios financeiros e industriais. Essas detenções, do desconhecimento da quase totalidade dos membros do Governo, iniciaram-se a partir das 2 horas da madrugada, sendo a lista completa das pessoas a aprisionar apenas do conhecimento do PC e do CDE, lista essa confidenciada, particularmente, a alguns orgãos de Informação, pouco depois da 5 e 30. Alertados entretanto alguns membros do Governo, cerca das 7 horas, muitos dos mandados de captura, grande parte dos quais assinados em branco pelo COPCON, não chegariam a ser executados. E, muito embora a relação oficial das prisões feitas só tivesse sido divulgada pelo gabinete do Primeiro-Ministro às 12,30 horas desse mesmo dia, acontecera que, 3 horas antes (portanto pelas 9), já era profusamente distribuído nas ruas em Lisboa um comunicado do CDE dando conta da ofensiva revolucionariamente empreendida contra os «sabotadores económicos capitalistas». Em simultaneidade de acção, líderes desse mesmo agrupamento, correia de transmissão do PC, realizavam comícios de esclarecimento em diversos pontos da capital, aliás conforme viria a ser largamente noticiado na Imprensa.
Singular ou sintomaticamente, a execução dessa acção - que ficará como uma das mais vergonhosas da Revolução Traída - coincidiria com o início do Congresso do Partido Socialista, há muito aprazado para os dias 13, 14 e 15 de Dezembro. Essa onda de violência, desencadeada com objectivos puramente demagógicos, e de intimidação, contava igualmente com o apoio declarado da Intersindical, de influência comunista, à qual competiria a iniciativa da campanha contra os «sabotadores económicos», realizando, com o aparato adequado, manifestações de trabalhadores, quer nas ruas quer no seio das empresas.
O projecto da ofensiva anti-capitalista, que contou com a benevolência e indiferença do Chefe do Estado, general Costa Gomes, não foi, no entanto, executado em toda a sua extensão, sendo de presumir que a onda de reacções despertada a nível interno e externo tivesse obrigado a suspendê-lo. Certo é que as tensões aumentaram ao nível dos orgãos do poder, especialmente no seio do Governo, acentuando-se a partir daí as divergências já patentes entre o Primeiro-Ministro e os ministros sem pasta do ramo das Forças Armadas, a um dos quais cabia a coordenação do sector da Economia e estava confiada a elaboração de um «plano económico de emergência» (plano Melo Antunes), que se sabia estar a ser orientado para objectivos moderados e realistas, embora apontando uma «via socializante» em oposição a soluções radicais propugnadas pelo Partido Comunista e por muitos tecnocratas e intelectuais de formação marxista, alinhados em agrupamentos do Governo, como era o caso da CDE e do Movimento de Esquerda Socialista - MES.
in, "25 de Abril, a revolução da vergonha", João M. da Costa Figueira
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