A Tragédia do 11 de março de 1975
Real ou inventada, a lista de personalidades de direita em risco de serem assassinadas na “Matança da Páscoa” foi uma provocação que serviu de pretexto ao golpe que levou à mais perniciosa derrapagem esquerdista da nossa História recente. Nacionalizações, ocupações de casas, terras e empresas, prisões injustas, perseguições pessoais – a 11 de Março de 1975 Portugal entrou num período negro, conhecido por uma sigla tristemente célebre: o PREC.
Em Março de 1975, as ilusões criadas nos primeiros meses a seguir ao golpe de 25 de Abril de 1974 tinham dado lugar a um clima de pré-guerra civil em Portugal. Ao ponto de se terem tornado credíveis boatos que davam como certa a existência de uma lista de políticos e militares a fuzilar, num massacre antecipado com nome de filme de terror: a “Matança da Páscoa”.
Todos os protagonistas político-militares da época prometiam liberdade e democracia – mas o significado dessas palavras era muito diferente de partido para partido.
A unanimidade em torno da Junta de Salvação Nacional, presidida pelo general Spínola, e do programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) era apenas aparente.
A própria composição da Junta de Salvação Nacional deu origem à primeira dissensão do novo poder.
Os golpistas eram oficiais de baixa patente, sobretudo capitães. Tentaram obter credibilidade com a formação da Junta, para a qual co-optaram oficiais mais velhos, alguns deles prestigiados, incluindo os dois generais mais conhecidos do exército português: António de Spínola, antigo comandante e governador da Guiné, e Costa Gomes, considerado um estratega competente, que praticamente neutralizara a iniciativa do inimigo em Angola.
Na noite de 25 de Abril de 1974 houve uma discussão acalorada entre Spínola e alguns oficiais do MFA. A maioria destes queria ver Costa Gomes como presidente da Junta e, por inerência, na chefia do Estado. Mas Costa Gomes antecipou-se e propôs Spínola para presidente, preferindo reservar para si a influência do cargo de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.
Spínola foi nomeado Presidente da República e chamou para a chefia do governo provisório o advogado Adelino da Palma Carlos. Este integrou no executivo os líderes dos principais partidos recém-legalizados, como o comunista Álvaro Cunhal, o socialista Mário Soares e o social-democrata Sá Carneiro.
Freitas do Amaral, que fundara o CDS, não teve assento no Governo mas foi compensado com um lugar no Conselho de Estado.
Perante a crise económica e a instabilidade social que imediatamente tomaram conta do país, Palma Carlos tentou antecipar as eleições para a Presidência da República, visando reforçar o poder de Spínola. Mas os golpistas do MFA, que na prática controlavam o poder, não admitiram alterações ao calendário previsto no seu programa, segundo o qual as eleições presidenciais só deveriam ter lugar depois de aprovada a nova Constituição – e as primeiras eleições seriam para a Assembleia Constituinte.
Palma Carlos percebeu imediatamente o que estava a preparar-se – e bateu com a porta em Julho, ao fim de dois meses como primeiro-ministro.
Os esforços de Spínola para entregar a chefia do 2º Governo Provisório a um oficial moderado (o tenente-coronel Firmino Miguel) goraram-se perante a pressão da ala esquerda do MFA, que impôs a escolha do coronel Vasco Gonçalves.
GUINADA À ESQUERDA
Com o novo primeiro-ministro aumentaram as greves e as ocupações de empresas, até que, em Setembro de 1974 surgiram por todo o país cartazes a anunciar uma manifestação de apoio a Spínola, em nome de uma “Maioria Silenciosa”, que o Presidente da República, copiando uma frase de Nixon, mencionara num discursos.
Numa tourada no Campo Pequeno, o cavaleiro tauromáquico José João Zoio desfraldou um cartaz da “Maioria Silenciosa”, ao mesmo tempo que o público aplaudia Spínola e gritava apupos a Vasco Gonçalves, que partilhavam o camarote de honra.
Na madrugada de 28 de Setembro, o PCP, o seu satélite MDP/CDE e a respectiva correia de transmissão nos sindicatos (Intersindical)levantaram barricadas nos acessos de Lisboa para impedirem a entrada dos manifestantes na capital.
CENTENAS DE BANQUEIROS, POLÍTICOS, EMPRESÁRIOS E OUTRAS PERSONALIDADES SUSPEITAS AOS OLHOS DO NOVO PODER FORAM DETIDOS
No meio de acesa polémica e comunicados contraditórios, o governo e o MFA acabaram por proibir a manifestação, acusando os promotores de planearem um “golpe reaccionário”.
Cumprindo a “agenda” do PCP, os partidos de direita que nos últimos meses tinham sido legalmente constituídos, como o Partido do Progresso, Partido Liberal ou Movimento Federalista Português, foram ilegalizados no rescaldo do 28 de Setembro.
Centenas de banqueiros, políticos, empresários e outras personalidades suspeitas aos olhos do novo poder foram detidos – com mandados de captura em branco, ou mesmo sem qualquer mandado – e levados para Caxias.
Spínola demitiu-se de Presidente a 30 de Setembro, substituído por Costa Gomes, que reconduziu Vasco Gonçalves, já promovido a brigadeiro. Este formou o 3º Governo Provisório, que manteve a coligação PCP-PS-PPD (como então se chamava o actual PSD), mas com mais ministros militares e “independentes de esquerda”.
“BATALHA DA PRODUÇÃO”
O novo governo começou logo por dar um ar da sua graça, mostrando o que aí vinha: com o pretexto de comemorar a “vitória sobre a reacção”, Vasco Gonçalves deixou cair a máscara e mostrou um rosto radical e demagógico. O dia 6 de Outubro, um domingo, ficou para o anedotário lusitano como o “dia de trabalho para a nação” – os portugueses foram “convidados” a ir trabalhar… sem receber.
O dinheiro reverteu, alegadamente, para o Estado. Começava a “batalha da produção”.
No Alentejo e no Ribatejo começaram as ocupações de terras: era a “reforma agrária”. Nas cidades, sobretudo do sul do país, multiplicaram-se as ocupações de fábricas, de empresas e de casas.
Nos primeiros dias de Março, um comício do recém-criado Partido da Democracia Cristã, dirigido pelo major Sanches Osório, um oficial do MFA que passara à reserva, foi boicotado por esquerdistas no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. Outros extremistas de esquerda provocaram confrontos num comícipo do PPD, em Setúbal, de que resultou um morto.
Nas eleições para os Conselhos das Armas, um órgão consultivo do Estado-Maior do Exército escolhido pelos oficiais de todas as unidades militares, os “gonçalvistas”, sofreram uma pesada derrota. A maior parte dos eleitos eram considerados “spinolistas”.
“MATANÇA DA PÁSCOA”
No fim da primeira semana de Março surgiram rumores sobre a existência de uma lista com os nomes de cerca de 500 oficiais “spinolistas” e mil civis conotados com a direita, que os extremistas da LUAR (Liga de União e Acção Revolucionária), uma organização radical de esquerda responsável por diversas acções armadas contra o anterior regime, incluindo o assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, em 1967, tencionariam assassinar por altura da Páscoa.
A INVASÃO ESTEVE POR UM FIO QUANDO A DIVISÃO BRUNETE REALIZOU EXERCÍCIOS JUNTO DA FRONTEIRA PORTUGUESA…
A lista negra logo chamada da “Matança da Páscoa” terá sido mencionada pela primeira vez em Madrid, numa reunião em casa de Barbieri Cardoso, antigo número 2 da PIDE/DGS.
Nesse encontro participaram, além do anfitrião, figuras ligadas à direita portuguesa exiladas em Espanha desde o golpe de Abril do ano anterior, incluindo militares. Um dos presentes revelou ali que o então primeiro-ministro espanhol, Arias Navarro, o último chefe do governo de Franco, o alertara para a lista e a “matança” em preparação.
Por outras vias, nomeadamente contactos com os serviços de espionagem espanhóis e franceses, o general Spínola foi também informado dos preparativos da “operação Matança da Páscoa”.
Segundo estudiosos daquele período conturbado, a lista negra – que ninguém admitiu alguma vez ter visto – e a “Matança da Páscoa” foram peças de uma manobra de contra-informação dos serviços secretos espanhóis destinada a preparar o terreno para uma intervenção militar em Portugal.
Meses depois, a invasão esteve por um fio, quando a divisão Brunete (uma unidade blindada de elite do exército espanhol) realizou exercícios junto da fronteira portuguesa, depois do assalto à embaixada de Espanha em Lisboa por militantes esquerdistas, em protesto contra a execução de dois condenados por terrorismo em Madrid.
DIÁLOGO SURREALISTA
Convencido de que a ameaça era real, Spínola mobilizou os seus apoiantes e instalou-se na base de Tancos.
Na manhã de 11 de Março, aviões T-6 da Força Aérea bombardearam o Regimento de Artilharia Ligeira nº 1 (RAL 1, depois RALIS), à entrada de Lisboa, entretanto cercado por pára-quedistas.
À porta daquela unidade militar, a RTP transmitiu em directo um diálogo surrealista entre o capitão Dinis de Almeida (gonçalvista) e o capitão pára-quedista Sebastião Martins. O cerco acabou em confraternização, com abraços de parte a parte.
Horas depois, um civil inocente que passava ao volante de um carro foi morto por uma rajada de G-3 à porta do RAL 1. Os militares disseram ter disparado em resposta a uma “provocação contra-revolucionária”.
Nos meses e anos seguintes, O DIABO foi o único jornal português que deu voz ao protesto indignado da mãe da vítima, numa campanha inesquecível marcada pelas palavras solidárias de Vera Lagoa: “Antónia, Antónia…”
SELVAJARIA
Spínola retirou-se de helicóptero para Espanha. Em Lisboa, alguns dos seus apoiantes pediram asilo político na embaixada da República Federal Alemã. Outros foram presos, tal como vários oficiais considerados spinolistas, enquanto muitos empresários e banqueiros se exilaram em Espanha ou no Brasil.
O “11 de Março” foi condenado por todos os partidos do regime, incluindo o PPD, que nem assim evitou o assalto de extremistas de esquerda à sua sede na Avenida Duque de Loulé, em Lisboa. Outros esquerdistas aproveitaram para saquear a casa de Spínola, em Massamá, e as sedes do CDS e do PDC.
Horas depois, o MFA realizou uma reunião que ficou conhecida como a “assembleia selvagem”. Num ambiente explosivo, o capitão Henrique Maurício chegou a pedir o fuzilamento dos golpistas.
Apesar da excitação geral, os outros militares condenaram imediatamente a proposta e mandaram-no “ter juízo”.
Foi a “assembleia selvagem” que decidiu criar o Conselho da Revolução, nacionalizar a banca e os seguros e incentivar a “reforma agrária”. Vasco Gonçalves, promovido a general, formou o 4º Governo Provisório e guinou ainda mais à esquerda.
Começou a ouvir-se uma sigla que ficou tristemente célebre no vocabulário político português: PREC (processo revolucionário em curso).
Sabemos pouco da matança da pascoa
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