Uma bela evocação pela pena de João Bénard da Costa de Henrique Barrilaro Ruas.
Aproveito para publicar este texto sublime sob tão excelsa figura, hoje que perfaz um século desde o seu nascimento.
"Morreu na semana passada o prof. Henrique Barrilaro Ruas, que, há um ror de anos, foi meu professor de Paleologia e Diplomática na velha Faculdade de Letras, quando as Letras se escreviam no Convento de Jesus. Era então um homem de trinta e tal anos, esgarçado e esgrouviado, bastante tímido, bastante introvertido. Era diplomata no sentido de ser um homem zeloso das conveniências sociais, mas, se cultivava a tradição, não curvava a cerviz. Ao longo da vida, surpreendentemente para a ideia que fiz dele nesses idos dos anos 50, tive-o por companheiro em algumas lutas que não eram para tíbios, opositor tão fundo quanto fundo era o seu catolicismo e o seu monarquismo. Com o tempo, foi deixando crescer hirsutas barbas, bastas e cerdosas. Não me lembro de o ter ouvido levantar a voz. Mas fixei-lhe bem as mãos, quando manuseava diplomas antigos. Com ele aprendi a ler alguns, como aquele que rezava do som da campã tangida e que, sei lá eu porquê, tanto me ficou na memória. Era da rara espécie de homens a que cabe o nome antigo de homens bons, com atenções insólitas e distracções germinativas. Perdi-o de vista muitas vezes, mas, de vez em quando, mandava-me um sinal. Sempre de vida. Acredito que vou continuar a receber sinais desses.
Como muitas outras coisas importantes, aprendi depressa e esqueci depressa o que ele me ensinou. Na altura, já conseguia ler, com algum à-vontade, manuscritos do século XV ou do século XVI. Hoje, voltei à anterior ignorância. Mas lembro-me do dia em que lhe fui pôr uma dúvida qualquer, enquanto ele zelava por um exame escrito de Numismática. O velho livro que estava a ler, fac-símile de uma edição da Biblioteca do Vaticano, era o De Arte Venandi Cum Avibus (“Da arte de caçar com aves”, em tradução de trazer por casa), o famoso tratado de falcoaria escrita por Frederico II Hohenstaufen, Imperador do Sacro Império, cerca de 1230.
O Imperador (leitura de História Medieval, leitura de Filosofia Medieval, nesses anos de ritos, de Ribeiros Soares e de Virginias Raus, anos crípticos entre os anos crípticos) começava então a ser uma das paixões da minha vida. Hoje, as fontes mais autorizadas são bastantes reticentes face às teses de Winkelmann, ou sobretudo de Kantorowicz (o primeiro nos fins do século XIX, o segundo entre 1927 e 1931) que o consideraram o primeiro dos monarcas modernos, o homem do primeiro Renascimento, precedendo duzentos anos o Renascimento consagrado. Mas, digam o que disserem, não houve outro reinado da Idade Média em que tanto se demandasse o conhecimento. E os reinos do Imperador iam do Reno à Silésia, de Génova à Palestina, da Floresta Negra ao reino da Sicília.
Frederico, órfão de pai aos 3 anos (em 1197) foi levado pela mãe – a imperatriz Constança – para a Sicília, onde foi coroado rei aos 4 anos. De 1197 a 1212, viveu na convulsa Sicília de árabes e normandos, bizantinos e judeus. Teve a sorte de crescer num dos únicos centros onde a cultura clássica ainda florescia e onde a sabedoria oriental ainda penetrava. Sábios eram muitos mais do que sete e ainda hoje não podemos bem saber o que esses homens sabiam.
Pelo que Henrique Barrilaro Ruas me explicou, fiquei com a ideia que o tratado venatório do Imperador era sobre tudo menos sobre a caça, ou que então a caça era um mundo que metaforicamente englobava todos os outros. O olhar do falcão.
Já não me lembro como a conversa veio parar aos esoterismos. Henrique Barrilaro Ruas chamou-me a atenção para um terreno particularmente armadilhado. Porque, quando ouvimos a palavra, a homofonia pode-nos prender o pé. Esoterismo, com s, diz-se de uma doutrina que os filósofos antigos comunicavam apenas a um escol de alunos, ou seja, uma doutrina para iniciados, restritiva e restringente. Exoterismo, com x, significa exactamente o contrário e diz-se das doutrinas abertamente ensinadas, por todos e para todos.
O “Renascimento hohenstaufiano” terá sido esotérico ou exotérico? Em 1228, Frederico II, já excomungado pelo Papa Gregório IX – que nesse mesmo ano canonizou S. Francisco de Assis, seu amigo tão dilecto –, conseguiu, através de negociações, o que cinco cruzadas e duzentos anos não haviam conseguido: Al-Kamil, sultão do Egipto, entregou-lhe Jerusalém, Belém e Nazaré. Tão fulgurante sucesso fiou-se muito mais da personalidade magnética do Imperador (“Stupor Mundi” ou “Immutator Mundi”, como tanto foi chamado) do que do poder dos seus exércitos. A 18 de Março de 1229, Frederico II coroou-se a si próprio Rei de Jerusalém na Igreja do Santo Sepulcro. Foi esotérica ou exotericamente que se espalhou o rumor que ele era o Messias, na sua vinda final, ou, mais modestamente, a reencarnação de David? Mas foi a turba que permitiu a comparação das duas entradas na Cidade Santa: a de Cristo no Domingo de Ramos e a de Frederico II em 1229. No ano seguinte, a excomunhão foi-lhe levantada em Ceprano, sem que o Papa ignorasse que o monarca era, ele próprio, o autor de uma proclamação em que se reclamava de atributos crísticos.
Que sucedeu depois da sua morte, em 1250, na Apúlia? Metade da Europa não acreditou nela e, quarenta anos depois dessa data, ainda apareciam falsos Fredericos. Diziam que se lançara ao Etna, donde voltaria, envolto em chamas, na próxima erupção. Outros profetizaram que viria no dia final, à direita de Deus Pai, para punir a mundanal Igreja, os cupidíssimos pontífices e fundar o Sacro e Eterno Império.
Há treze anos, eu próprio, que creio mais para ver do que vejo para crer, entrei a medo na Catedral de Palermo, essa catedral que foi basílica bizantina, mesquita muçulmana, catedral normanda, templo gótico e teatro barroco e hoje é, esotérica e exotericamente, tudo isso. O interior até é mesmo nada disso, transformado em forma neoclássica, nos finais do século XVIII. Mas nas capelas de nave direita estão os túmulos do Hohenstaufen, da sua primeira mulher, Constança de Aragão, com quem casou aos 15 anos, tinha ela 25, do pai, Henrique IV, e do avô normando, Rogério II, esse que mandou construir a Capela Palatina. A família reuniu-se depois de tantas mortes, em vésperas sicilianas (“Mosso Palermo a gridare: Mora, mora”)? Ou há outros fantasmas a repousar sob as lousas tantas vezes quebradas? É bem certo que D. Sebastião também parece jazer num túmulo dos Jerónimos.
O que é ainda mais certo é que, sempre perseguindo Frederico, de Palermo à Terra Santa, de Melti a Parma, sempre Frederico se volatilizou.
Por isso, este ano, na por mim tão badalada viagem à Apúlia, marquei-lhe especial encontro em Castel del Monte. Muito perto dali, noutro castelo apúlio, parte de um mesmo plano ou despiste de um mesmo plano, em Castel Fiorentino, morreu o Imperador, de morte súbita.
Lembro-me desse dia muito devagarinho. Uma manhã na Catedral de Bitonto, que abriu e fechou só durante as horas em que estivemos na cidade. Criptas aquáticas, mosaicos “cum avis”, grifos e trifões. Um longo percurso, depois uma longa subida até ao românico mais puro. Tão puro que era pecado falar.
Segui o caminho para Andria, Ruvo, Corato. Depois uma placa que dizia Castel del Monte, mas onde nenhum castelo nem nenhum monte se viam. Havia uns restaurantes, umas lojas para turistas e um grande parque de estacionamento. Ficámos a saber que não se podia passar dali, a não ser num autocarrozinho que dali saía de meia em meia hora.
Lá fomos. Subiu-se muito, cerca de 540 metros. Era o alto de um monte e o castelo, mesmo no cima dele, adivinhava-se bem. Nova subida, agora a pé, e, num súbito traveling, o octógono de pedra loura. Castelo vem de “castrum”. Fortificações, guerras, defesas e ataques. Mas Castel del Monte não tem ameias nem pontes levadiças, não tem torres nem barbacãs. De toda a evidência, não foi feito para a guerra. Mas também não foi feito para a paz. Menagem não é termo que lhe seja propício, pois que, nos seus três imensos andares, todas as salas parecem iguais e nenhuma sugere a ideia de habitação. Descobriram-se casas de banho, como outras desse tempo se não conservam, é possível pensar que algures talvez tenham existido cozinhas ou quartos, mas, se compararmos o plano com qualquer palácio da época, tudo perde nexo.
Alguns aventaram – conhecida a paixão do monarca pela caça – que Castel del Monte fosse edificado como pousio de uma corte caçadora. Mais uma vez a comparação com construções análogas retira verosimilhança à ideia.
Que é ou que foi? O “castelo ideal”, antecipando o ideal renascentista? Um labirinto, elemento recorrente da arquitectura medieval? Ou outra coisa qualquer, porventura um edifício sem nenhuma finalidade concreta e com todas as finalidades abstractas? Os matemáticos percorrem-no como a demonstração das teorias de Pitágoras, de Vitrúvio e dos matemáticos medievais da escola de Pisa. Os “números sonoros”, os “números mágicos” e, regendo tudo, o “número de ouro” (1618), o número da harmonia do mundo e do corpo perfeito, o número do homem como microcosmos. Já se disse que Castel del Monte representa idealmente quer o homem, quer o universo. Esotérico, aguarda o tempo em que possa ser finalmente exotérico. Construído em variações sobre o número 8 (o número das fontes baptismais e o número da ressurreição) aguarda que esse número chegue, sobrepondo-se ao 6 da besta apocalíptica.
Não estou mais em Castel del Monte. O leitor também não. Também não mais vive o prof. Barrilaro Ruas. Se eu continuasse a falar-vos do 8, dos oito quartos de cada andar, da figura do trapézio e darelação do número de ouro com o homem como microcosmos, provavelmente arruinaria o resto daminha reputação, própria e alheia.
Quando saí de Castel del Monte, havia a sombra da tarde e um vento raso. De longe, olhei para aquele imenso octógono e percebi que não tinha percebido nada. Só em momentos desses – tão raros – entrevemos que podemos perceber. Mas passa logo. “Stupor Mundi”.
João Bénard da Costa, Público, 25.07.2003.
Historiador, político e professor português, Henrique José Barrilaro Fernandes Ruas nasceu a 2 de março de 1921, na Figueira da Foz.
Formou-se em História e Filosofia, em 1945, pela Universidade de Coimbra, e frequentou, através de uma bolsa do estado francês (1947-1949), a École des Chartes e o Institut Catholique, em Paris. Foi presidente do Centro Académico de Democracia Cristã (1942-1943), fundador da revista Cidade Nova, sócio-fundador do Centro Nacional de Cultura (1945), do qual foi diretor em 1955, diretor de Doutrinação e Propaganda (1955-57) e presidente da Comissão Doutrinária (1966-68).
Defensor do ideário monárquico, Barrilaro Ruas pertenceu, juntamente com Afonso Botelho, Perry Vidal, Pacheco de Castro, à 4.ª geração do Integralismo Lusitano, um movimento socio-político que tem como finalidade a instauração do sistema monárquico em Portugal. Em 1969, apelou ao fim do Estado Novo, durante o III Congresso da Oposição Democrática, foi líder da Comissão Eleitoral Monárquica, concorrendo, como deputado, às eleições legislativas desse mesmo ano. Após 1974, integrou o Partido Popular Monárquico, de que foi fundador, dirigente e deputado na Assembleia da República, entre 1979 e 1983.
Como docente, iniciou a sua carreira na Faculdade de Letras de Lisboa, entre o período de 1953-1957, continuando-a em diversos estabelecimentos do ensino superior privado, lecionando as disciplinas de História, Filosofia e Sociologia da Cultura. Barrilaro Ruas foi membro de associações culturais e académicas, colaborou em revistas, dicionários e enciclopédias e traduziu várias obras.
Publicou alguns livros, tais como O Cristão no Mundo de Hoje (1947), A Moeda, o Homem e Deus (1957), O Integralismo como Doutrina Política (1971), Luís de Camões (1999), Dois Imperialismos (2001) e Os Lusíadas (2002, edição comentada e anotada).
A 14 de julho de 2003, Henrique Barrilaro Ruas faleceu de doença cardíaca, no Estoril, onde vivia.
Fonte, Infopédia.
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