Em que circunstâncias foi convidado para ocupar funções? Qual foi a sua reacção? Por que a abandonou funções? Como teve conhecimento do facto?
Em meados de Junho de 1949, era eu então Delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, no Porto, fui chamado por Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, que, no Forte de Santo António, no Estoril, me disse do seu empenho em ver-me ocupar o cargo de Subsecretário de Estado da Educação Nacional. Tudo fiz para me subtrair ao convite, alegando, além do mais, que, embora fosse professor nas horas disponíveis, não me sentia preparado para essa função governativa. Mas logo Salazar me observou que os homens não valem tanto pelo seu saber como pelas faculdades de se adaptarem a novas situações e novos desafios. E sublinhou que, entre nós, ia vingando por de mais a velha tendência, que reputava menos correcta, de se exigir que o Ministro da Educação fosse professor, e professor universitário: o das Obras Públicas, engenheiro; o da Saúde, médico; o do Exército, militar... Pedi-lhe uns dias para reflectir, mas perante a urgência que me manifestou, acabei por aceitar o convite, que deveras me surpreendeu, e veio mudar o rumo da minha vida, numa altura em que já decidira abandonar a função pública para me dedicar à advocacia e à gestão da empresa industrial de meu pai.
Durante largos anos, não me foi dado saber das razões que conduziram Salazar a querer-me como seu colaborador. Só há pouco tempo, ao ler o notável livro do Dr. Franco Nogueira sobre Salazar (vol. IV, p. 152), tomei conhecimento dos termos honrosos da carta em que este me propunha ao Presidente Carmona para o cargo. Também só muito depois, em 1961, quando saí do governo, o Dr. Joaquim Trigo de Negreiros haveria de revelar-me ter sido ele quem indicara o meu nome a Salazar. Tenho ainda razões para crer que o Doutor Fernando Andrade Pires de Lima, então titular da pasta de Educação, com quem tanto me aprouve trabalhar, e o Doutor Mário de Figueiredo, ambos meus inesquecíveis professores na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, contribuíram igualmente para a escolha.
Em 2 de Julho de 1955, ao regressar de uma visita à Madeira, integrada na execução do Plano de Educação Popular e da Campanha Nacional de Educação de Adultos, foi-me entregue uma mensagem de Salazar, solicitando que me responsabilizasse pela pasta dos assuntos do Trabalho, da Previdência e dos Organismos Sindicais (Ministério das Corporações e Previdência Social). Aí, dizia contar comigo para «reacender o antigo fogo e continuar a cruzada social e corporativa» - a qual, acho oportuno referi-lo, nunca teve raiz, feição ou sentido fascista, como tantos erroneamente se comprazem em propalar. Poderia, acaso, ser fascista quem, pela sua formação doutrinal e vivência cristã, sempre se mostrou contra os excessivos poderes estatais - «a elefantíase do Estado», para usar expressão sua - e que defendia a existência de corpos sociais institucionalizados com participação efectiva na vida política, como processo natural eficaz de limitar tais poderes? Era, aliás, pelo mesmo tipo de razões mas acrescidas, que Salazar repudiava também o nacional-socialismo, e o comunismo, a grande «heresia» da nossa idade, em seu dizer.
Não me é agora possível reproduzir aquela mensagem que, como tantas outras cartas e documentos do meu volumoso arquivo pessoal, em 2 de Maio de 1974, por ordem do Sr. Coronel Vasco Gonçalves, do MFA, me foram levados (sem qualquer explicação e sem que até hoje eu tenha conseguido a sua devolução ou sabido sequer do seu paradeiro), por um subtenente da Armada, dois agentes da Polícia Judiciária e um recruta, de cravo vermelho enfiado no cano de uma G3. Pelo mesmo motivo, não posso reconstituir o teor da carta em que, no começo de Maio de 1961, Salazar me agradecia os serviços prestados ao País e dava por finda a minha cooperação no plano ministerial. Dispunha-me, recebida esta carta, a regressar ao Norte, quando o Doutor Mário de Figueiredo, líder do Governo na Assembleia Nacional, me procurou por incumbência de Salazar, para me dissuadir dessa intenção, pois continuava a julgar-se necessária a minha permanência em Lisboa. E de facto, um mês depois, Salazar pedia-me («pedido pessoal... e com vivo empenho...») que passasse a presidir à Comissão Executiva da União Nacional, função que, apesar de não ser filiado, aceitei e desempenhei até Fevereiro de 1965, escusando-me, porém, a receber a remuneração que, equivalente à de Ministro, me fixara.
É corrente ouvir-se que Salazar era menos atencioso no relacionamento com os ministros e, em particular, quando estes iam deixar de o ser. No que me respeita, não posso esquecer as expressivas referências que, ao convidar-me para a União Nacional, fez à minha acção no Governo e «ao momento alto» em que esta cessara. Confesso que ainda hoje me interrogo sobre se Salazar não terá querido assim dar-me a entender que a minha substituição, aliás por mim há muito desejada, não se prendia com a viva e crescente reacção de fortes grupos de interesses económicos, hostis à política social que eu vinha executando. Reacção que recrudescera na altura em que se tornou conhecido o meu propósito de integrar a cobertura de riscos de acidentes de trabalho e doenças profissionais na Previdência Social, bem como a proposta de Lei, por mim subscrita e enviada por Salazar à Assembleia Nacional, sobre o regime do contrato de trabalho, onde se previa, além de outras providências, a participação dos trabalhadores nos lucros das grandes empresas privadas e nas empresas públicas, ideia esta que, infelizmente, acabou por não vingar.
Hoje considera positiva a passagem pelo poder? Conseguiu realizar o que pretendia?
Respondendo à pergunta que me é feita sobre se acho positiva a minha passagem pelo Governo, direi que foi para mim um privilégio trabalhar de perto com Salazar e ter-se podido, nesse longo período, realizar obra útil, materializada em reformas de base e estrutura e em outras numerosas providências, que visaram a ascenção cultural e social da nossa gente, em especial da mais humilde e desfavorecida. Julgo, pelo menos, ter sido «insaciável... na devoção à missão» e «ter contribuído para a paz social», para me servir das amáveis palavras com que o Dr. Franco Nogueira, no seu livro Salazar, vol. IV, se refere ao meu labor governativo. Move-me, sobretudo, ao fazer esta afirmação, o propósito de vincar que, e logo desde que, por volta de 1950, lhe foi apresentado o plano geral da Campanha contra o Analfabetismo, por mim elaborado, Salazar sempre me estimulou, sem nunca me ter contrariado na acção, ou coarctado a iniciativa e a liberdade de movimentos. Tinha, na verdade, profundo respeito pelo múnus governativo, e deixava os que o exerciam num grande à-vontade, por vezes, no meu entender, excessivo.
Valerá a pena ilustrar esta maneira de ser de Salazar com um exemplo. Em Outubro de 1959, salvo erro, decidi actualizar, com a a concordância da Federação dos Serviços Médico-Sociais, as remunerações dos médicos da previdência, organização, na altura, com pluralismo institucional, em regra de implantação regional, não integrada no Estado, e em cuja gestão também participavam, paritariamente, como se sabe, representantes dos trabalhadores e das entidades patronais. O Ministro da Saúde, impossibilitado, então, por razões orçamentais, de proceder de igual em relação aos médicos da função pública, submeteu o assunto à apreciação do Presidente do Conselho. E este, naquele jeito que lhe ficara do seu tempo de Ministro das Finanças, deu razão ao Ministro da Saúde, no decurso de uma reunião conjunta em que tomei parte. Preocupado com o facto, tanto mais que havia já assumido compromisso com a Ordem dos Médicos quanto aos termos do despacho, pedi a Salazar, poucas horas depois, em nova audiência, que mudasse de opinião. Não o fez, mesmo perante a minha insistência, mas acabou por me dizer que o Ministro era eu e que só a mim cabia a decisão final («o senhor é que sabe... e é o Ministro»). Assim, nesse mesmo dia, o despacho era publicado nos jornais vespertinos e seguia para o boletim do INTP, orgão oficial do Ministério.
Em reunião do Conselho de Ministros, ouvi-lhe um dia, estas palavras: «Há quem diga que sou ditador, mas não é verdade. Cumprir escrupulosamente a lei e integrar-me no seu espírito é minha preocupação permanente... Nem sequer me permiti, alguma vez, alterar ou revogar qualquer despacho de um Ministro, por mais que dele discordasse. Não tenho para tanto poderes legais, nem os quero, e duvido que, nos outros países, os Chefes do Governo se privem dessa faculdade. Quando não concordo com a orientação geral de um Ministro só me resta propor a sua exoneração ao Chefe do Estado».
Recorde-se que, ao tempo, nenhum decreto-lei poderia ser enviado para promulgação do Presidente da República e publicado no «Diário do Governo», sem que todos os Ministros o subscrevessem - prática que foi posta de parte logo que Salazar deixou de ser o Presidente do Conselho.
Anoto ainda que, como deputado, e mesmo quando simultaneamente presidia à Comissão Executiva da União Nacional, sempre na Assembleia Nacional, votei de acordo com os meus pontos de vista, e não raro tomei posições contrárias às do Governo, no plenário, e nas Comissões Parlamentares, sem que me fossem feitos quaisquer reparos.
Esta prerrogativa essencial, possível num regime apartidário, não o é num regime de partido único (não confundir, como é frequente, estes dois tipos diferenciados de regimes), nem tão-pouco num regime de partidos, o que se me afigura inadmissível quando penso na liberdade que os deputados devem ter para votarem sempre, e só, de acordo com o seu parecer e a sua consciência.
Hábil, realista, pragmático por conta e medida, sem nunca pôr em causa os valores essenciais da Constituição, Salazar sempre se empenhou na busca de soluções de equilíbrio e estabilidade. Daí a configuração pluralista dos seus governos, que integravam, por sistema, personalidades de formações e tendências ideológicas diversas ou mesmo alheias da política ou a esta avessas. E, quase sempre, eram minoria os ministros que se identificavam com o seu pensamento político, e mais raros ainda os filiados na União Nacional. Salazar sabia que a política era não só a arte do possível, mas também a de interessar e responsabilizar os homens e os grupos sociais no projecto político, em ordem a dar-lhe mais alargado consenso e maiores probabilidades de êxito.
Qual o aspecto humano do Doutor Salazar que mais o impressionou?
Não vejo como possa eleger uma, de entre as múltiplas, altíssimas e equilibradas qualidades de Salazar.
Salazar era, na sua mais viva expressão, a inteligência personificada: inteligência que sempre me sinto inclinado a definir como o conjunto harmonioso e perfeito dos méritos, atributos e capacidades.
Lúcido e calmo, íntegro, impoluto, incorruptível como pessoa, intelectual e governante; justo e objectivo nos juízos acerca dos homens e das situações; dotado do raro dom de conciliar o raciocínio com a sensibilidade, a coragem com a prudência, a energia com a afabilidade; distinto no porte e nas atitudes; desprendido das honrarias e dos bens materiais, no viver simples, modesto, espartano (não disse ele, um dia, dever à Providência a graça de ser pobre?); fiel aos princípios da sua crença e às exigências da Magistratura que, durante decénios, exerceu com inigualável noção das responsabilidades; incapaz, para obter aplausos fáceis ou dividendos de qualquer espécie, de lisonjear o povo, ou de o enganar com promessas aliciantes ou demagógicas; chefe, por vocação, imperativo de consciência, e por amor à terra onde nasceu e que serviu «sem ambições, sem ódios, sem parcialidades, na pura serenidade do espírito que busca a verdade e o caminho da justiça»; pensador profundo e profundo conhecedor da natureza humana, da História, das ideologias e dos sistemas) políticos («pouco valem as qualidades dos homens contra a força implacável dos erros que se vêem obrigados a servir»), e tendo do futuro uma visão penetrante, profética, que os acontecimentos confirmaram por toda a parte; patriota clarividente e fervoroso, devotado, em plenitude, à defesa intransigente dos supremos valores e interesses de Portugal, cuja identidade, e unidade, jamais comprometeu ou atraiçoou e cuja independência de facto conquistou e assegurou perante as potências do Ocidente e do Leste, e na palavra, pelo exemplo, pelo sentido dos seus ensinamentos e pela repercussão da sua obra imensa...
Salazar é para mim, e para tantos como eu, o estadista mais sábio e mais completo dos tempos modernos e um dos maiores da nossa multissecular existência colectiva da Nação. Desta Nação descobridora e civilizadora, «irmandade de povos», que, depois dele, alguns haviam de truncar na sua missão histórica e reduzir à primitiva e minguada dimensão na Europa, onde não poderia e não pôde caber, e que, conscientes do que destruíram, se empenham, por isso, agora, em apoucá-lo e denegri-lo da sua estatura e na luminosa grandeza da sua política e do seu magistério.
Há, todavia, um aspecto que particularmente me custa ser esquecido ou silenciado: o dever-se a Salazar não ter Portugal entrado na Segunda Grande Guerra, não obstante as terríveis dificuldades e as pressões que, nesse crucial e cruciante período, sobre ele se exerceram. Foi então que o seu génio de estadista mais se agigantou: o seu génio de estadista... e a força da sua autoridade moral. Ocorrem-me, a propósito, as palavras que, em 10 de Junho de 1946, o Embaixador Britânico em Portugal, Sir Owen O'Malley, proferiu durante o banquete, no Palácio das Necessidades, em honra dos Estados Unidos e da Inglaterra, precisamente sobre a relevância e significado dos princípios morais nas relações entre os povos. Depois de se referir «a uma identidade ou, pelo menos, a uma grande semelhança de pontos de vista em Portugal, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América quanto ao que são esses princípios morais que devem orientar as relações externas dos Estados uns com os outros», e de declarar ser esse «o clima em que medram a Aliança Anglo-Portuguesa e a amizade luso-americana», e de acentuar deverem esses mesmos princípios ser «a nossa inspiração e a nossa força», dirigiu a Salazar esta concludente palavra final: «Nenhum homem deste mundo, creio eu, o sabe melhor do que o nosso anfitrião e amigo, o Senhor Presidente do Conselho».
Ora, quantos dos que malsinam, por ignorância ou má-fé, a memória de Salazar não pertenceriam hoje ao número dos vivos se a sua política não houvesse poupado o País aos horrores da guerra?».
O monumento de gratidão que, em Janeiro de 1948, as Mulheres Portuguesas, por lhe «deverem a vida e a paz dos seus lares», lhe ergueram junto do Palácio de São Bento, mãos ignaras, em hora desorientada, o derrubaram, sem que tenham podido calar a verdade e o sentimento que o mármore simbolizava.
Em contrapartida, quantos milhares, centenas de milhar de homens, mulheres e crianças perderam a vida, e suportaram sofrimentos inauditos na carne e no espírito - e quantos ainda suportam! - vítimas de lutas fratricidas, de genocídios, e da opressão de regimes e movimentos impiedosos, só porque não se quis manter e dar continuidade, na sua essência e patriótica finalidade, à política de Salazar?
Perante tamanho holocausto, traídos que foram sagrados compromissos e destruídas certezas e esperanças de séculos, como omitir esta pergunta?
Poderá supor-se que a minha admiração de sempre por Salazar, reforçada por um grato e longo convívio de anos, impede que me pronuncie com objectividade sobre a sua personalidade e a sua obra, agora que sou chamado a fazê-lo. Mas não é assim.
Salazar impõe-se naturalmente, e impor-se-á cada vez mais com o rodar dos tempos, à medida que assente a poeira das paixões, serenem os espíritos e avultem ainda mais as lições dos acontecimentos por ele tão percucientemente antevistos. São, aliás, numerosíssimos e impressivos os depoimentos de prestigiosas figuras nacionais e estrangeiras em que lhe é prestada justiça. Afiguram-se-me, por exemplo, flagrantes de oportunidade as apreciações que, sobre Salazar, o Prof. António José Saraiva faz no jornal Expresso, de 22 de Abril de 1989.
Num primoroso artigo, o autor da História da Cultura em Portugal aí fala dos Discursos e Notas de Salazar, «pela limpidez e concisão do estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso» e, assim, «por esse lado, merecedora de um lugar de relevo na nossa História da Literatura (e só considerações de ordem política a têm arredado do lugar que lhe compete)»; aí acentua que «Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis de Portugal, possuindo uma qualidade que os homens notáveis nem sempre têm - a recta intenção», «além de qualidades de administrador miraculosamente raras junto a uma igualmente rara integridade»; e aí se lembra que, graças a Salazar, «se conseguiram coisas hoje inconcebíveis, como a neutralidade na II Guerra Mundial» e se «conseguiu também, e pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue na Primeira Grande Guerra».
E a concluir, o Prof. António José Saraiva assinala: «E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa História a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação Independente. Agora em plena democracia e sendo o povo soberano, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE».
Ao ler estas palavras pungentemente verdadeiras de alguém cuja probidade e independência de espírito estão fora de toda a discussão, acodem-me à memória estas outras palavras de Salazar, de 1946, terrivelmente proféticas:
Já em 11 de Fevereiro de 1982, o mesmo intelectual, em entrevista concedida ao jornal O País, depois de falar de Salazar, da «sua dignidade muito própria de camponês» e da sua obra nos domínios da Economia, das Finanças e das Obras Públicas, interpelado pelo entrevistador que lhe observou poder pensar-se, ouvindo-o, que António José Saraiva se convertera ao Salazarismo, logo respondeu: «Não, não. Tenho de resistir a essa tentação. Apenas reconheço que, quando se fizer uma História de Portugal e nela forem destacados cinco ou seis homens representativos de uma vontade portuguesa de ser, um deles será Salazar. E será também um dos exemplos de dignidade... Mas era isso! Esses valores enraizados, camponeses - que esta gente... "este pessoal de agora"... não tem. Não tem! Não tem estrutura».
É, é isso. Valor intrínseco, profundo, autêntico, o possuía, em verdade -, e de que maneira! - António de Oliveira Salazar, esse modesto camponês, esse «filho do campo criado ao murmúrio das águas de rega e à sombra dos arvoredos», que viria a ser o maior Português de todos nós. É isso. Tinha estrutura... tinha raiz e altura. Foi vontade e foi acção. E é pensamento... e Mensagem.
Quer fazer um juízo sobre o Estado Novo à luz da História?
O Estado Novo (e só quero referir-me à época em que Oliveira Salazar foi governante) teve momentos altos, realizações do maior alcance nacional, em todos os domínios, e engrandeceu-se ainda mais com a política externa e com a defesa intransigente da soberania e da independência de Portugal, em toda a dimensão do seu corpo e da sua histórica missão civilizadora. Teve, também, é certo, limitações e contradições, e atravessou vicissitudes diversas, que não raro foram objecto de apreciações críticas de personalidades a ele ligadas e, até, de Salazar.
Pela minha parte, tive ensejo em várias ocasiões de publicamente apontar alguns aspectos do regime que se me não afiguravam positivos. A título exemplificativo, enunciarei, de modo esquemático, os seguintes:
- A legislação do condicionamento industrial que, pelos seus princípios informadores e também pela sua aplicação, teve, enquanto vigorou, influência negativa no natural desenvolvimento da actividade económica do País;
- A manutenção dos organismos de coordenação económica (que, aliás, de corporativos, institucionais ou representativos, nada tinham), para além do período em que circunstâncias especiais, decorrentes da II Grande Guerra, terão imposto a sua criação;
- A ausência de uma política global de emprego, e de um seguro autónomo ou integrado no sistema de Previdência Social para a cobertura do risco de desemprego. Na verdade, o Comissariado de Desemprego, injustificadamente integrado num ministério sem específica vocação social e sem estruturas adequadas, via os seus fundos, provenientes de descontos sobre ordenados e salários, aplicados, quase exclusivamente, em obras públicas, tudo se passando como se fossem produto da arrecadação de impostos gerais do Estado;
- O excessivo congelamento dos salários e a contenção no desenvolvimento da política do trabalho e previdência nos anos do após-guerra, até que, a partir de 1955, se tornou possível mudar de rumo;
- As grandes obras de irrigação no Alentejo, na medida em que não foram acompanhadas de providências de índole social, sobretudo das conducentes a um alargado e justo acesso à posse plena da terra de rendeiros e de trabalhadores preparados para as explorações agrícolas, e isto, tanto mais quanto não poucos latifundiários eram absentistas e esquecidos da função social que à propriedade privada também cabe.
A este respeito, Salazar, ele mesmo, chamou a atenção para a injustiça relativa de fundos públicos serem predominantemente investidos em obras de irrigação no Sul, sem se atentar nas manifestas insuficiências da propriedade no Norte e Centro do país. Ocorre-me que, numa reunião do Conselho de Ministros, chegou a dizer que, sendo embora compreensível que o Ministério das Obras Públicas quisesse fazer obras, não poderiam ignorar-se importantes aspectos sociais a tomar em conta, como o da necessidade de SI: promover o acesso à propriedade da terra do maior número possível de famílias e, também, de se impedir que, sem a devida ponderação de todos os interesses em causa, de graça ou quase, grandes e ricos proprietários ficassem mais ricos em consequência de obras realizadas pelo Estado com dinheiros públicos.
Ouvi-o ainda falar da vantagem em se rever, para essas zonas, o próprio instituto jurídico da propriedade, preocupado, por certo, além do mais, com a excessiva e nem sempre justificada concentração da posse da tela na mão de alguns, que chegava a atingir, como em Alcácer do Sal, proporções extremas.
Ao exprimir estes reparos, julgo útil referir de novo que, regra geral, Salazar deixava aos seus ministros a maior liberdade de acção, além de que os seus governos, de base pluralista, eram integrados por personalidades com ideias, mentalidades e estilos de acção diferentes dos seus. Este último facto que ainda há pouco foi lembrado na imprensa por essa alta figura da inteligência portuguesa que é o Professor Jorge Borges de Macedo -, se se traduzia em algumas efectivas e reais vantagens, haveria, necessariamente, de, em contrapartida, tornar mais difícil a coordenação das actividades dos vários ministérios e de afectar, por vezes, de algum modo a própria unidade do labor governativo.
Isto explicará, ao menos em boa medida, que o regime cuja Constituição fora plebiscitada em 1933, e que herdara uma tremenda herança de instabilidade política, de agitação social, de descalabro económico e financeiro, de atraso cultural e de descrédito externo, nem sempre houvesse podido integrar-se, na prática, nos seus princípios fundamentais e tivesse incorrido em falhas e desvios. Mas nunca ao ponto de, ao fazer-se com serena objectividade um balanço global do que foi a Segunda República, se poder, sequer, pôr em dúvida a enorme e polivalente obra de ressurgimento pátrio que levou a termo sob a lúcida inspiração de quem não «tendo aspirado ao poder como direito, o aceitou e o exerceu como dever».
Não há, por certo, regimes perfeitos. Mas há «os que servem e os que desservem as Nações». Que o Estado Novo serviu bem Portugal, ninguém, com razão, o poderá negar».
Henrique Veiga de Macedo, in "Salazar Visto Pelos Seus Próximos".
Salazar foi um Governante íntegro em todo o seu proceder .
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