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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Entrevista a Orlando Vitorino

O Homem português é, actualmente, uma ilha de pensamento rodeada de socialismo por todos os lados, existindo a possibilidade, não remota, da Pátria se afundar no mar poluído do Marxismo, diluída em qualquer organização ou império.
entrevista de Victor Mendanha publicada no Correio da manhã a 4.12.86 e 6.12.86.





Acção política não coincide com pensamento


CM – Existe, na verdade, um pensamento político português?

O.V. – Não pode deixar de existir um pensamento político português, pois não pode existir Pátria ou Nação sem haver um pensamento. Pode existir uma Nação sem pensamento mas depressa se evanesce se não possuir um pensamento próprio.

O que acontece, em Portugal, é que o pensamento político português encontra-se dissociado do pensamento que preside à actual acção política.

Houve um período, desde o início da Nacionalidade até à época final dos Descobrimentos, em que o pensamento português coincidiu com a acção política.

A principal expressão dessa coincidência encontra-se no Rei D. Duarte, com o seu «Leal Conselheiro», um livro admirável, uma obra que os portugueses têm sido obrigados, propositadamente, a não conhecer. Basta dizer que o «Leal Conselheiro» só foi editado no século XIX.

No entanto trata-se do livro criador daquela aristocracia que deu origem à governação de Portugal conducente aos Descobrimentos.

CM – Já existiam, nesse tempo, forças contrárias ao Pensamento português?

O.V. – Sem dúvida. O próprio D. Duarte foi incitado pelo irmão, o famoso Infante D. Pedro, a impedir o Infante D. Henrique de prosseguir os trabalhos e os estudos necessários às descobertas.

O Infante D. Pedro é uma espécie de representante da CEE no século XIV. Ele escreveu a célebre carta de Bruges, na qual aconselhava D. Duarte a contrariar a obra de D. Henrique, andando pela Europa e procurando integrar Portugal nesse espaço geográfico, político e filosófico, impedindo a expansão marítima.

CM – Tivemos outros «delegados» da CEE nesses tempos?

O.V. – Damião de Góis é outro desses inimigos do pensamento nacional. Viveu a maior parte da sua vida nesses países que são, hoje, a Comunidade Económica Europeia e veio para Portugal com a finalidade de escrever umas crónicas e outros textos, nos quais representa uma posição contrária à do pensamento português que tinha feito Portugal.

Opõe-se, por exemplo, a João de Barros, contemporâneo seu, que dirigia os Descobrimentos na altura, como feitor da Casa da Índia. João de Barros possuía um conhecimento não só teórico como directo do que seria a essência de Portugal, e sobre isso escreveu as famosas «Décadas da Ásia», as que restam de uma obra que teria projectado, ou até teria escrito, incluindo as «Décadas da Europa», as «Décadas da África» e as «Décadas de Santa Cruz».

Escreveu, igualmente, livros de filosofia, um deles com o título «Tratado das Causas», o que significa ter sido um livro sobre o que há de mais essencial na filosofia. Estes tratados também desapareceram, sem deixar rasto, pois quem venceu o conflito foram os partidários do pensamento não português.

Sempre tivemos delegados da CEE


CM – Essa linha de ataque contra o Pensamento português, desde o Infante D. Pedro a Damião de Góis, teve continuação?

O.V. – Não só teve continuação como se desenvolveu, através de toda a decadência de Portugal iniciada no século XVI, quer com os «estrangeirados» do século XVIII, quer com o seu último representante, o António Sérgio, passando por homens como Oliveira Martins, Luís António Verney, etc.

Todos eles tiveram e emitiram uma má opinião de Portugal.

CM – Podemos considerar a época governativa do Marquês de Pombal como um período de grande avanço do pensamento antiportuguês?

O.V. – Está provado que o Marquês de Pombal promoveu, até, uma separação institucional entre o pensamento político da acção exercida e o pensamento político português.

Isto verificou-se, por exemplo, na sua reforma da Universidade, que ainda hoje vigora, pois a nossa Universidade continua sendo pombalina... Foi uma Universidade feita sob o signo da abolição da filosofia substituindo-a, apenas, pelo iluminismo.

CM – Assim, somos obrigados a pensar que 1820 não passa de mais uma ofensiva daquilo a que poderemos chamar pensamento antiportuguês?

O.V. – Foi a realização, em termos de acção política, de algo que já vinha de antes e frutificou sob esse aspecto de chamar liberalismo ao que não era liberalismo mas, apenas, um pensamento francês.

Depois, em 1870, esse liberalismo acaba por ser substituído pelo positivismo como doutrina, digamos, oficial, tendo segregado o pensamento português no ensino, nas instituições e na acção política.

Naturalmente, do positivismo transita-se para o marxismo e, actualmente, caso se possa chamar pensamento ao marxismo – pois trata-se mais de uma ideologia que de um pensamento – é esse marxismo que domina as instituições portuguesas e, sobretudo, domina toda a organização do nosso ensino.

A ingenuidade dos partidos não marxistas

CM – Mas nem todos os partidos, da actual democracia, defendem o marxismo.

O.V. – Três desses partidos dizem-se não marxistas, no entanto o marxismo, até pela mão destes três partidos, é imposto, mantido e desenvolvido em todos os sectores da vida nacional, sobretudo no ensino.

A ingenuidade desses três partidos provém, totalmente, da ignorância em que eles se encontram sobre o que vem a ser a vida do Espírito e do pensamento. Por isso o partido actualmente do Poder, Partido Social-Democrata, está convencido – afirmando-o até com grande satisfação – de que erradicou o marxismo do ensino da História e da Filosofia oficiais.

O ridículo desta situação consiste no facto de julgar ter abolido o marxismo do ensino só por ter mandado cortar, dos compêndios da História, o capítulo sobre esta ideologia. Ora toda a estrutura do ensino, em todos os domínios, tanto na Filosofia como na História, é marxista e cortar esse capítulo até facilita mais a infiltração e a formação marxista das gerações...

CM – Perante tantos e tão grandes ataques, onde poderemos encontrar o pensamento português?

O.V. – Ao lado de toda esta acção política efectiva, comandada por um pensamento político estrangeiro, tem continuado a desenvolver-se o pensamento português. O que existe de patriótico em Portugal está concentrado, ou melhor, refugiado desde há dois ou três séculos no pensamento filosófico.

Esta linha de Filosofia Portuguesa vem, como lhe disse, de D. Duarte e mantém-se hoje. O seu maior desenvolvimento deu-se, até, no presente século, desde a obra de Sampaio Bruno até à obra de Álvaro Ribeiro e José Marinho.

CM – Voltemos à primeira metade deste século. Surge Oliveira Salazar com a sua ditadura antimarxista. Teria Salazar empregue, como orientação, o pensamento político português?

O.V. – Salazar não foi um pensador mas um pragmatista interessado, sobretudo, com os aspectos económicos e financeiros.
Do mais tinha uma concepção moralista que procurou dar ao Governo que exerceu durante quase meio século.

CM – Não teve contactos com filósofos do pensamento português?

O.V. – Houve uma tentativa de aproximação com Leonardo Coimbra, depois do convite feito por António Ferro para o grande pensador português dar uma conferência no Teatro de S. Carlos.

A seguir à conferência António Ferro promoveu o encontro entre Leonardo Coimbra e Oliveira Salazar. Pouco se sabe de quanto foi dito nesse encontro, ao qual assistiram António Ferro e o jornalista Boavida Portugal. O primeiro nada disse, durante toda a sua vida, sobre o diálogo travado mas o segundo confidenciou, a algumas pessoas, ter o encontro começado de forma cordata mas descambado, depressa, numa discussão a chegar quase ao insulto. Tendo terminado com Salazar a perguntar a Leonardo Coimbra por que não escrevia romances em lugar de filosofia

Uma contradição capaz de ser compreendida

CM – Pode considerar-se o marxismo como uma doutrina dissolvente das Pátrias?

O.V. – O marxismo é um internacionalismo, evidentemente que um falso internacionalismo na faceta em que, actualmente, se manifesta. Não podemos esquecer tratar-se de uma ideologia assumida por um país, a União Soviética, e posto ao seu serviço.

À expansão do imperialismo soviético convém a desnacionalização dos outros países e povos, que essa despersonalização seja propagandeada e seja desejada.

O mesmo sucede, aliás, com os americanos, pois também eles fomentam, nos outros países, o predomínio do socialismo, apesar dos Estados Unidos serem um país capitalista.

Existe aqui uma contradição, mas uma contradição capaz de ser compreendida, pois o socialismo esvazia o carácter nacional e patriótico dos povos, substituindo-os por um jogo económico.

CM – O pensamento político português estará condenado a desaparecer, devido aos ataques desferidos pelo pensamento estrangeiro?

O.V. – Para que o pensamento português desapareça será necessário desaparecer Portugal.

Se tivermos confiança de que Portugal, apesar de tudo, prossiga – e Portugal apenas poderá prosseguir depois da crise que, actualmente, o afecta – só o poderá fazer com a Filosofia Portuguesa. De outro modo Portugal desaparecerá em breve, integrado em qualquer organização ou império.

CM – E a Filosofia Portuguesa tem força para sobreviver e ajudar Portugal a resistir?

O.V. – Com certeza. Temos o exemplo de Leonardo Coimbra, a figura central da Filosofia Portuguesa, que viveu nas condições mais hostis, mais desfavoráveis, e conseguiu ser o maior filósofo contemporâneo, não só de Portugal como de toda a Europa.

Leonardo Coimbra resistiu às maiores intrigas políticas, urdidas quer através dos partidos da época quer através do Parlamento.

A força de uma Filosofia reside na verdade do pensamento por ela transmitido e, depois de Leonardo Coimbra, essa verdade de pensamento foi, pacientemente, sistematizada por um homem chamado Álvaro Ribeiro, tarefa a que entregou toda a sua vida, com ausência total da ambições e com sacrifício do seu bem-estar.



Uma cabala bem urdida

Correio da Manhã – Em que diverge a actual acção política em Portugal do Pensamento político português?

Orlando Vitorino – Em primeiro lugar, o pensamento da actual acção política é, todo ele, socialista.

Como sabe, as doutrinas políticas exprimem-se, primeiro, através da Constituição e, segundo, através dos partidos.

Ora, a Constituição diz, claramente, que a política portuguesa é socialista. Quanto aos partidos, ou se dizem socialistas, que é o caso do Partido Comunista, do Partido Socialista e do Partido Social-Democrata, ou não se dizem socialistas, como é o caso do CDS que, afinal, tem uma prática rigorosamente socialista, até mais eficaz para a implantação do socialismo do que os outros três partidos.

Lembro-lhe que o actual presidente do CDS sempre disse não ser liberal. E recordo-lhe que o fundador do CDS, ao candidatar-se à Presidência da República, este ano, fundamentou as suas propostas num livro em que diz ser sua finalidade aperfeiçoar o sistema socialista existente...

Durante as últimas eleições para a Presidência da República o sistema apresentou quatro candidatos: Freitas do Amaral, Mário Soares, Salgado Zenha e Maria de Lourdes Pintasilgo, todos eles afirmando-se como socialistas.

CM – Estamos, pois, rodeados de socialismo por todos os lados, desde a fórmula clássica até a outras mais moderadas. Como domina o socialismo o país?

O.V. – O socialismo exerce em Portugal, como em toda a parte onde se instala, um controlo muito grande da vida da população, tem nas mãos os poderes do Estado, não permitindo sequer o aparecimento de partidos ou candidatos que não sejam socialistas.

CM – Essa situação foi implantada no nosso país rapidamente. Antes do 25 de Abril o socialismo possuía pouca expressão política entre a população. Como se passou essa tomada de Poder?

O.V. – Durante o século passado existiu, em Portugal, um regime que se dizia liberal mas seguindo o modelo francês, o qual não foi mais do que uma preparação para o socialismo.

A partir de 1870 o socialismo introduz-se em Portugal pelas vias mais eficazes, as do ensino e as da cultura oficial, formando quadros mentais socialistas.

República das Janelas

CM – Dentro dessa linha de pensamento, como podemos analisar a República, que surge em seguida?

O.V. – A Primeira República afirmou-se liberal mas insistiu no modelo francês, até nas coisas mais simples, como foi o caso do célebre imposto das janelas, copiado das leis francesas.

O imposto das janelas, extremamente ridículo mas claramente socialista, obrigava o cidadão a pagar determinada quantia por cada janela que a sua casa tivesse, a mais de um número determinado...

Mesmo esse falso liberalismo da Primeira República demorou, apenas, uns dezasseis anos.

Quando Oliveira Salazar subiu ao Poder continuou com esse falso liberalismo, por ver que era o sistema liberal que lhe podia dar melhores resultados económicos. Foi ao emprego do sistema liberal que ele ficou a dever a grande façanha da restauração das finanças.

Uma vez restauradas as finanças, Salazar começou a fortalecer o Estado e esse fortalecimento do Estado é já uma característica socialista. Fortalecido o Estado, passou a dirigir toda a vida nacional e a política económica transformou-se numa política dirigista.

CM – Mas seria Salazar o dirigente absoluto dessa política dirigista?

O.V. – Não era tanto ele a ter a iniciativa mas, sim, uma classe formada nessa altura, a que podemos chamar de plutocracia. Toda a gente sabe que os ministros de Salazar eram os que interessavam à classe dirigente ou plutocrata e demitidos pelas mesmas razões.

Com um Estado forte e uma plutocracia a comandar esse Estado, temos uma situação análoga à da implantação do socialismo. A diferença consiste, apenas, na substituição dos plutocratas – portanto homens de negócios e não políticos – por homens políticos. Aliás, os homens políticos de hoje estão-se transformando em plutocratas.

Foi isto que efectivamente sucedeu com o 25 de Abril e essa substituição teve lugar com o predomínio do Partido Comunista e do Partido Socialista, este último a arrogar-se, na altura, também de marxista.

CM – Qual o papel histórico de Marcello Caetano? Teria sido uma charneira entre a plutocracia e o socialismo?

O.V. – Marcello Caetano nutria uma grande admiração pela União Soviética e pela organização soviética.

Houve, nos anos trinta, um congresso de certos monárquicos em Condeixa-a-Nova, no qual participou Marcello Caetano. Nesse congresso, disseram-me que por proposta de Marcello Caetano, saiu uma conclusão com a legenda ou «slogan»: «O Rei e os Sovietes».

Depois, Marcello Caetano abandonou a Monarquia mas não deixou de ter admiração pelos sovietes. Aliás, a reforma administrativa de Marcello Caetano, com o seu código, parece inspirada na organização soviética.

Temos aí o corporativismo

CM – E nessa substituição da plutocracia pelo socialismo, acontecida a partir do 25 de Abril, como foram substituídas as estruturas corporativas do Estado Novo?

O.V. – Ainda há pouco tempo me disse um dirigente político, aí de um partido, que o corporativismo, não conseguido totalmente por Salazar, está hoje a ser realizado. Basta ver a existência dos chamados parceiros sociais.

CM – Considera o socialismo como uma doutrina ainda com força ou já esvaziada?

O.V. – Trata-se de uma doutrina falida em todo o Mundo. Aliás, existe um pensador liberal [Frederico Hayek] que marcou a data do fim do apogeu do socialismo no ano de 1946.

O socialismo dominou, durante um século, o Governo de grande parte de povos, mas em 1946 estava completamente falido. Fracassara no desenvolvimento económico e na cultura, mas continuava dominando o Estado. Então, para sobreviver, passou a rodear as suas medidas de governação socialista de processos liberais.

Foi com esta mistura de aparente socialismo mas efectivo liberalismo – mas não de liberalismo total, pois isso iria destruir a aparência socialista – que conseguiu e consegue ainda hoje, perdurar.

CM – De que forma o socialismo tem sido funesto para a cultura portuguesa?

O.V. – Existe uma cultura oficial socialista, composta pelas universidades, onde dominam as ideias socialistas, e pela Comunicação Social, quase toda estatizada ou dominada pelo Estado, segregando uma cultura autenticamente portuguesa.

Poderá dizer-se que os elementos mais conscientes da cultura nacional, que são os filósofos portugueses, vivem como exilados no seu próprio país.

CM – Poderá dar-nos um exemplo dessa forma de procedimento anticultural?

O.V. – Ainda há pouco tempo existiam vinte e seis mil inéditos de Fernando Pessoa «escondidos» numa arca, guardados por «dragões» universitários que só vão publicando, de vez em quando, aquilo que entendem.

Depois fazem-se edições do Fernando Pessoa com textos seleccionados ao sabor de determinada pessoa que transitou de ferveroso salazarista para ferveroso socialista, uma delas com um prefácio no qual se chega ao ridículo de dizer que Fernando Pessoa era um grande conhecedor de literatura, mas seria melhor conhecedor se fosse marxista...

Vazio caracteriza vida dos portugueses

CM – A hostilidade ao pensamento português assumiu procedimentos muito gravosos para a integridade dos filósofos portugueses?

O.V. – Chegou a fazer perigar a integridade física. Temos o caso de Afonso Costa, político da Primeira República, que foi ao Porto, acompanhado de vários sicários, para assassinar Sampaio Bruno, um pensador português.
Além dos documentos existentes sobre esta tentativa de assassínio pessoal, há o próprio testemunho de Fernando Pessoa.

CM – A maior parte dos que tentam destruir a cultura portuguesa age por ignorância ou por convicção?

O.V. – Existem os quadros mentais, formados desde há dois séculos, a levar essas pessoas a ter uma noção socialista dos problemas e da solução desses mesmos problemas.

Se colocarmos um problema à maioria das pessoas elas atribuem a sua origem e a necessária solução ao Estado. O Estado já surge, pois, como uma entidade vaga, abstracta mesmo, os «eles» indefinidos, mas que são uns eles muito concretos... isto demonstra, tipicamente, a existência de uma mentalidade socialista.

Semelhante forma de pensar cria uma inércia e uma irresponsabilidade total, um vazio a caracterizar a vida actual dos portugueses, pois ela não passa de oito horas de emprego, mais oito horas de cama e ainda mais oito de televisão, não possuindo, sequer, um momento de afirmação.

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