«(...) A engenharia social antevista por Aldous Huxley carecia ainda do computador e das redes digitais como substrato material de controlo. A digitalização do mundo a partir da segunda metade do século XX criou fluxos de comunicação e formas de controlo ubíquas, diferentes das que foram imaginadas por H. G. Wells, Aldous Huxley ou George Orwell, mas também por escritores pós-cibernéticos como Philip K. Dick, J. G. Ballard, William Gibson ou Neal Stephenson. Ainda que o efeito hipnótico e orgiástico do soma e do cinema sensorial possa comparar-se ao ciberespaço como alucinação consensual, a capacidade simulatória do meio digital induziu efeitos psicoactivos cujo alcance psíquico e social talvez seja ainda mais profundo. Além disso, as lógicas finalmente automatizadas do sistema financeiro e da guerra são agora algoritmos programados no sistema cibernético, capazes de desencadear instantaneamente acções catastróficas com repercussões planetárias. Ecranizada, a morte tornou-se um jogo remoto via satélite. O próprio comportamento de consumo das massas se encontra matematicamente programado na infra-estrutura cibernética, usada para monitorizar o consumo, incluindo o consumo frenético e dispositivos de obsolescência programada. A reorganização das práticas quotidianas em função da conexão remota instantânea e da monitorização em tempo real dos desejos e dos estados emocionais dos indivíduos, colaboradores voluntários na avatarização de si próprios como itens na grande base de dados em que o mundo se tornou, é francamente diferente das antevisões ficcionadas literariamente ou projectadas cientificamente nas últimas décadas.
Os sistemas actuais de vigilância política também não correspondem aos imaginários distópticos de tortura e brutalidade ostensiva ou de propaganda e repressão clandestina, ainda que estas continuem a ser usadas como instrumentos semilegais numa espécie de estado universal de emergência não-declarado de guerra ao terror. A granularidade da vigilância política aperfeiçoou a sua impessoalidade automática, permitindo agora a localização automática individual por coordenadas GPS e a prospecção massiva das redes de comunicação, num desrespeito flagrante pelo direito de privacidade, de que o programa XKeyscore da Agência de Segurança Nacional norte-americana seria apenas um exemplo [Dado a conhecer publicamente através das provas recolhidas e divulgadas por Edward Snowden em 2013, o programa XKeyscore permite fazer vigilância sistemática da Internet, dando aos analistas a possibilidade de pesquisar, sem qualquer autorização prévia, vastas bases de dados contendo correio electrónico, conversação em linha e a história da navegação contida nos browsers de milhões de indivíduos. Cf. Glenn Greenwald, «XKeyscore: NSA tool collects 'nearly everything a user does on the Internet'», The Guardian, 31 de Julho de 2013]. Um número cada vez maior das nossas acções deixa vestígios nos sistemas de dados, traços que são utilizados para monitorizar o comportamento futuro, garantindo a plena conformidade com a administração integral da nossa existência, dos nossos desejos e da nossa imaginação. Todos os sistemas recolhem dados e todos nos garantem a bondade dessa recolha, levando-nos a assinar contratos que nos colocam numa posição marcadamente assimétrica, alimentando-os com a informação que nos será instantes depois vendida sob a forma de produtos e serviços, e que servirá para programar no sistema os nossos perfis de consumidores e cidadãos. A virtualização da economia e da identidade permite agora reconstituir na rede digital electrónica um número crescente de interacções e realidades como puros fluxos de dados, imagem correlata da abstracção dos mercados financeiros e da ficção do valor.
A programação dos indivíduos e a engenharia social constituem a essência da relação entre sociedades complexas e tecnologias avançadas: a complexidade das tecnologias implica um sistema ubíquo de controlo e vigilância, que amplifica em simultâneo a dependência do sistema tecnológico e dos seus dispositivos, e os processos globais de administração e controlo. Esta retroalimentação pode ser observada, por exemplo, na forma do aeroporto internacional como instituição totalizante, a qual, para alimentar os aviões com um fluxo constante de passageiros, submete os indivíduos aos processos de controlo e vigilância necessários ao sistema de gestão técnica e financeira das aeronaves. Idênticas descrições poderiam ser oferecidas do complexo técnico-militar, no qual a perigosidade de materiais - incluindo os agentes de guerra química, biológica e nuclear - submete os indivíduos a um controlo e vigilância sistemáticos. O princípio da vigilância instituiu-se como princípio universal na definição do comportamento das instituições relativamente aos indivíduos, alargando-se ao espaço público das ruas e parques. Ser administrado e ser vigiado é essência última do cidadão livre.
O contexto histórico imediato da emergência da distopia de Huxley é o contexto da expansão da civilização urbana industrial - com a sua marcada divisão de classes -, da consolidação dos sistemas de propaganda e violência estatal -, do rápido advento de uma sociedade consumista e hedonista - na qual a inebriação do consumo faz parte do mecanismo de reprodução económica e cultural, sendo mesmo um instrumento para a aceitação generalizada das condições alienadas da existência - e dos avanços científicos e técnicos das primeiras décadas do século XX. O conhecimento das forças fundamentais da natureza e dos códigos que determinam a vida prometiam novas possibilidades de habitar o universo e conjurar o humano. Os testes nucleares do Projecto Manhattan, a partir de 1942, e a descrição da estrutura molecular do ADN, em 1953, constituíram o culminar de processos de investigação nesses dois campos. Ainda que, como refere Huxley no seu prefácio à edição de 1946, a obra se centre mais naquilo que ele descreve como as ciências da vida (biologia, fisiologia e psicologia) do que nas ciências da matéria (física, química e engenharia), a sua interrogação fundamental diz respeito aos efeitos da ciência aplicada e ao modo como a vida se torna um servomecanismo da tecnologia.
Um dos aspectos que caracterizam o admirável mundo novo é a absoluta planificação e administração da existência. A planificação eugénica dos seres humanos permite inscrever no código genético a diferenciação social e naturaliza a evolução artificial obtida através da manipulação genética. Ainda que a programação genética dos indivíduos não tenha chegado ao ponto imaginado por Huxley, a administração e estatização do mundo ampliou-se, em consequência do aumento da complexidade técnica dos processos de produção, comunicação e transporte. Os padrões de organização do trabalho e de circulação de mercadorias e os fluxos das diferentes formas de capital estruturam-se agora à escala mundial, submetendo os indivíduos à lógica autónoma da sua própria reprodução e acumulação infinita. A distribuição desigual da riqueza material, alimentada por um processo obsessivo e auto-referencial de crescimento económico e valorização financeira, continua a manter milhões de seres humanos no limiar da sobrevivência, em estado de servidão e ignorância, sem recursos para comprarem as mercadorias que eles próprios produzem, sem tempo ou condições para aprenderem a ler e a escrever, e sem possibilidade de reparação para o seu sofrimento.
(...) A prescrição de felicidade no admirável mundo novo em construção tornou-se uma mensagem repetida até à exaustão à medida que as novas tecnologias reforçam a fantasia do controlo, isto é, a ideia de que podemos prever, planificar e controlar tudo o que acontece à nossa volta e tudo o que acontece dentro de nós. A obsolescência programada nos dispositivos e aparelhos que usamos torna-se também a obsolescência programada dos nossos desejos e pensamentos, como se, desapropriados de nós mesmos, só nos restasse consumir, a crédito, o ser que desejaríamos ser e o pensamento que desejaríamos pensar. Talvez o facto mais extraordinário proporcionado pela descrição científica do mundo e pela tradução dessa descrição em complexos sistemas tecnológicos esteja na amplitude e na pregnância das transformações, de tal modo que a possibilidade de um exterior ao admirável mundo novo parece tornar-se cada vez mais impossível. Todas as relações sociais de produção e de consumo e todas as formas de vida e de cultura estão destinadas a refazer-se segundo a lógica da megatecnologia, que torna impensáveis e inimagináveis formas de vida ou de pensamento não domesticadas. A possibilidade de um "selvagem", exterior ao admirável mundo novo, passaria a ser impossível.
A selecção genética - que diferencia alfas e betas de gamas, deltas e epsilões - e a clonagem de embriões garantem uma produção em massa de cada tipo, segundo necessidades de mão-de-obra previamente determinados pelos técnicos de predestinação social. Esta produção fabril administrada de castas de seres humanos em incubadoras mimetiza a estrutura social, com ganhos de eficiência e produtividade sobre os modos de reprodução naturais, controlando os rácios de diferenciação entre masculino e feminino ou entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais. O que importa ao sistema é reproduzir a sua própria estrutura, ampliando para o todo social da reprodução biológica humana a fordização, que decompôs e racionalizou as tarefas produtivas numa cadeia de montagem. A própria morte pode ser fordizada e racionalizada, entrando na cadeia de produção.
O desenvolvimento de uma classe administradora, cuja função é supervisionar o funcionamento eficiente de todo o sistema, reflecte a cientifização das modernas práticas de gestão, destinadas a disciplinar os corpos e as mentes, tornando-os mecanismos obedientes da engrenagem. A nomenclatura das instituições e dos espaços sugere quer a funcionalização racionalizada da reprodução de embriões humanos, quer a natureza planificada e administrada de todos os espaços sociais do admirável mundo novo: Centro de Incubação e de Condicionamento de Londres-Central; Depósito de Embriões; Armazém de Orgãos; Sala de Decantação, Sala de Fecundação; Sala de Envasamento; Sala de Predestinação Social; Infantários - Salas de Condicionamento Neopavloviano; director da Incubação e do Condicionamento; administrador residente da Europa Ocidental; Estúdio de Cinema Sensorial de Hounslow; Central Hipnopédica; Companhia-Geral das Secreções Internas e Externas; Hospital para Moribundos de Park Lane.
Cabe referir ainda a presença dos media e de dispositivos de propaganda e engenharia das emoções, responsáveis pela produção de um sistema de crenças que sustenta uma determinada ordem social e pela manipulação psicológica e emocional. Antes de conhecermos Helmholtz Watson, autor de cenários para filmes sensoriais e de fórmulas e slogans hipnopédicos, o conglomerado dos media é assim apresentado:
"As diversas secções de propaganda e do Colégio de Engenharia Emocional estavam instalados no mesmo edifício de sessenta andares de Fleet Street. Na cave e nos pisos inferiores encontravam-se as tipografias e os escritórios dos três grandes jornais de Londres, O Rádio Horário, jornal para as castas superiores, A Gazeta dos Gamas, de verde-pálido, e, em papel cor de caqui e usando exclusivamente monossílabos, O Espelho dos Deltas. Depois, seguiam-se os escritórios de Propaganda por Televisão, por Cinema Sensorial, e por Voz e Música Sintéticas, que ocupavam, ao todo, vinte e dois andares. Por cima estavam os laboratórios de investigação e as câmaras acolchoadas onde os escritores de bandas sonoras e os compositores sintéticos levavam a cabo o seu delicado trabalho. Os dezoito últimos andares eram ocupados pelo Colégio de Engenharia Emocional".
A disposição arquitectónica das diversas tecnologias dos media em três secções num mesmo edifício, permite perceber a ecologia diversificada, mas interdependente dos media (imprensa periódica, música gravada, cinema, rádio, televisão) e associá-los à engenharia emocional. O cinema sensorial - capaz de activar conjuntamente os sentidos da visão, da audição, do tacto e do olfacto - aponta para a lógica imersiva das representações, cujo poder holográfico e sensorial lhes permite oferecerem-se como mundos de substituição que compensam a monotonia sensorial e motora da funcionalização industrial dos corpos geneticamente controlados.
Esta função compensatória cabe também à música sintética e à dose diária de soma. A descrição da saída da fábrica da Companhia-Geral de Televisão, observada pelo Selvagem, mostra a conjugação alienante entre trabalho e não-trabalho:
"Era justamente a hora de saída do turno principal do dia. Uma multidão de trabalhadores das castas inferiores, em bicha diante da estação do monocarril, setecentos a oitocentos homens e mulheres gamas, deltas e epsilões, que não tinham, entre todos, mais do que uma dúzia de fisionomias e estaturas diferentes. A cada um deles o bilheteiro dava, juntamente com o bilhete, uma pequena caixa de cartão com pílulas".
O controlo compensatório da química cerebral e o consumo recreativo de narcóticos são extensões da engenharia social programadora da felicidade. A erotização difusa e omnipresente dos corpos assume idêntica função compensatória, sinal de uma relação inversa entre liberdade sexual e liberdade política e económica. Tal como em Nós, de Evgueni Zamiatine, ou em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, a troca sexual é manifestação da instrumentalização do desejo, tornado acto funcional colectivo, no qual a ligação afectiva individual perturba a lógica impessoal e meramente abstracta das relações.
No prefácio de 1946, Huxley antevê a eficiência futura do controlo das massas através das formas brandas do poder do Estado, da propaganda dos media e dos sistemas de ensino, cujo verdadeiro fim seria produzir o amor à servidão. A produção fabril de seres humanos - geneticamente modificados, conformados a reproduzirem um sistema de relações alienadas e cuja existência é totalmente administrada - é uma imagem extrema da racionalidade e da eficiência pressupostas pelas tecnologias avançadas de produção. Para um sistema auto-referencial, centrado nas cadeias de produção e de valor, é o próprio ser humano que é necessário reproduzir à sua imagem e semelhança. Produzir uma realidade mais real que a realidade e administrar obsessivamente a existência continuam a fazer parte das utopias tecnológicas dos nossos imaginadores do futuro. Talvez por isso a designação "admirável mundo novo" tenha hoje, além da ressonância irónica original, algo do sabor amargo e melancólico de uma fantasia realizada. Se tornar os indivíduos felizes é fazê-los amar a sua servidão, a função da planificação consiste em continuar a gerar as condições presentes e futuras dessa felicidade servil».
Manuel Portela («Os imaginadores do futuro», prefácio in Aldous Huxley, «Admirável Mundo Novo», Antígona, 1.ª Edição, 2013).
Infelizmente muitos, ainda encaram estas obras como mera ficção, mas se estiverem atentos dar-se-ão conta de que que estamos a viver o futuro, e estamos numa fase de transição, pois, vivemos há anos a fase do retrato de Huxley, começamos hoje a notar essa mesma transição para a fase de Orwell, depois da êxtase vem a ressaca, e que ressaca...
Deixo em baixo uns filmes que seria muito bom verem e partilharem, é importante que tenhamos consciência daquilo em que este mundo rapidamente se está a tornar, um inferno, uma prisão sem paredes nem arames farpados!!!
Alexandre Sarmento
Gostei imenso do texto M bem elaborado/OBRIGADO
ResponderEliminargrande texto
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