«Muito se escreveu já sobre o caso Delgado. Aqueles que - ao proporem-se, uns, a eliminação política do General e outros (poucos), inclusive a sua eliminação física - acalentaram, candidamente, os últimos, a hipótese de não vir a ser denunciada a sua captura, e, os primeiros, a que jamais pudessem vir a ser conhecidas as circunstâncias que o forçaram a ir a Badajoz consciente do perigo a que se expunha.
(…) Que a tragédia de Badajoz "foi antecedida duma prévia e longa preparação" é conclusão a que chegaram e proclamaram quer os inquéritos português e espanhol, quer os principais interventores neles, nomeadamente, o próprio Mário Soares, como advogado da Esposa do General.
Do plano concertado para o aproveitamento do prestígio de Humberto Delgado, em proveito próprio ou duma ideologia que não era a sua, participaram, consciente e activamente, os militantes e o delegado do Partido Comunista Português, em Argel, e, obviamente Álvaro Cunhal sem cujas prévias instruções isso não teria sido possível; os elementos da Resistência Republicana e Socialista no exílio e Mário Soares, quer como seu líder, quer, mais tarde, como pretendido dissidente e membro fundador, efectivo e dirigente, da Frente Portuguesa; o MAR (Movimento de Acção Revolucionária); e Emídio Guerreiro, que - segundo Delgado - apenas reflectia o comportamento e a influência de Soares, em consequência de ter agido como elemento de ligação entre ele e Humberto Delgado. Em suma: todo o "gang" de Argel, os seus mandatários e o "imprudente" e "incauto" professor de Paris.
Que a actuação de Álvaro Cunhal - para além do que respeita às operações de Praga, ao traiçoeiro incumprimento dos acordos firmados e dos compromissos a que obrigavam, e do veto que, criadas as condições necessárias e suficientes para o efeito, opôs ao recurso à luta armada como forma de derrubar o regime fascista português - tenha ficado na sombra porque, para tanto, dispunha dos meios e da organização necessários, pouco importa. Sem a comparticipação activa do PCP, o desastre de Badajoz não teria sido possível. Que o secretário geral do PC, interpretando à sua maneira, o internacionalismo proletário e, em consequência, servindo rigorosamente as suas próprias convicções, tivesse obedecido a razões que são suas, embora nada tivessem a ver com os interesses imediatos do povo português e das suas ex-colónias, ainda poderia aceitar-se se, como ele, perfilhássemos o princípio de que o fim justifica o recurso a todos os meios. Mas já Mário Soares, esse obedeceu exclusivamente à sua ambição pessoal e megalomania política, consciente da traição a que a sua actuação necessariamente conduziria.
Têm as investigações até agora levadas a efeito (não me refiro às italianas, porquanto lhes não cabia esclarecer o caso Delgado, mas tão só avaliar da culpabilidade ou da ausência de culpa de Mário de Carvalho) ignorado, ostensiva e intencionalmente, os antecedentes imediatos e mediatos da captura do General em Badajoz, quando, na verdade, Badajoz não foi mais que o epílogo duma tragédia ardilosamente tecida em Argel, pelos sequazes do Sr. Soares, no qual Roma e Paris não foram mais que o teatro de actuações ocasionais e de circunstância, e em que a oportunidade de comparticipação propiciada à Pide - e por ela criminosamente aproveitada - e a sua actuação, constituíram apenas o necessário complemento.
De outra forma não podiam, de resto, ter decorrido esses inquéritos, feito, um e outro, sob a égide e orientação de autoridades e entidades gravemente comprometidas na captura do General e, quiçá, no seu posterior assassinato, e orientados no sentido de produzir uma versão que apagasse aqueles antecedentes e, portanto, ignorasse as responsabilidades dos Autores das tais "acções de concerto e de conluio" contra o General.
Humberto Delgado foi a Badajoz porque a tanto o forçaram aqueles que, em Argel, lhe criaram uma situação por mais tempo insustentável, enquanto outros o seduziam com promessas de apoio de pequenas organizações civis e grupos militares, mas, sobretudo, do apoio económico imprescindível e inadiável, congelados, como tinha, por acção dos elementos da Frente Patriótica, todos os seus fundos, depositados em divisas, em bancos argelinos. Em pouco, ou em nada, teriam resultado aquelas promessas se o General tivesse possibilidades económicas para subsistir por mais um mês ou dois e para se transferir, com um mínimo de dignidade necessária e à sua documentação e estrutura directiva para Dakar e Conacry, onde, isolado, difamado, sabotado em Argel, se dispunha a fixar-se, a convite - que lhe fora já feito - dos governos dos respectivos países, como consta de documentação em nosso poder e, inclusive, da sua correspondência com Emídio Guerreiro. A isso se referem, por exemplo, as frases em código do documento n.º 153. No seu n.º 4 pode ler-se - "Guiné: o encontro em Rabat foi adiado pois ele (Amílcar Cabral) está no interior. Demoro a minha partida para o Senegal até ver".
(…) Não só eu - mas, e por razões diferentes a opinião pública e toda a imprensa portuguesa - nos vimos insurgindo contra a forma como vem decorrendo o inquérito sobre o "caso Delgado". Por isso, entendi conveniente chamar a atenção para algumas das mais graves anomalias que transparecem dos detalhes e das conclusões do inquérito, até agora divulgados, antes de encerrar este volume.
Pretende-se ter chegado à conclusão de que o General Humberto Delgado e a sua secretária foram capturados e mortos a tiro, (numa pequena colina duma região inteiramente descoberta, próxima da estrada de Badajoz-Olivença e a pouca distância duma ponte) por uma brigada da Pide, chefiada por Rosa Casaco e Ernesto Lopes Ramos, na tarde do dia 13/2/1965, sendo enterrados, no mesmo dia, a umas dezenas de quilómetros desse local e a poucos metros da frequentada estrada de Villa Nueva del Fresno para São Leonardo, próximo da casa dum grande rural cujo filho "foi encarregado de descobrir os cadáveres", e a tão só 500 metros dum Posto da Guarda Civil espanhola; Lopes Ramos é - ainda segundo as conclusões, que ignoram a existência de 2 dos 4 cadáveres - nada mais nada menos que Ernesto de Castro e Sousa.
Eis a verdade dos factos, que os documentos, a seguir publicados, como muitos outros a incluir no próximo volume, fundamentam.
O General, durante a sua presença em Badajoz, devia ter sido directamente escoltado por dois guarda-costas facultados pelas autoridades argelinas - no Hotel foi assinalada a presença de dois norte-africanos (?!) com os nomes de Benezet e Hazan Guy Isaac - e por dois ou três emigrantes idos de Paris, facultados por um dos seus delegados: ou Emídio Guerreiro ou Amadeu Cabral, cujo cadáver, por volta de Novembro de 65, apareceria num pântano nos subúrbios da capital francesa. Fora assassinado com uma pancada na base do crâneo, tal como três dos quatro cadáveres de Badajoz.
Quando, pelas 15 horas do dia 13, Humberto Delgado e a secretária almoçavam no Hotel Simancas, alguém os preveniu da presença da polícia no Hotel. Saíram, então, apressadamente. Pouco depois, conduzidos por elementos da polícia espanhola, ambos abandonaram o edifício pela porta das traseiras. Não foram, portanto, capturados pela PIDE, como pretendem as conclusões oficiais, e muito menos nesse descampado. De resto, é absolutamente inconcebível que a Pide, para uma tal operação, escolhesse semelhante local.
A 24, outros dois cadáveres aparecem. E, em 26, próximo deles, um quarto cadáver, reconhecido como sendo, provavelmente, o de Ernesto de Castro e Sousa. Com exclusão do cadáver da mulher, morta por estrangulamento, todos os outros pertenciam a indivíduos abatidos por fractura da base do crâneo, tal como Amadeu Cabral, em Paris.
Da "Gaseta Ilustrada" - págs 74 a 77: "(…) o General e a Senhora Campos saíram do hotel precipitadamente; diz-se que alguém os tinha avisado que a polícia estava na porta e que a verdadeira identidade de Delgado tinha sido descoberta"; "uns minutos antes de sair, alguém os tinha chamado por telefone"; "outro automóvel suspeito apareceu também numa garagem de Badajoz. É um Lincoln com matrícula de Virgínia e tem no assento manchas de sangue e cabelos de mulher. Está há muito tempo numa oficina. O seu proprietário era um súbdito argelino que vinha, ao que parece, de Lisboa, de assistir à partida Benfica-Real Madrid. (Trata-se de Elias Tapiero, marroquino casado com uma espanhola e residente em Madrid. Agente da polícia espanhola, foi quem em Espanha, viria a ser solto sem julgamento. O inquérito português parece ignorar a sua actuação e, pelo que se sabe, não foi pedida a sua extradição. Pôde comprovar-se que o sangue e os cabelos encontrados no carro pertenciam a Arajaryr).
Como se comprovou, inclusivamente através das autópsias, nenhum dos cadáveres apresentava o menor vestígio de ferimentos produzidos por tiros. Acresce que a presença de Humberto Delgado, preso em Espanha, foi assinalada e dela tivemos nós conhecimento, como o tiveram Emídio Guerreiro (que o denuncia em vários documentos), a delegação da Frente Portuguesa na Venezuela e a Câmara de Deputados desse país (veja-se doc. n.º 202 na parte assinalada, em que, a 7/4/65, se diz que se "logrou estabelecer que o General Delgado se encontra prisioneiro do regime franquista…"), a própria família (como se infere do doc. n.º 205) e, por uma fonte diplomática, a segunda personalidade do MNI.
Se é certo ter sido essa Delegação quem, a 18/3/65, pela primeira vez deu como assassinado Humberto Delgado (ver parte a negro do doc. 204), a verdade é que o fez sem qualquer fundamento, apenas porque "era impossível esperar mais tempo" (ver doc. n.º 203), o que, de resto, se concluiu pela expressão "Afinal, tanto o companheiro em Rabat como nós aqui, éramos os únicos que infelizmente ACERTÁMOS…" (ver final do doc. n.º 206) e pela declaração dos elementos da Câmara dos Deputados da Venezuela, sempre em estreita ligação com aquela delegação, assinalando, em data muito posterior, a presença do General preso em Espanha (doc. n.º 202).
Mais ainda! Há testemunhas - inclusivamente aquelas que, tendo-o declarado inicialmente, viriam a ser coagidas pelas autoridades espanholas a declarar o contrário - de que os corpos foram depositados no local em que foram encontrados em fins de Março. De resto, se as mortes se tivessem verificado em 13 de Fevereiro, não teria sido possível a Tapiero transportar Arajaryr Campos viva, a Lisboa muitos dias depois, o que ficou provado.
As conclusões divulgadas do inquérito pendente ignoram completamente, a actuação deste agente da polícia espanhola.
Acrescente-se, ainda, que a identificação do cadáver "juridicamente identificado como sendo de Humberto Delgado", não foi regularmente feita. Nenhum dos objectos encontrados junto do cadáver foi reconhecido como autêntico pela família, que, para mais, foi impedida - tal como nós e toda a gente que pretendeu fazê-lo - de o ver. As autoridades espanholas, que negaram a nossa colaboração na identificação dos cadáveres, nunca estiveram interessadas nela. Pelo contrário! A agravar as dúvidas consequentes de tal atitude, sucede que o Dr. Jaime Cortezo (um dos advogados espanhóis da família Delgado e o único sério) me informou no hall do Hotel Hilton de Rabat (no dia em que nos encontrámos no enterro do líder argelino Mohamed Kider, assassinado em Espanha) que os médicos legistas espanhóis se haviam recusado a identificar o cadáver atribuído ao General, até porque ele tinha 1,75 m e o cadáver apenas 1,70 metros. Assinale-se aqui que o cadáver de Delgado - se fosse realmente o dele - seria facílimo de identificar, não só pelas suas características físicas notáveis, como pelas fracturas, prótese dentária e, inclusivamente, pela cicatriz, recente, de 22 centímetros, que tinha no abdómen em consequência das operações de Praga.
É certo que o inspector Ernesto Lopes Ramos teve a seu cargo a planificação da captura do General Humberto Delgado, em que teria participado, também, a célula do PCP infiltrada na Pide. Mas já não é verdadeira a versão que ele apresenta, como não acreditamos ter sido ele quem funcionou como Ernesto de Castro e Sousa. Mário de Carvalho, que conheceu este último, nega terminantemente que sejam uma e a mesma pessoa. Sabemos, para mais, que não foi, sequer, Lopes Ramos quem capturou Delgado, embora tivesse desejado fazê-lo. O facto de se encontrar em liberdade e de não aceitar aproveitar-se da fuga que amigos seus de Angola lhe vêm propiciando (e lhe possibilitaram já naquela nossa ex-colónia), sendo ele advogado e sabendo que, a comprovar-se a sua versão, isso lhe acarretaria longos anos de cadeia, apenas demonstra que está seguro de que a acusação contra si será mal produzida ou insuficientemente comprovada, o que conduzirá a que lhe seja aplicada uma pena inferior à prisão já sofrida, como diz ter-lhe sido garantido. Esse será o prémio final da sua colaboração na tese que convém aos seus corresponsáveis.
As conclusões do inquérito, finalmente, ignoram a existência dos outros dois cadáveres, um dos quais fora reconhecido como podendo ser o de Castro e Sousa, o que cremos ser exacto.
De qualquer forma, a verdade é que, na preparação das condições que forçaram Delgado a ir a Badajoz, colaboraram o "gang" de Argel, Mário Soares, Emídio Guerreiro, António Simões de Figueiredo e Maria de Bragança, sobre cujas actividades temos, ainda, muito para dizer.»
Henrique Cerqueira («ACUSO! O CRIME», 2.º Vol.).
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