Um triste episódio promovido pelos nossos "amigos", os paladinos da liberdade e da democracia, a hipocrisia levada ao seu mais elevado expoente, para essa gente, todos os meios justificam os seus fins, os quais, como mais tarde se veio a concretizar, a verdadeira destruição de um árduo trabalho de 500 anos de um papel civilizador, evangelizador e de paz por parte da Nação Portuguesa.
Muita gente ainda hoje desconhece a verdade sobre este processo, muitos ainda hoje tomam posição a defender aqueles que na realidade foram os nossos verdadeiros inimigos, neste caso há a apontar a culpa, a assacar responsabilidades ao governo dos EUA, aos agentes da CIA, e também ao miserável papel da ONU, aliás, como sempre!!!
Alexandre sarmento
«Estávamos a 30 de Março de 1961. Na véspera tinha chegado a Luanda com o destacamento dos P2V-5 que, segundo o definido pela NATO, estariam interditos a actuar a sul do trópico de Câncer. Só a crítica e difícil situação em Angola obrigava a operar estes meios a sul daquele paralelo, onde o conflito ainda não tinha sido oficialmente reconhecido, mas de que ninguém tinha dúvidas. A guerra fizera a sua aparição. Durante o dia tive a oportunidade de tomar contacto com a sua realidade numa vastíssima extensão de terreno densamente povoado de florestas mas onde não se divisava o mais leve indício de ser humano. À noite, durante o café e após o jantar, o tema único de todas as conversas foi a guerra. A guerra sem regras, sem lei, sem compaixão. Vi algumas das fotografias que entretanto já circulavam em Luanda com o espelho horroroso, macabro, dantesco, de tudo o que se passara e continuava a passar naquele Norte de Angola. Se algumas dúvidas ainda restassem, quanto à justeza da nossa acção, aquele panorama pavoroso era mais que suficiente para apagar todo e qualquer preconceito ou hesitação que pudesse afectar a nossa motivação no cumprimento da missão a que a condição de militar obriga.
Tinha acordado com o comandante de grupo um voo no dia seguinte para uma outra área, um pouco mais a nordeste, donde havia notícias de que a situação se estaria a degradar. A actividade infernal que se desenrolava naquela Base, vivia do improviso, do velho desenrascanço, com uma entrega total de todos, tanto no que se refere aos meios humanos como aos materiais. Era uma actividade frenética que levava, com frequência, não só a ultrapassar os limites da capacidade dos operadores, como igualmente das próprias aeronaves, pondo em causa todos os princípios de segurança de voo que regem a actividade aérea. Os aviões de transporte Noratlas andavam num vaivém permanente entre o Norte afectado pela sublevação e Luanda, na evacuação das populações da área. Recordo perfeitamente de ser mencionado que num avião previsto para transportar uma média de cinquenta passageiros, chegou a trazer perto de cento e cinquenta do Negage para Luanda com a agravante da pista de descolagem não passar duma língua de terra batida sem quaisquer condições para a operação de aviões.
A Força Aérea, mercê duma previsão realista e atempada, dispunha já dos meios que lhe permitiam fazer face a grande parte das solicitações neste início de guerra. Em situação muito diferente se encontrava o Exército que, apesar dos planos elaborados para reformulação do seu dispositivo em Angola, ainda não tinha procedido às alterações adequadas ao prevísivel evoluir da situação e dispunha nos seus efectivos, em todo o território, de apenas cerca de 1500 europeus e 6000 angolanos. Haverá que esclarecer que destes 1500 europeus, perto de dois terços estavam em funções de comando, administrativas, logísticas, etc. No terreno dispunha apenas de quatro companhias operacionais que se desdobravam para acorrer aos pontos mais críticos em estreita cooperação com as tropas indígenas, mais concentradas nas zonas onde não se tinha verificado quaisquer incidentes e cuja preparação estava longe de preencher os requisitos para fazer face a um conflito deste tipo. Em qualquer caso, a sua acção foi importante, não só no início da luta, como igualmente ao longo de todos os anos em que ela se desenrolou, tornando-se por vezes particularmente importante e até decisiva em campos específicos. Combatiam assim os portugueses europeus lado a lado com os angolanos.
(...) É claro, é evidente que o que ocorria em Angola pouco tinha a ver com os portugueses e a sua colonização e, muito menos, com os angolanos. Nesta fase inicial do conflito não podiam restar muitas dúvidas sobre as intenções da política do Presidente Kennedy: conquistar apoios e simpatias entre os países afro-asiáticos, intransigentes defensores da independência dos povos ainda colonizados, como expressaram na conferência de Bandung em 1955, e neutralizar, à partida, qualquer tentativa de penetração comunista em Angola. Toda a pressão que exerceram sobre o Governo português, visando a aceitação do princípio da autodeterminação das Províncias Ultramarinas, tinha um objectivo muito mais radical e que culminava com a independência dos territórios como tinha acontecido no Congo. Nestas condições, o bastião anticomunista que acabaram por criar no ex-Congo Belga, seria substancialmente reforçado com a sua influência em Angola para onde acabariam por arranjar outro Mobutu, garantindo assim o controlo de toda a África Austral e o acesso às matérias-primas e materiais estratégicos de enorme valor, essenciais à manutenção e incrementação do seu potencial económico, militar e político. Esta estratégia garantir-lhes-ia o poder para mais facilmente desempenharem o papel de árbitros no cenário mundial.
(...) Todos os sectores da vida nacional se pronunciavam pela necessidade de, rapidamente, repor a ordem naquele território. Nem a oposição de esquerda, mais propriamente comunista ou filocomunista, se pronunciava contra o nosso envolvimento na neutralização do surto de terrorismo desencadeado no Norte de Angola. A oposição era totalmente pela nossa intervenção no sentido de travar a onda de assassínios que grassava naquela parcela do território, embora sem deixar de frisar a necessidade de se resolverem problemas de injustiça social e uma maior descentralização de poderes.
Não restam quaisquer dúvidas de que Portugal, os portugueses da então metrópole, estavam mobilizados, sentiam que era imperioso defender os angolanos, pretos, brancos e mestiços, das atrocidades de que estavam a ser vítimas. "Para Angola rapidamente e em força", foi o pronunciamento do Presidente do Conselho e ninguém contestou ou parecia duvidar de que assim teria de ser.
Afinal quem era o inimigo, quem matava indiscriminadamente, semeando o ódio, o terror, o sangue por aquela terra até então de paz? A UPNA (União dos Povos do Norte de Angola), o movimento que, posteriormente se viria a transformar na FNLA, era o resultado dum evento, aparentemente, sem grande significado para Angola mas que foi o embrião, que, explorado pelos norte-americanos, viria a desencadear todo um processo de luta de libertação.
Recorde-se que nenhum dos protagonistas vivia em Angola não se encontrando, tão pouco, exilados. Faziam a sua vida no Congo Belga como tantos outros angolanos da mesma etnia dos bakongos e que, na sequência das desinteligências com a autoridade administrativa portuguesa da área e com as igrejas católica e metodista à mistura, foram aproveitados pelos norte-americanos, com os quais matinham contactos frequentes, para desencadearem um movimento que se opusesse à expansão do comunismo naquela região de África. Por altura do 15 de Março, Holden Roberto encontrava-se nos EUA, onde passara vários meses, não se conhecendo qual o papel dos restantes elementos que estiveram na base da criação da FNLA nesta primeira acção. Também não está claro por que razão aparece Holden Roberto à frente deste movimento e não um dos chefes dos grupos de Matadi e Léopoldville, respectivamente, Eduardo Pinock e Miguel Necaca.
Poucas semanas antes da eclosão dos acontecimentos que tiveram lugar no Norte de Angola, Holden encontra-se com Frantz Fanon em Tunes e, segundo testemunho da esposa de Fanon, teria dito: "Esteja atento no dia 15 de Março, o dia em que vai ser debatida na ONU a moção apresentada pela Libéria; algumas coisas muito importantes irão acontecer em Angola". Toda a operação tinha sido planeada com tempo e as diversas acções convenientemente programadas.
Apesar das opiniões, algumas contraditórias, que apareceram na imprensa de todo o mundo sobre as origens, evolução e consequências dos acontecimentos que então tiveram lugar, a realidade era só uma e duma crueldade inconcebível, podendo ser sintetizada nos seguintes pontos:
- Em poucos dias, com início em 15 de Março, milhares de pessoas são exterminadas, entre brancos e pretos, sem que se vislumbre uma conexão clara entre causas e efeito.
- A retaliação das populações, em especial dos colonos brancos, não se fez esperar, matando indiscriminadamente, num desespero total ou simples acto de vingança.
- O racismo surge na sua componente mais dramática, a do sangue, a da morte: és preto, és culpado dos assassínios; és branco, vais matar-me e eu tenho de defender-me!!
Era difícil descrever o clima de medo, verdadeiro pavor, autêntico inferno, que se vivia em Angola, desde Luanda, onde afluíam os colonos que tinham escapado ao genocídio, até à fronteira norte com o Congo, abrangendo uma área superior à de Portugal continental. As forças da ordem eram por demais insuficientes para devolver àquela gente, claramente aterrorizada, um mínimo de tranquilidade que lhes permitisse agir duma forma racional, impedindo o agravamento da situação. Reinava o pânico, o ódio, a sede de vingança.
O pronunciamento de Salazar estava correcto. "Para Angola rapidamente e em força". Não tínhamos alternativa se pretendíamos restabelecer a ordem naquele território. Mas estariam os executores das vítimas do Norte, dispostos a acatar essa ordem? Estariam dispostos a libertar as populações, deixando-as em paz? Estariam os colonos brancos dispostos a aceitar essa paz, depois dos dramas que tinham vivido ou a que tinham assistido? Eis as muitas dúvidas ou interrogações que se poderiam pôr. Não era fácil a solução, até porque um ataque planeado e executado com o enorme e trágico sucesso que se verificou, com aquela dimensão, não seria para parar. Haveria com certeza uma retaguarda que estaria disposta e pronta a alimentar a frente de batalha e muito mais vidas iriam ser sacrificadas. Se o objectivo deste primeiro e brutal ataque era correr com os brancos de Angola, como aconteceu, em larga medida, com os belgas do Congo esse objectivo estava longe de ser alcançado. Mas não iriam parar com a chacina indiscriminada até serem confrontados com uma força que se opusesse com firmeza à sua onda destruidora, neutralizando-a e, se necessário, eliminando-a. Era a guerra!
Independentemente das razões que terão conduzido aquela agressão contra os angolanos, a autoridade legítima, responsável pela manutenção da ordem, teria de agir, agir para o pleno restabelecimento dessa ordem. Uma das vias seria através do diálogo mas, neste caso específico, dialogar com quem? Com os chefes ou comandantes operacionais dos guerrilheiros? Com os dirigentes da organização na qual estavam integrados? Com a entidade que teria levado à criação e orientação da acção do movimento, neste caso os norte-americanos? Tudo hipóteses a colocar mas cuja eficácia não podia deixar de ser posta em causa. Entretanto, iríamos permitir que mais vítimas inocentes, de interesses alheios aos seus próprios interesses, continuassem a cair? Que saída nos restava se não combatermos pela força os protagonistas da agressão no mesmo terreno onde faziam sentir a sua acção, prevenindo mais mortes e punindo os agressores. Poderá pôr-se em causa a justeza desta atitude? Com quais alternativas, pelo menos no curto prazo?
O Governo português, considerando Angola como parte integrante do território nacional, iria enviar os seus militares para punir os responsáveis pela agressão do Norte de Angola. Naturalmente que nenhum chefe político manda os seus soldados para uma batalha, pedindo-lhes para arriscar as suas vidas e aniquilar os outros, sem lhes assegurar que a sua causa é justa e, logicamente, a dos inimigos que irão enfrentar, injusta. Pelo que eu próprio sentia, pelo que ouvia, pela geral reacção das pessoas, não tinha dúvidas de que, naquele momento crítico da vida nacional, nenhum militar digno e consciente da responsabilidade que lhe está associada, poria em causa a justeza da missão que lhe era cometida ao ser enviado para Angola, onde uma agressão brutal tinha tido lugar. A prova mais cabal desta consciencialização foi materializada na entrega de que todos, sem excepção, deram provas no período infernal de quarenta dias que já lá tinha passado. A nossa gente, sem um mínimo de condições de trabalho, mostrou raça, espírito de sacrifício, sentido de responsabilidade e grande profissionalismo. Nunca ouvi um protesto, um lamento, uma discordância, indisponibilidade para a missão, muitas vezes ultrapassando-se tudo o que poderia ser exigível! Foi com muito orgulho que me integrei nesse grupo de pioneiros, homens dispostos a tudo dar para salvar o seu semelhante que, traiçoeiramente, era assassinado.
Muito se tem escrito sobre a legitimidade da guerra ou da sua justeza tanto sob o ponto de vista jurídico como ético. Mas ali o que importava era enfrentar a dura realidade e lutar com todos os meios disponíveis».
General Silva Cardoso («Angola, Anatomia de uma Tragédia»).
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