«Para Almeida Santos o documento de Mombaça "continha o essencial do texto, só formalmente não acabado, que viria a converter-se no acordo assinado na Cimeira do Alvor". Fora apenas submetido a um "simples ajustamento de forma". O papel dos negociadores nacionais tinha sido tão irrisório que até se poderia dizer que a "participação dos responsáveis políticos nas negociações do Alvor" tinha sido "uma participação chancelar": a delegação portuguesa limitara-se "a pôr em bom português o texto que de Angola veio". O Acordo tinha sido o que os líderes angolanos "quiseram que fosse" e a "pressa com que foi negociado" demonstrara "a urgência" que tinham "em se verem livres de nós". Tinha havido pouco tempo "para tudo fazer", o que "levou a que praticamente se não tivesse chegado a fazer nada". Gonçalves Ribeiro não considera que o texto do Alvor seja um mero decalque do Acordo de Mombaça porque (como as actas atestam) ao longo das reuniões "foi sendo sucessivamente ajustado às sensibilidades, percepções, vontades e credos de cada uma das partes".
(...) Os mais satisfeitos com o Acordo eram os militares portugueses em Angola: estavam orgulhosos do trabalho feito por Rosa Coutinho, para o qual auguravam, num futuro próximo, um papel proeminente em Portugal. As críticas ao Almirante, tanto por parte dos brancos como dos negros, estavam indubitavelmente ligadas ao favorecimento do MPLA, embora o diplomata [Tom Killoran] considerasse ser impossível a qualquer mortal cumprir aquela missão "sem ofender alguém". Rosa Coutinho rechaçara "as intenções golpistas que se tinham formado nas cabeças de meia dúzia de extremistas brancos", mas nem sempre respeitara os direitos dos próprios compatriotas: "Certamente terá violado os direitos civis de alguns brancos e poderia até vir a ser processado judicialmente por tê-lo feito, mas como era 'uma raposa velha' não se preocupava com tais minudências".
(...) O Acordo do Alvor tinha sido publicado (na íntegra ou parcialmente) pela Imprensa nacional e estrangeira, mas em 16 de Janeiro de 1975 o embaixador português nas Nações Unidas ainda não o tinha recebido: Veiga Simão solicitava que Lisboa lho enviasse urgentemente "a fim de ser imediatamente divulgado", senão acabaria por ser primeiro distribuído pelos representantes angolanos. Em Angola, as previsões mais cépticas ou os comentários menos alinhados com o triunfalismo ostentado pelas partes subscritoras do Acordo não eram bem-vindas. Os meios de comunicação eram uma poderosa arma de propaganda e (como a FNLA já adquirira um jornal) o governo de Rosa Coutinho impôs restrições à liberdade de informação. A decisão, justificada pela desejada paz social, era uma forma de silenciar opiniões divergentes da "linha justa". As transgressões consagradas na nova Lei de Imprensa incluíam a difamação do chefe de Estado, de ministros e diplomatas, a agressão ideológica a princípios democráticos legais ou ao processo de descolonização, violações ao Direito Civil e o incitamento à revolta popular ou à greve (que em Portugal viria a ser um direito constitucional). A coima mínima era de 200 contos e a mais pesada correspondia à suspensão do orgão noticioso por um período mínimo de 30 dias.
Durante uma conversa informal com Tom Killoran (antes de partir de Luanda), Rosa Coutinho disse-lhe que o Acordo do Alvor era "um acordo desajeitado", não crendo que "o espírito de cooperação entre os três Movimentos fosse muito sincero". Anos depois mantinha a opinião expressando-a através de uma típica metáfora gastronómica bem nacional: o Alvor tinha sido "uma 'caldeirada à portuguesa'", mas não se negasse o mérito de ter juntado os líderes angolanos à mesa com Portugal, de ter fixado a data da independência e de ter mantido Cabinda anexada a Angola. Para Mário Soares, a Cimeira assemelhou-se mais a um "jogo viciado". O ministro - que teve início pretensões de "cavalgar a questão africana", julgando que "poderia solucioná-la melhor do que os outros" - percebeu ao chegar à Penina que "os dados estavam lançados e o jogo praticamente feito". "A visão dominante naquela sala era pró-MPLA", diria. A leitura de Savimbi era semelhante: "As forças gonçalvistas" pretendiam "entregar o Poder exclusivamente ao MPLA" e Rosa Coutinho, que tinha sido "introduzido 'a martelo'" na Cimeira, como observador, não tinha parado "de manobrar nos corredores do hotel". Depois de se conhecerem as actas das reuniões pode aferir-se de que forma os ministros socialistas foram relegados para um lugar secundário nas conversações, como alegaram posteriormente. Almeida Santos referiu ter sido um mero escrivão e o MNE [ministro dos Negócios Estrangeiros] que ambos se limitaram a desempenhar um papel quase decorativo: "Tanto o Almeida Santos como eu estávamos um pouco à margem desses esquemas e a nossa contribuição na Cimeira, para dizer a verdade, foi mais do tipo 'chá e simpatia', limando algumas arestas mais vivas que já se desenhavam, claramente, entre eles". Para o fundador do PS, o Alvor foi "o compromisso possível", não crendo que houvesse outra estratégia que pudesse ser seguida: "Não tinha uma visão claro do que se poderia fazer de diferente e a minha capacidade de intervenção era reduzida. Não havia grandes saídas ou outras opções a tomar, com êxito".
(...) Rosa Coutinho, Mário Soares e Almeida Santos não acreditaram, logo após a assinatura do Acordo que este fosse posto em prática devido à direcção tricéfala do governo com um primeiro-ministro mensal. Mas como "vinha de Mombaça, tinha sido acordado por eles e não havia nada a fazer", justificou Pezarat Correia. Na verdade, o executivo angolano viria a revelar-se absolutamente disfuncional desde o início, mas o maior óbice à paz e ao cumprimento do Alvor foi a coexistência de três exércitos rivais, cuja manutenção foi permitida. Não foi imposta qualquer restrição ao poderio militar ou ao número de efectivos das tropas nacionalistas e essa lacuna contribuiu para o caos gerado em Luanda, quando nem 30 dias tinham decorrido sobre a assinatura do Acordo.
Para Melo Antunes, o "calcanhar de Aquiles" de Portugal foi a incapacidade de obrigar os líderes angolanos a cumprirem o Acordo. O Alvor não previa qualquer punição eficaz em caso de incumprimento pelos Movimentos e a única forma de o fazer respeitar seria recorrer à coacção pela força militar, o que era inevitável. Em Angola tinha começado a desmobilização dos soldados africanos das FAP e dos brancos recrutados na Província; o tempo de serviço das tropas fora reduzido e o Exército abdicou das Forças Auxiliares. Força militar era algo que Portugal já não tinha em Angola e também não poderia contar com eventuais reforços da Metrópole.
Havia ainda a intervenção em Angola das grandes potências mundiais (China incluída) que Lisboa não controlava, mas que para Melo Antunes poderia ter sido neutralizada, se as autoridades em Luanda tivessem meios para travar a corrida aos armamentos e as hordas estrangeiras (de zairenses, cubanos, russos) que dissimuladamente se foram infiltrando nos campos de treino disseminados pelo território. Como escreveu Savimbi: "A nenhum observador atento passava despercebido o desejo de supremacia que cada um dos ML procurava obter sobre os restantes. Daí a uma corrida ao armamento foi um abrir e fechar de olhos". Melo Antunes acreditava que, se Portugal tivesse sido capaz de obrigar à obediência do Alvor, "a influência das grandes potências pouco se poderia fazer sentir". Mas perante o "vazio de Poder da potência colonial", ficou dependente "da capacidade de os Movimentos levarem por diante a aplicação dos acordos e, portanto, dependentes apenas da sua boa-fé".
(...) O primeiro embaixador soviético em Portugal também não foi uma escolha casual. Formado na escola diplomática de Moscovo (o Instituto Estatal das Relações Internacionais) ainda na presidência de José Estaline, Arnold Kalinin desembarcou em Lisboa em 1974, proveniente de Havana, onde era conselheiro da Embaixada da URSS, desde 1969. Kalinin possuía no seu currículo duas competências muito recomendáveis à missão que lhe tinha sido destinada: falava "brilhantemente espanhol e português" e teve um papel relevante nos contactos entre militares do MFA e as Forças Armadas de Cuba, a partir do primeiro trimestre de 1975. Também não terá tido um contributo de somenos importância nos contactos que antecederam a intervenção cubana em Angola, onde foi embaixador da União Soviética a partir de 1983, um ano após deixar Lisboa. Falecido no início de 2012, Kalinin terminou a carreira diplomática em Havana, onde a iniciara. Como refere Vasco Vieira de Almeida: Ouvira falar "antes de ir para Angola de uma possível ajuda de cubanos ao MPLA. [...] Os intermediários estavam em Lisboa. Os primeiros contactos foram com o embaixador cubano que estava cá na altura...".
Para Pinheiro de Azevedo, "a descolonização, tal como se processou", só poderá ser entendida tendo em conta "as decisões dos grandes centros mundiais sobre África", embora Lisboa pudesse ter feito mais para se opor às ingerências directas de Moscovo e de Washington: "Portugal teria podido orientar a descolonização por forma a salvaguardar os seus interesses e antes de mais os interesses dos portugueses radicados em Angola e em Moçambique, se o povo português e os seus dirigentes tivessem reagido violentamente à entrega daquelas colónias a Movimentos comunistas. Não teria havido interferência das superpotências, apesar de estarem de acordo quanto a essa entrega. Mas essa reacção não foi possível porque as forças da Esquerda determinaram três factos fundamentais: primeiro, impediram a saída de soldados para as colónias, a partir de certa data depois do 25 de Abril; segundo, "lavaram o cérebro" e mentalizaram os que de facto partiram, de tal maneira que, em vez dos esplêndidos combatentes que tivemos de 1961 a 1974, seguiram para África transformados em cobardes; e terceiro, provocaram entre as nossas forças um ambiente de derrotismo e abandono tão pronunciado que não mais se pôde contar com elas, o que tornou impossível que negociações políticas diferentes fossem apoiadas pela força"».
Alexandra Marques («Segredos da Descolonização de Angola»).